PUBLICADO EM 02 de set de 2020
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Aos poucos, Museu Nacional renasce das cinzas

Dois anos após incêndio, ainda não se tem dimensão exata do que foi preservado e do que será possível recuperar. Instituição, porém, continua viva através das pessoas que dedicam suas carreiras a ela.

Profissionais garimpam peças inteiras e fragmentos de objetos das mais diversas coleções, a serem reconstruídos parcial ou integralmente – Foto: Arquivo Museu Nacional

Já se passaram dois anos desde que o Paço de São Cristóvão, palácio que abrigava o Museu Nacional, foi destruído por um incêndio, no dia 2 de setembro de 2018. Embora já tenha entrado no prédio e visto sua sala em ruínas, a antropóloga Aparecida Villaça ainda anda com a chave de seu antigo escritório na bolsa.

“É como se eu não quisesse enterrar”, diz a pesquisadora, uma das mais importantes da instituição, à qual está ligada desde 1984, quando iniciou o mestrado em Antropologia após ter se formado como bióloga.

Embora tivesse sua própria sala no Museu, Villaça sempre optou por guardar seus cadernos de pesquisas de campo em casa. Graças a isso, o material acumulado ao longo de décadas escapou do incêndio — sorte que não foi compartilhada por outros tantos colegas. Passado o impacto inicial da perda, ela conta que a saudade hoje se concentra nas pequenas coisas do dia a dia, como os encontros nos corredores.

“É uma espécie de pós-luto que precisa ir saindo aos poucos. O museu no qual eu me tornei profissional e cresci não vai existir mais. Porém, como instituição, está totalmente vigoroso”, afirma a antropóloga, que visitou o local pela primeira vez ainda na infância, como era de praxe no Rio de Janeiro.

Localizado dentro da Quinta da Boa Vista, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o Museu Nacional sempre teve um perfil popular e atraía centenas de famílias nos fins de semana. A presença de múmias egípcias e esqueletos de dinossauros no acervo exposto à visitação despertava especial fascínio entre o público infantil.

Ainda levará algum tempo para que as novas gerações possam visitar o palácio, que também foi residência da família real, tendo abrigado a corte portuguesa recém-chegada ao Rio, em fuga da invasão napoleônica.

Reabertura parcial em 2022

O museu tem reabertura parcial prevista para setembro de 2022, no bicentenário da independência do Brasil. A instituição é vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estima em cinco anos o prazo de reconstrução total, orçada em R$ 250 milhões.

As obras estão atrasadas, e não somente em razão da pandemia. De acordo com a própria direção do museu, a demora se deve a problemas por parte da empresa de construção que venceu a licitação para reerguer a fachada e os telhados do palácio.

Semanas após o incêndio, a Unesco estimou em dez anos o prazo de recuperação completa do museu, considerando o acervo. Apesar dos problemas no andamento da obra, a organização elogia o desempenho do trabalho conduzido até aqui.

A coordenadora de Cultura da Unesco no Brasil, Isabel de Paula, ressalta que, mesmo no contexto da pandemia, avanços importantes foram divulgados, como a aprovação pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) do projeto de restauro das fachadas e telhados do bloco histórico do Paço de São Cristóvão. As obras devem ser iniciadas até princípios de 2021.

“O prédio administrativo do novo campus acadêmico será concluído em novembro, e a obra de reforma e ampliação da Biblioteca Central deverá ser contratada já no próximo mês de outubro. Boas notícias, portanto, que animam nossa caminhada”, avalia Isabel de Paula.

Apelo por doações

Segundo a direção do museu, o valor total arrecadado até agora permite o custeio de 50% da restauração completa. No dia 19 de agosto, a Assembleia Legislativa do Rio oficializou uma doação de R$ 20 milhões do Fundo Especial do Parlamento Fluminense para as obras de restauração do palácio.

Já nos três primeiros meses após o incêndio, a instituição conseguiu arrecadar R$ 90 milhões. Mais de metade do valor — R$ 43 milhões — veio de uma emenda parlamentar da bancada do Rio de Janeiro. O restante dos recursos foi aportado por bancos de fomento, como o BNDES, e instituições de apoio à ciência.

Assim está um dos corredores do museu hoje: valor total arrecadado até agora permite o custeio de 50% da restauração completa – Foto: Arquivo Museu Nacional

Um ano após a tragédia, a Fundação Vale fez uma doação de R$ 50 milhões e se juntou ao comitê gestor de governança responsável por conduzir o projeto de recuperação do museu e atrair mais investimentos privados, com representantes da UFRJ, Unesco e BNDES.

“O Museu Nacional é um projeto vencedor, não é de ‘vamo ver’. Ninguém imaginava que a Alerj entraria com R$ 20 milhões”, afirma Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional. Ele apela para que as fundações, sobretudo internacionais, apoiem o processo de reconstrução, com aportes financeiros e doações de acervos.

“Temos a oportunidade de reconstruir um museu de História Natural e Antropologia que sirva de modelo para toda a América Latina. Se perdermos essa chance, teremos todos nossa parcela de culpa. A cultura aproxima povos, e é o que a gente mais precisa vendo a imagem do país no exterior. A reconstrução do museu custa um quarto da recuperação de uma igreja, com influência bem maior”, diz.

Na última terça-feira (01/09), Kellner frisou a importância da participação do governo alemão no processo desenvolvido até aqui. “A Alemanha auxiliou muito no trabalho de resgate do acervo com doação de luvas, máscaras e em questões delicadas de eletricidade. Não foi exigida nenhuma pré-condição, perguntaram as necessidades e trouxeram apoio”, relata.

Apenas quatro dias após o incêndio que destruiu o Museu Nacional, o governo alemão anunciou a doação de 1 milhão de euros para a reconstrução do Museu Nacional. A verba tem sido entregue de forma escalonada, a pedido da direção, para que seja utilizada racionalmente. Até setembro do ano passado, já haviam sido transferidos 326.179 euros.

Museu vive

Sem casa e com seu acervo em recuperação, o Museu Nacional continua vivo pelas pessoas que dedicam suas vidas à instituição. Francineia Fontes, a Francy, é uma indígena da etnia Baniwa, originária de São Gabriel da Cachoeira (AM) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (MN). Ela define o Paço de São Cristóvão como uma grande maloca — cabana comunitária utilizada por povos indígenas da região amazônica, na Colômbia e no Brasil.

Gavetas destruídas, mas alguns objetos preservados puderam ser encontrados – Foto: Arquivo Museu Nacional

A estudante, que não conhecia a instituição de 202 anos até se candidatar para o programa de mestrado, em 2017, acredita que a importância do acervo que o fogo pode ter destruído faz do palácio um território encantado, onde os mais diferentes povos ameríndios se encontram pela reunião de suas memórias.

“Lá tinha muita coisa que sempre existiu nas malocas: peças, artefatos, cada um com seu significado diferente. O material incrível que tinha do povo Baniwa dava a sensação de que meus avós estavam lá naqueles adornos. Não sai da minha cabeça o quanto queria ter trazido meu pai para ver de perto as coisas dos nossos ancestrais”, lamenta Francy.

Na ausência do espaço físico que reunia o quinto maior acervo museal do mundo e coleções de enorme relevância em diferentes áreas da História Natural e Antropologia, restou à instituição seu patrimônio humano. “Cada aluno ou professor, indígena ou não, carrega um pouco do museu. De alguma forma, faz parte e está aí para reconstruir. Temos as memórias, e podemos contar pra quem não pode conhecer o que tinha lá dentro”, diz a estudante.

O trabalho de resgate

Uma equipe de pesquisadores do museu vem trabalhando constantemente no resgate do acervo atingido pelo fogo. Os profissionais envolvidos garimpam peças inteiras e fragmentos de objetos das mais diversas coleções, a serem reconstruídos parcial ou integralmente.

Na última terça-feira (01/09), foram apresentadas à imprensa nove peças da coleção imperatriz Tereza Cristina, que originalmente contava com cerca de 700 peças do século 7 a.C. ao 3 d.C, com destaque para os Afrescos de Pompeia, recuperado em fragmentos.

A esposa do imperador Pedro 2 era a responsável por criar a coleção de Arqueologia Clássica do Museu Nacional. Ela chegou ao Brasil em 1843 e trouxe nas malas peças de escavações arqueológicas feitas em cidades próximas a Nápoles, na Itália.

Ainda é cedo para se ter dimensão do que foi preservado e o que será possível recuperar no trabalho de resgate. A pandemia forçou a interrupção da etapa de coleta e identificação do material encontrado, feita em local fechado, com progresso superior a 90%.

Equipes reduzidas começaram, então, a fazer um inventário das peças e fragmentos localizados, enquanto as próximas etapas do trabalho são planejadas. A desaceleração dos trabalhos permitiu ao bioarqueólogo Murilo Bastos, pesquisador da casa, revisitar seus projetos de pesquisa pela primeira vez em dois anos.

Antes do incêndio, ele estava dedicado ao projeto da reconstrução facial de “Ernesto”, o esqueleto de um indivíduo que habitou o Rio de Janeiro há dois mil anos. O nome é uma homenagem ao odontólogo Ernesto de Salles Cunha (1907-1977), pioneiro nos estudos de paleopatologia de povos antigos no Brasil.

O envolvimento com o resgate do acervo não deixou tempo para nenhuma outra atividade. Ainda no início do trabalho, as mãos de Murilo retiraram dos escombros uma peça-símbolo da instituição: o crânio de Luzia, aquela que teria sido a primeira habitante das Américas há mais de 11 mil anos

Vinculado ao Museu desde 2006, quando ingressou como estagiário, o pesquisador afirma que a experiência de ter a própria instituição de pesquisa como sítio arqueológico transformou sua vida.

“Quando teve o incêndio, eu não conseguia pensar em simplesmente trabalhar na minha pesquisa, mas me perguntava se eu teria cabeça para enfrentar o resgate. Aos trancos e barrancos, vi que dava para continuar. Apesar da perda incalculável para a humanidade, espero que esse aprendizado faça de mim um pesquisador melhor e uma pessoa melhor”, afirma.

Fonte: dw.com

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