PUBLICADO EM 02 de nov de 2019
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Consciência negra: três canções com os dilemas do racismo no trabalho e na vida

Por Marcos Aurélio Ruy 

Novembro é o mês da Consciência Negra por isso a seleção de músicas com o tema trabalho desta edição ressalta três artistas contemporâneos da música popular brasileira. A começar pela rapper paranaense Karol Conka que aqui canta a sua canção Bem-sucedida para rechaçar o mau olhado principalmente sobre as mulheres negras que fazem sucesso.

A seguir aprecie as músicas dos rappers paulistas, Eduardo, ex-Facção Central e Rincon Sapiência. Ambos cantam a dureza da vida da mulher negra, que mora na periferia, ganha pouco e enfrenta dupla jornada de trabalho. Eduardo compôs para a rapper Yzalú, também paulista, “Mulheres negras” e Rincon Sapiência canta “A vota pra casa” de toda trabalhadora. Não à toa eles cantam a opressão sobre as mulheres porque um dos traços da periferia é o abandono dos lares pelos homens.

 

Karol Conka canta a plenos pulmões num ritmo dançante e dá o seu recado fulminante. Chega de assédio e racismo.  “Chega, agora estou farta” poque “Nunca foi sua criada”. É como ver os ataques sofridos pela jornalista Maju Coutinho ao gaguejar na estreia da apresentação de um telejornal da Rede Globo. Nunca ninguém falou tanto de falhas de apresentadores brancos.

 

Bem-sucedida, de Karol Conká

Piririm pom pom, piririm pom pom
Piririm pom pom, piririm pom pom
Piririm pom pom, piririm pom pom
Piririm pom pom, piririm pom pom

Você quer saber quanto eu ganho
Você quer saber quanto eu gasto
Sei que pra você parece estranho
Me ver bem-sucedida no que eu faço

Você quer saber como eu ganho
Você quer saber como eu gasto
Sei que pra você parece estranho
Me ver bem-sucedida no que eu faço

Eu vim de baixo, nem por isso me rebaixo
Sigo assumindo cachos, do meu jeito, eu me encaixo
Sem pressa, vou dar mais um passo
Deixa, que eu mesma faço
E se me encher o saco, vou descer o esculacho

Querem que eu fique calada
Sou eu que dou a cara a tapa
Chega, agora estou farta
Vou faturar, vou vender, sou a marca
Nunca foi sua criada
Tô livre das suas amarras
Agora correr na estrada
Tô no controle, só dando risada

Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, piririm pom pom (ra-ta-ta-ta-ta)
Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, vaza, vaza, vaza, tô tipo, rá-ta-ta-ta

Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, piririm pom pom (ra-ta-ta-ta-ta)
Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, vaza, vaza, vaza, tô tipo, rá-ta-ta-ta

Você quer saber quanto eu ganho
Você quer saber quanto eu gasto
Sei que pra você parece estranho
Me ver bem-sucedida no que eu faço

Você quer saber como eu ganho
Você quer saber como eu gasto
Sei que pra você parece estranho
Me ver bem-sucedida no que eu faço

Calma, dá uma respirada
Não há necessidade de cobiça na jornada
Mentes mal educadas se contentam com migalhas
Enquanto eu e minha negrada tamo no topo da parada
E ainda usando Prada
Afogando piratas
Selecionando datas
Minha obra é cara, rara, só eu quem contrata
Quem assiste relata
Esperem que eu vire sucata
Bocas malditas, ingratas, vaza
Tô tipo ra-ta-ta-ta

Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, piririm pom pom (ra-ta-ta-ta-ta)
Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, vaza, vaza, vaza, tô tipo, rá-ta-ta-ta

Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, piririm pom pom (ra-ta-ta-ta-ta)
Piririm pom pom, piririm pom pom (só rajada)
Piririm pom pom, vaza, vaza, vaza, tô tipo, rá-ta-ta-ta

Eduardo (Carlos Eduardo Taddeo), foi do Facção Central, grupo de rap de São Paulo, compôs “Mulheres Negras”, interpretada com a força da mulher negra pela rapper paulista Yzalú. A poesia de Eduardo é um soco na mentalidade escravist, traço marcante da sociedade brasileira em pleno século 21. Lembrando que a Abolição ocorreu no século 19. Em 2013, ele deixou o grupo e partiu para carreira solo.

Os versos desta canção que incorporam a visão da mulher negra ultrajada pelo abuso, pela opressão e pela negligência do sistema. Desde o Brasil colônia, a mulher escravizada teve de suportar uma série de maustratos, mas não se resignou:

“Podem pagar menos pelos mesmos serviços

Atacar nossas religiões, acusar de feitiços

Menosprezar a nossa contribuição na cultura brasileira

Mas não podem arrancar o orgulho de nossa pele negra”

Acompanhe a força da melodia e da poesia com uma interpretação ímpar dessa rapper que canta com profundo sentimento de revolta pelo fim da exploração dos corpos das negras na contemporaneidade.

Mulheres Negras, de Eduardo – interpretada por Yzalú

Enquanto o couro do chicote cortava a carne

A dor metabolizada fortificava o caráter

A colônia produziu muito mais que cativos

Fez heroínas que pra não gerar escravos, matavam os filhos

Não fomos vencidas pela anulação social

Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial

O sistema pode até me transformar em empregada

Mas não pode me fazer raciocinar como criada

Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo

As negras duelam pra vencer o machismo, o preconceito, o racismo

Lutam pra reverter o processo de aniquilação

Que encarcera afrodescendentes em cubículos na prisão

Não existe lei maria da penha que nos proteja

Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza

De ler nos banheiros das faculdades hitleristas

Fora macacos cotistas

Pelo processo branqueador não sou a beleza padrão

Mas na lei dos justos sou a personificação da determinação

Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador

Falharam na missão de me dar complexo de inferior

Não sou a subalterna que o senhorio crê que construiu

Meu lugar não é nos calvários do Brasil

Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro

É porque a lei áurea não passa de um texto morto

Não precisa se esconder, segurança

Sei que cê tá me seguindo, pela minha feição, minha trança

Sei que no seu curso de protetor de dono praia

Ensinaram que as negras saem do mercado com produtos embaixo da saia

Não quero um pote de manteiga ou de xampu

Quero frear o maquinário que me dá rodo e uru

Fazer o meu povo entender que é inadmissível

Se contentar com as bolsas estudantis do péssimo ensino

Cansei de ver a minha gente nas estatísticas

Das mães solteiras, detentas, diaristas

O aço das novas correntes não aprisiona minha mente

Não me compra e não me faz mostrar os dentes

Mulher negra não se acostume com termo depreciativo

Não é melhor ter cabelo liso, nariz fino

Nossos traços faciais são como letras de um documento

Que mantém vivo o maior crime de todos os tempos

Fique de pé pelos que no mar foram jogados

Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados

Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria

É atrair gringo turista interpretando mulata

Podem pagar menos pelos mesmos serviços

Atacar nossas religiões, acusar de feitiços

Menosprezar a nossa contribuição na cultura brasileira

Mas não podem arrancar o orgulho de nossa pele negra

O rapper paulista, Rincon Sapiência dedica a canção A volta pra casa “a toda a classe trabalhadora” porque só quem acorda cedo todo dia, entra no ônibus, trem ou metrô e são esmagados no início daquele “longo trajeto de ir e vir”. Muito comum dizerem que cansa mais o trajeto do que o trabalho em si.

Mais um retrato duro da realidade da mulher negra, base da pirâmide social, que mora longe, onde o Estado se ausenta e os perigos aumentam. Na volta para casa ela ainda se enternece ao pensar na sua cria que a espera, quem sabe para ganhar um doce.

A Volta pra Casa, de Rincon Sapiência

Conhecido também como Manicongo, certo?
Eis aqui mais uma canção dedicada a toda classe trabalhadora
Tão cansativa como a rotina de trabalho
É aquele longo trajeto de ir e vir
Vamo nessa!

Trabalhadora voltando pra casa
Perguntando pra Deus: “Por que não tenho asas?”
Pra voar pelos ares e voltar para o lar
A real, ônibus cheio dói só de pensar
Na bolsa um livro novo, não tem condição
Leitura na multidão, frustração
Nove horas o trabalho é bem mais suave
Que as duas horas balançando na condução
O dia inteiro dando duro
Uma volta cansativa, ainda desce bem no ponto mais escuro
A violência subindo de nível
Do receio da solidão a sensação da mulher é horrível
Ela caminha, semblante preocupado
Escuridão, o bar da rua se encontra fechado
Quanto vale uma vida? Pensa no seu pivete
Na bolsa tem a Bíblia, também tem canivete
Faça o bem que o bem vai te merecer
Mas ela sabe que o pior pode acontecer
Na madrugada pelo bairro impera o sono
Holofote quebrado, matagal, abandono
Se ela atrasa, seu dinheiro será descontado
E a firma, ao menos, oferece o ônibus fretado
E a sua mente, quente, como brasa
Só vai relaxar quando entrar dentro de casa, ow!

É hora de voltar pra casa
Trabalhador só quer chegar bem
Infelizmente não tem asas
E precisa da ruas e das linhas do trem
A condução está tão cara
Conforto é algo que não tem
Mas o trabalhador encara
Essa rotina sem nunca depender de ninguém

Da casa pro trampo, do trampo pra faculdade
O corpo exausto, apesar da pouca idade
Sem novidade, a mesmice na rota
Tentando ser um bom funcionário com boas notas
Trabalhar, estudar, nem sempre se encaixa
Nem mesmo no fim da aula o aluno relaxa
Pensa na volta, no clima lá fora
O metrô não funciona por 24 horas
Logo vem na mente os lençóis
E o busão vai parando nos pontos e nos faróis
É feroz esse desafio
Manhã, tarde ou noite, é raro um busão vazio
Ele se adianta, violência espanta
Sua família ansiosa o espera pra janta
A madruga é tensa quando um estouro canta
A mãe já pensa coisas, dá um nó na garganta
Ow, perigo em todos os lados
Quanto mais dinheiro, vivem mais isolados
A violência na cidade tem se espalhado
Se isola mais ainda quem tem um carro blindado
Andando com cuidado, os passos apertados
Receio de sofrer abuso de um homem fardado
Chegando em casa, ele se sente mais aliviado
É recebido com o calor de um abraço apertado, ow

É hora de voltar pra casa
Trabalhador só quer chegar bem
Infelizmente não tem asas
E precisa da ruas e das linhas do trem
A condução está tão cara
Conforto é algo que não tem
Mas o trabalhador encara
Essa rotina sem nunca depender de ninguém

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