PUBLICADO EM 03 de nov de 2021
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Morre Jaider Esbell, a espinha dorsal da Bienal de São Paulo

A perda, nessa terça (2), do artivista, educador, escritor e pensador do povo Macuxi deixou a classe artística perplexa
Jotabê Medeiros Amazônia Real

Nascido em 1979, Esbell se tornou um dos mais renomados artistas roraimense da atualidade – Foto: Alberto César Araújo / Amazônia Real

Morreu nesta terça-feira (02) em São Paulo, aos 42 anos, o artista, curador, escritor, educador, ativista, promotor cultural e pensador contemporâneo Jaider Esbell, indígena da etnia Macuxi cujo trabalho e pensamento emancipador está na espinha dorsal da 34ª Bienal de São Paulo, em curso no Parque do Ibirapuera até 5 de dezembro.

São de Jaider, por exemplo, as gigantescas cobras infláveis de 17 metros de comprimento que boiam no Lago do Ibirapuera, na frente das quais o paulistano tem feito selfies nos últimos dias na capital paulista.

Embora ajude na identificação, é reducionismo identificá-lo só pelas cobras do lago, porque Jaider era um dos mais consistentes teóricos de arte indígena do país. Vivia o auge do reconhecimento como estudioso e como artista.

Em outubro, duas de suas obras, os trabalhos Carta ao Velho Mundo (2018-2019) e Na Terra Sem Males (2021), foram anunciadas como novas aquisições do Centre Georges Pompidou (o famoso Beaubourg), de Paris.

Oriundo da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde viveu até os 18 anos, Jaider nasceu em Normandia (RR), e seu corpo estava sendo trasladado para Roraima na noite desta terça-feira (2) para ser enterrado no local onde nasceu.

Praticamente toda a histórica 34ª Bienal de São Paulo se assenta no pensamento e na articulação artística de Jaider Esbell, assim como a coletiva em curso no Museu de Arte Moderna (MAM), ali do lado.

No MAM, Esbell foi o curador da mostra Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea, que reúne 34 artistas dos povos Baniwa, Guarani Mbya, Huni Kuin, Krenak, Karipuna, Lakota, Makuxi, Marubo, Pataxó, Patamona, Taurepang, Tapirapé, Tikmũ’ũn, Maxakali, Tukano, Wapichana, Xakriabá, Xirixana e Yanomami.

“Jaider Esbell era alguém generoso e comprometido, com uma capacidade impressionante de estabelecer vínculos e estimular encontros entre diferentes pessoas, comunidades e saberes”, declarou Jacopo Crivelli Visconti, curador geral da 34ª Bienal de São Paulo.

“Sua falta será intensamente sentida. Inseparável de sua brilhante produção artística, ele deixa um legado de luta pelo reconhecimento do valor das culturas e da vida dos povos originários, que não pode arrefecer.”

A partir de 2013, quando passou a percorrer museus pela Europa, Jaider Esbell começou a desenvolver o conceito que chamou de “artevismo”, um ativismo contínuo que preconizava o resgate das motivações essenciais da arte indígena.

Participou de diversas mostras internacionais (esteve em 10 países em 2019 ao lado de Daiara Tukano e Fernanda Kaingang) e passou a elaborar uma conceituação do sistema indígena que pressupõe a negação dos sistemas artísticos hegemônicos (europeus, notadamente) e das estratégias de colonização.

“Mais do que um teórico, acho que a questão da arte do Jaider é espiritual e ancestral, ele era neto de um makunaímî”, ponderou o curador, artista visual e gestor Turenko Beça, que era amigo de Jaider.

Makunaímî, na etnia Makuxi, era o griô local, o contador de histórias. Jaider, que expôs um conjunto de 20 desenhos estruturados a partir das histórias do seu makunaímî, foi buscar na ancestralidade a força da sua atuação artística, do seu discurso e do posicionamento decolonial – o pensamento decolonial tem sido uma estratégia para dar voz e visibilidade aos povos historicamente subalternizados e oprimidos.

“Quando ele expôs aqui, em 2018, eu estava dirigindo a Casa das Artes, ele não só fez a exposição como deu palestras, fez um ritual. Não tem como dissociar a arte dele da questão espiritual”, afirmou Beça.

A perda inesperada

Jaider Esbell nasceu na Terra Indígena Raposa do Sol, em Roraima / Divulgação

“É uma perda inesperada porque era um artista que atuava num sistema ainda muito fechado e centralizado, que é o sistema de arte. E ele, de repente, com outros artistas indígenas, começou a crescer nesse espaço, não somente através do seu próprio trabalho, mas da presença política”, disse o curador Cristóvão Coutinho, que também foi amigo de Jaider.

“E foi aproximando, eu acredito, a criação do próprio ser indígena, do universo indígena, da nossa vida na contemporaneidade. Eram aproximações muito recentes, e essa cosmogonia indígena e seu discurso são reflexões que vão ser feitas muito mais agora”.

Em entrevista à Amazônia Real, no dia da abertura oficial da 34ª Bienal de São Paulo, Jaider Esbell ponderou que o Brasil dos povos originários passou um processo doloroso de apagamento cultural, no qual “intelectuais indígenas foram rechaçados, seja na arte ou pensamento”, e que ele não via outro caminho senão o de enfrentar as doenças do Brasil e do mundo, hoje dominado pela necropolítica, por meio de um esforço de reatar os fios do ancestral e harmonioso relacionamento com a natureza e o ambiente.

“Na 34ª Bienal, sua contribuição se estendeu para muito além da apresentação de seus próprios trabalhos, envolvendo intensas trocas com os curadores e outros artistas da mostra, uma atuação curatorial histórica na exposição coletiva organizada em parceria entre a Bienal e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, e o desenvolvimento de ações na programação pública da Bienal em colaboração com outros artistas”, disse José Olympio da Veiga Pereira, presidente da Fundação Bienal, em nota pública.

“Tinha uma visão muito aguda das urgências do nosso planeta, e sabia como ser um articulador de mundos”, afirmou o curador Paulo Miyada.

Jaider Esbell deixa grandes obras que sintetizam seu pensamento e estão em exibição na Bienal de São Paulo. A primeira, Terreiro de Makunaima – mitos, lendas e estórias em vivências (2010), foi definida pelo artista como “pedagógica”.

São os tais desenhos que reproduzem interpretações do universo infantil face à contação de histórias do avô Makunaímî. Das 20 ilustrações, somente uma é assinada por Esbell, as demais são como visões escorridas das histórias que recolheu.

Já a série A Guerra dos Kanaimés (2019-2020) é um conjunto de telas impressionante que Jaider produziu sob comissionamento já para o contexto da Bienal, criando cenas alegóricas a partir do mito dos Kanaimés (descritos como espíritos fatais capazes de provocar a morte de quem os encontra).


O curador geral da Bienal Jacopo Crivelli Visconti conversa com Jaider Esbell em São Paulo / Alberto César Araújo / Amazônia Real

Jaider dizia, numa conversa com a reportagem da Amazônia Real, que o colonizador se apropriou de quase tudo que o indígena tinha, condicionando as culturas originárias a repetir padrões da religião, da moral e da arte europeias.

“Agora, querem se apropriar também do que não entendem: o mistério, a magia”, considera. Questões como o sagrado, a cosmogonia, a mitologia, a comunhão ambiental, para a compreensão dos povos indígenas, não se prestam a um tipo de apreciação tradicional, nem à rotulação costumeira”.

É nesse ponto que ele articulou sua estratégia de resistência. “O sistema de arte indígena não tem nada a ver com o sistema dos europeus, que nos foi imposto durante e depois da colonização”.

As expressões pictóricas do indígena contemporâneo, para Jaider, se tornam parte de uma ação de resgate. “Tudo tem espírito, por assim dizer, e nós estamos pobres nisso”, escreveu, num dos textos de maior radicalidade da exposição, escrito para o catálogo da Bienal.

“Sabíamos, pois sábios éramos. Amávamo-nos sem nem mandar ou exigir, pois era essencial o dito natural. Enquanto dentro, não enxergávamos o fora, embora suspeitássemos de sua força; seguíamos e cá estamos, à frente. Uns de nós sempre trarão reflexos, complexos; é como passam. Atravessamentos constantes, instantes, eternidades.”

Sarcástico e de uma sinceridade quase rude, ele ironizava quem via “como figura psicodélica” o indígena que milita pela retomada do inconsciente ou os críticos que relacionaram sua obra como algo excêntrico, marcado pelo uso de “pozinhos ou cogumelozinhos ou uma ervinha”, como alfinetou.

“Reúno no inconsciente uma tribo de avatares, seres mágicos sem descrição. Jogando redes ao léu, são polidirecionais. Elas tensionam, e pegamos peixes grandes já sem iscas ou armadilhas”, teorizou.

“Eles estão vivos, debatem-se em retirada, mas não deveriam. A expertise do pescador trabalha além. Quando logo se completa o rito é o moquém, a paisagem. Moquém – tratar com fogo lento o alimento coletivo, na caçada, para levar para casa. Jornada que esquecemos quando, delongando quereres, edificamos megalópoles”, escreveu, também no texto para o catálogo da Bienal.

A postura de Jaider sempre foi a de um artista no front, numa postura de combate.

“Não vá escrever besteira, hein? Procure os vídeos, eu tenho falado muito sobre essas questões”, avisou, ao terminar a entrevista.

Também pediu para que a reportagem da Amazônia Real não escrevesse que ele tinha acabado de entregar uma carta à curadoria geral da exposição pedindo que fosse aumentada a presença indígena na mostra, que, para além do reforço da representação artística, que fossem trazidos indígenas para visitá-la.

“Pode parecer intriga, e eu não quero que as coisas fiquem no âmbito da intriga, eu quero olho no olho.”

“Não tem começo, nem fim”

Jaider na exposição Moquém Surari no MAM-SP / Alberto César Araújo / Amazônia Real

A comunidade artística indígena estava particularmente triste na noite desta terça-feira, Dia de Finados.

“Querido, o dia está pesado demais, estamos muito arrasados. Eu estou sem condições de falar alguma coisa, espero que compreenda”, disse Denilson Baniwa, artista brasileiro, curador, designer, ilustrador, comunicador e ativista.

“Fica a memória de um artista dedicado à arte, defesa dos direitos indígenas, valorização da cultura e dos saberes ancestrais”, escreveu a deputada federal Joênia Wapichana no Instagram.

Sonia Guajajara escreveu, citando as cobras do Lago do Ibirapuera: “Chamada Entidades, a obra representa o ser fantástico îkiimi, que atravessa vários mundos e não tem começo e nem fim”.

“A morte dele, grande símbolo de resistência”, disse o xamã Bu’ú Kennedy, do povo Tukano. “As sementes que ele ajudou semear, dando oportunidade para parentes, eles e elas vão continuar. A arte, acredito, ele foi grande espelho, exemplo que arte é caminho para levar ao conhecimento da sociedade a nossa voz, nossa cultura, através da arte.”

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A Galeria Jaider Esbell, de Boa Vista (RR), comentou a perda irreparável e solicitou que “nossa dor e recolhimento sejam respeitados”.

O Conselho Indígena de Roraima (CIR), também em nota, lamentou a perda de Jaider Esbell, lembrando que ele deixa “um legado de resistência, luta e firme posicionamento. Suas pinturas envolventes, plasticidade e sua escrita manifestavam o que o povo indígena tem de melhor, cultura”.

Ainda na nota, o CIR lembra que o artivista vai de encontro à Vovó Bernaldina, sua mãe. A mestra da cultura Macuxi Bernaldina José Pedro foi uma das líderes pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e morreu de covid-19 em novembro do ano passado.

“É triste porque a gente sabe que era jovem, ou então era isso mesmo que tinha que ser feito. A morte dele também pode ser encarada como um complemento de uma trajetória forte e abrangente, mas de alguma forma também como uma expressão particular de um artista que estava envolvido em muitos lugares e esse conceito da arte indígena contemporânea ficou presente a partir dele”, afirmou o curador Cristóvão Coutinho.

Fonte: Brasil de Fato

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