PUBLICADO EM 08 de nov de 2018
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A nostalgia de um futuro que poderia ter sido mas foi adiado

O professor Luiz Gonzaga Belluzzo é um mestre em duas artes. Tem o domínio da economia, que nunca reduz à arte matemática de muitos de seus pares, e também em outro campo notável, a arte da escrita, que manifesta em alguns textos de grande valor científico e literário.

Por José Carlos Ruy

Getúlio Vargas assina o decreto que institui o salário mínimo

Ele que publicou na edição desta terça-feira (6) do jornal “Valor Econômico”, o artigo “Nostalgia do futuro”, título que faz lembrar um clássico notável escrito em meados do século XVII pelo padre Antonio Vieira, sua clássica “História do Futuro”.

A ligação entre estes dois textos, separados no tempo por mais de quatro séculos, decorre da ousadia literária de terem como tema um tempo que ainda não foi vivido: o futuro. Nostalgia gerada, nestas tentativas de antevisão daquilo que ocorrerá, pela análise daquilo que, tento acontecido, acalentou sonhos que não se sabe se virão a tornar-se realidade ou não.

Belluzzo inicia seu texto com uma referência ao fim do império romano visto pelas lentes de dois grandes comentaristas: Petrônio, o escritor romano autor daquele que é um dos mais antigos romances já escritos, Satyricon – transformado em filme quase mil anos depois de seu aparecimento por outro satirista notável, o cineasta Federico Fellini. Que usou aquela história, narrada no crepúsculo do império romano para escancarar “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”, diz Belluzzo citando uma entrevista do mestre do cinema. E trás a reflexão para o Brasil de nossos dias. “Nesta hora em que muitos se submetem ao medo ou escolhem o ódio, não é despropositado recordar momentos que inspiraram vida, insuflaram esperanças e ensejaram conquistas às mulheres e homens dos Tristes Trópicos. Vasculhar o passado com os olhos no horizonte é um saudável exercício de nostalgia do futuro”, diz ele.

“Nós, brasileiros, padecemos, hoje, as dores de uma indagação crucial: corremos o risco de sermos piores do que já fomos, ou podemos ser muito melhores do que parecemos? Já tivemos nossos dias de grandes aspirações e realizações”.

Ele se socorre, para desenhar uma resposta a esta questão crucial, à trajetória do desenvolvimentismo representado por Getúlio Vargas que, em seu tempo, enfrentou as mesmas forças retrógradas e reacionárias que hoje impedem o desenvolvimento brasileiro.

Ele se refere como o Brasil, sob Vargas, enfrentou a crise mundial provocada pela queda da Bolsa de Nova York em 1929, e soube aproveitar as oportunidades que apareceram naquele momento. “Entre 1930 e 1945, o “fazendão” atrasado e melancólico do Jeca Tatu – a terra da hemoptise, do bicho-do-pé e da lombriga – cedeu espaço para a construção da economia urbano-industrial. O governo brasileiro de Getúlio Vargas enfrentou derrocada dos preços do café, causada pela crise de 1929, com políticas de defesa da economia nacional: a compra dos estoques excedentes e a moratória para as dívidas dos cafeicultores. Essas medidas e a desorganização do mercado mundial – provocadas pela depressão e depois pela guerra – ensejaram um forte impulso à industrialização do país. Compreendeu-se que industrialização era a única resposta adequada aos inconvenientes da dependência da demanda externa”, explica Belluzzo. Contexto em que a indústria brasileira pode crescer como nunca, apoiada pela ação governamental.

A indústria cresceu “rapidamente não só para suprir a demanda doméstica, mas também para atender às exportações. Ainda durante a guerra, o presidente Getúlio Vargas negociou com os americanos a construção da siderúrgica de Volta Redonda. Esse empreendimento, crucial para as etapas subsequentes da industrialização brasileira, entrou em operação em 1946”.

“O projeto ‘desenvolvimentista’ invadia o imaginário social. À revelia dos senhores da casa-grande, ele foi construído por uma singular articulação entre as camadas empresariais nascentes, a fração nacionalista do estamento burocrático-militar, as lideranças intelectuais e o proletariado em formação”. Mas a oposição contra a industrialização pelos setores tradicionais da economia brasileira, que se beneficiavam da subordinação do país ao mercado externo, como fornecedor de alimentos e matérias primas, foi intensa.

“Eleito em 1950, Getúlio Vargas lançou, em 1951, o Plano de Eletrificação, criou em 1952 o BNDE, a Petrobras, em 1953. O avanço da industrialização só poderia ocorrer com a modernização da infraestrutura e a constituição dos departamentos industriais que produzem equipamentos, insumos e bens duráveis de consumo”.

A oposição contra Vargas foi intensa. “Desde a sua eleição, em 1950, até o suicídio, em 24 de agosto de 1954, enfrentou as manobras da oposição que urdia suas habituais e tediosas maquinações para ‘melar o jogo’, sempre, é claro, em nome da democracia”. Tentaram impedir sua posse alegando que não teve maioria absoluta na eleição; Depois, tentaram paralisar o governo, inclusive com uma tentativa de impeachment. O establishment civil e militar, apoiado pela estridência da imprensa conservadora cresceu depois que, no início de 1954, Vargas enviou ao Congresso um projeto para adotar a Lei de Lucros Extraordinários. “A pancadaria chegou ao paroxismo quando o ministro do Trabalho, João Goulart, anunciou o aumento de 100% do salário mínimo”. Vargas demitiu Jango e também o ministro da Guerra, general Espírito Santo Cardoso, mas não apaziguou a oposição. “Getúlio reagiu e retomou a escalada nacional-desenvolvimentista. No dia 1º de maio de 1954, Getúlio decretou o aumento do salário mínimo anunciado por Jango”.

A crise continuou e cresceu, levando Vargas ao suicídio em 24 de agosto de 1954. “Dias antes, o presidente escreveu seu derradeiro bilhete: ‘À sanha dos meus inimigos, deixo o legado de minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo o que desejava’. Vargas sabia que as conquistas trabalhistas impostas pela legislação social de 1942 não ensejavam ainda a almejada incorporação das massas aos padrões ‘modernos” de produção e de consumo, sobretudo em razão do secular atraso das relações de trabalho no campo e da completa exclusão política dessa camada social, mergulhada na miséria e na semiescravidão”.

Neste ponto, já finalizando seu artigo, Belluzzo faz ampla menção à carta-testamento onde Vargas denunciou: “Contra a justiça do salário mínimo se me desencadearam os ódios Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco Quando vos humilharem sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta sentireis em vosso peito a energia para a luta, por vós e por vossos filhos”.

A nostalgia do futuro, que dá título ao artigo, está aí – não na recordação dos eventos de mais de meio século atrás, onde conflito semelhante ao que o Brasil vive hoje – o enfrentamento entre desenvolvimentistas que querem o avanço do país e neoliberais que querem manter o atraso e o subdesenvolvimento. Não – a nostalgia não é do passado mas do futuro que trazia inscrito e que, na atual conjuntura, enfrenta um adiamento que poderá ser medido por décadas. Mas que se afirmará, com certeza, levado adiante pela luta democrática e progressista dos brasileiros que se opõem às forças do atraso que neste momento detém a hegemonia mas serão derrotadas com certeza.

José Carlos Ruy é jornalista e escritor

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