PUBLICADO EM 09 de fev de 2019
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Entender a Conjuração Baiana de 1798 ajuda a conhecer o Brasil de hoje

Acaba de ser lançado, na Bahia, o livro “Corporação dos Enteados – tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798”, da historiadora Patrícia Valim.

Praça do Hospício de Nossa Senhora da Piedade, Salvador, Bahia, local onde quatro participantes da Conjuração Baiana foram enforcados em 1798. Gravura de Johann MOritz Rugendas, 1835.

Por José Carlos Ruy

A Bahia do final do século XVIII vivia uma conjuntura conturbada, reflexo não apenas das contradições com a metrópole portuguesa mas também da convulsão européia que se seguiu à revolução francesa de 1789.

Salvador era, na época, uma das mais importantes cidades do Império Português, superada talvez apenas por Lisboa. Era centro de um comércio externo dinâmico, de importação e exportação, sendo ativo no abastecimento interno, cuja intensa atividade envolvia produtos de consumo local, como a farinha de mandioca, por exemplo, ou o charque. Calcula-se que teria uma população grande para a época – entre 60 mil (segundo Luís dos Santos Vilhena e Miguel Antonio de Melo), e 220 mil habitantes (segundo os Censos do final do século XVIII). Talvez mais realista, o escritor Thales de Azevedo calculou, na década de 1950, que teriam sido 100 mil habitantes. De toda forma, o número refletia a dinâmica e a importância de Salvador.

Em 12 de agosto de 1798 Salvador amanheceu panfletada por boletins manuscritos, muitos colados em muros nas vias públicas, pregando a revolução, repercutindo ideais da Revolução Francesa de 1789, apregoando “igualdade, liberdade, e fraternidade popular”, liberdade de comércio com todas as nações, a proclamação da Republica e liberdade para todos – brancos, pardos e pretos. Boletins assinados por “anônimos republicanos”.

A luta política e social envolvia, na Bahia daquele final de século, a disputa entre os setores que dominavam o comércio externo (sobretudo o tráfico de escravos e a exportação de bens como o açúcar), as finanças (e a concessão de crédito para senhores de engenho principalmente), a arrecadação de impostos (arrendados pela Coroa a particulares) e a intensa navegação de cabotagem que animava o comércio interno. Interesses que, naquela altura, conflitavam agudamente com os projetos da Coroa para modernizar a administração no Império Português, fortalecendo a máquina estatal em confronto com velhas práticas mercantilistas que estavam sendo superada pelas mudanças capitalistas no mundo.

Cada uma das forças – setores agromercantis da colônia; comerciantes e traficantes (muitos contrabandistas); membros da burocracia portuguesa; altos, médios e baixos funcionários da máquina pública (como alguns oficiais das tropas de linha e das milícias); intelectuais e sacerdotes – tinham seus interesses mexidos, a favor ou contra, pelas reformas modernizantes preconizadas por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o poderoso ministro do regente príncipe D. João, cuja atividade visou fortalecer o poder da Coroa e, sobretudo, o Erário Real.

Este cenário é descrito com maestria e cores vivas no livro “Corporação dos Enteados – tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798”, da historiadora Patrícia Valim, professora de História do Brasil Colonial na Universidade Federal da Bahia. O livro, que a Edufba (Editora da Universidade Federal da Bahia) acaba de publicar, é inovador; seu tema é a ação da “Corporação dos Enteados” – nome usado por um contemporâneo (o professor de grego na Bahia de então, Luiz dos Santos Vilhena), para designar parte da elite baiana de então – e sua articulação com a Conjuração Baiana, ou Revolução dos Alfaiates, ocorrida em Salvador, em 1798, e que enredou as principais forças políticas e sociais da Bahia no final do século XVIII – sendo, com justa razão, considerada um dos eventos rebeldes de maior profundidade social entre as lutas políticas que antecederam a Independência, ocorrida algumas décadas mais tarde. Tudo isso narrado num estilo agradável de quem, além do assunto, domina também a arte da escrita.

Os homens da “corporação dos enteados” eram da alta elite de Salvador, “direta ou indiretamente ligados ao controle da produção econômica” seja “como senhores de engenho, seja como credores ou tomadores de crédito, seja como sócios no tráfico de escravos, ou na arrematação do contrato dos dízimos reais”, e sua situação e privilégios dependiam da “manutenção das regras do jogo político entre a Coroa e sua principal colônia.”

O tema que Patrícia Valim enfrentou, e deslindou com esmero, em sua pesquisa de doutoramento (agora transformada em livro) é justamente esta contraditória conjuntura que juntou, num mesmo movimento de contestação, interesses tão díspares e quase inconciliáveis. Nas palavras da autora, seu tema foi “a conjuração baiana de 1798 como um movimento político de contestação que envolveu pessoas de distinta condição social, como milicianos e um grupo de notáveis formado por homens ricos e membros da administração local, cada qual com projetos políticos definidos, embora conflitantes em seus termos”.

Como livro de história, “Corporação dos Enteados” é exemplar e registra o movimento das classes numa radiografia de cima a baixo da sociedade colonial baiana. E revela práticas sociais que, mesmo tendo se passado mais de dois séculos daqueles eventos, persistem no Brasil de hoje.

Por exemplo, a corda rebenta sempre do lado mais fraco. Os condenados pela Conjuração Baiana foram quatro homens cujos nomes hoje constam no livro dos heróis da Pátria, mantido em lugar de honra em Brasília: os alfaiates João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino e os soldados Lucas Dantas de Amorim Torres e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga. Eles foram enforcados e esquartejados na Praça da Piedade, em Salvador, em 8 de novembro de 1799, acusados de crime de lesa majestade.

Foram mortos de maneira bárbara e cruel embora não tenham sido únicos a participar da Conjuração. O número era muito maior – descobriu-se, na devassa (a investigação, como se dizia na época) serem 676, dos quais 513 eram militares (187 oficiais inferiores e soldados da tropa de linha, e 326 das milícias). Os demais eram graduados em letras (13), homens comuns (20), do comércio (8), familiares do santo ofício (8), e 87 religiosos.

Era gente suficiente para significar uma grande e heterogênea aliança. De tal maneira que, durante a devassa, muitos senhores entregaram, de vontade própria, escravos de sua propriedade para serem interrogados e, de certa forma, “substituir” seus donos nos procedimentos judiciais. Do total de 32 presos, dez eram escravos, entregues por proprietários temerosos de serem acusados de conivência em ações sediciosas. Dos escravos indiciados quase todos eram pardos nascidos na Bahia, domésticos, citadinos, sabiam ler e escrever e viviam pelas ruas de Salvador, certamente em atividades do “ganho”, que era como se designava aqueles que, nas ruas, ofereciam pequenos serviços e, depois, entregavam o que ganhavam a seu dono.

De acordo com informações dadas pelos réus Luiz Gonzaga das Virgens e Vieira, João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino, houve escravos que assistiram e participaram de encontros de seus senhores com homens livres, alguns brancos, outros pardos; com militares, oficiais de baixa e média patente; artesãos; e ainda alguns intelectuais, registra Patrícia Valim.

Embora focado no final do século XVIII, o livro de Patrícia Valim remete também à política brasileira do início do século XXI. Se o leitor prestar atenção aos sobrenomes de muitos envolvidos na “Corporação dos Enteados” e na luta política daquela época reconhecerá antepassados da oligarquia baiana que mantém seu poder e privilégios. Destaca-se entre eles José Pires de Carvalho e Albuquerque, o líder desta importante família que chegou a Salvador com Tomé de Sousa, no século XVI, e recebeu as terras onde construiu a chamada Casa da Torre. Família que se mantém no topo da política brasileira até nossos dias, mais de cinco séculos depois. Um importante general da ditadura de 1964 foi Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, descente desta linhagem, que fez parte da chamada “linha dura” e foi ministro do Exercito durante o governo do general João Batista Figueiredo.

Há ainda outras questões que permanecem em nosso tempo. Duas medidas preconizadas por D Rodrigo de Sousa Coutinho atingiam diretamente a elite baiana. Uma delas era a reforma tributária, para fortalecer os cofres públicos, transferindo para o governo a arrecadação de impostos, até então arrendada a ricaços particulares. Tais medidas punham em risco prerrogativas do regime colonial mercantilista, anota Patrícia Valim. Aquela reforma previa a redução dos impostos de importação, e mesmo sua isenção, para vinho, azeite, aço, ferro e manufaturas de Portugal; reduzia ou eliminava direitos sobre a entrada de escravos; cortava pela metade o quinto do ouro. “Estas medidas tiveram reações. a abolição dos estancos do sal e da pesca da baleia, em 1801, a extinção do sistema de arrecadação dos impostos por contratadores, que deveriam ser substituídos pela cobrança direta da própria administração, fortaleceriam as finanças da Coroa mas, em contrapartida, prejudicariam capitalistas metropolitanos e também alguns brasileiros há muito ligados a essas atividades.” Eram medidas que refletiam a disposição de d Rodrigo de Sousa Coutinho em sacrificar interesses privados em benefício da Coroa e do comércio metropolitano.

Outra questão – cuja discussão também remete a nossos dias – era o monopólio da posse da terra. Mais especificamente, a discussão e a reação provocada pela proposta de extinguir o morgadio, sistema de transmissão das propriedades, por herança, que privilegiava o filho primogênito, que ficava com toda a propriedade. A reforma de d Rodrigo de Sousa Coutinho pretendia mudar essa regra que, para ele, atrapalhava a distribuição da propriedade e o uso de novas técnicas agrícolas para aumentar a produção. O fim do morgadio atingiria fortemente a José Pires de Carvalho e Albuquerque, dono da Casa da Torre e de extensas terras na colônia, sob o regime do morgadio – que, naquela época, significava “a reiteração do latifúndio como forma específica e adequada às determinações mercantis da colonização, bem como a exclusão da população livre da posse da terra, a permanência de uma política de controle do poder local que, no limite, sedimentava a arraigada estrutura de privilégios veementemente combatidos pela reforma de d Rodrigo de Sousa Coutinho”.

A leitura do excepcional livro de Patrícia Valim esclarece não apenas aos estudiosos do passado, mas ajuda a entender como o Brasil continua sendo um país de privilegiados. Esta é sua virtude notável – a história pode iluminar o passado a partir da situação que é vivida hoje.

Autor(a): Patrícia Valim

Ano: 2018

Área: História do Brasil

Editora: Edufba

Edição: 1ª
ISBN: 978-85-232-1770-9

Valor: R$ 45,00

Nº de Páginas: 327

 

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