PUBLICADO EM 01 de set de 2019
COMPARTILHAR COM:

Milícias desaparecem com uma pessoa a cada dois dias no Rio

Dados são do setor de Inteligência da Polícia Civil e levam em consideração 18 municípios cobertos pelas Delegacias de Homicídios (DHs); descobertas de cemitérios clandestinos expõem ação dos paramilitares

Esperança: mãe segura foto de Alex, levado há 12 anos. Ela criou um grupo na Baixada Foto: Roberto Moreyra / Agência O GLOBO

Por Rafael Galdo e Selma Schmidt em o Globo

Neste sábado, a família de Alex Pereira da Silva comemoraria seus 27 anos. Em vez de festa, foi mais um dia de uma busca dolorosa que não cessa. Há 12 anos, milicianos o capturaram na calçada de casa, em Nova Iguaçu , jogaram o rapaz no porta-malas de um carro, e ele desapareceu . Destroçados, o pai toma remédios controlados, e a mãe só se mantém firme porque não desistiu de encontrá-lo. A esperança é achar Alex vivo. Mas, a cada cemitério clandestino da milícia descoberto no estado , ela se desespera , ao mesmo tempo em que acredita que uma resposta possa ser desenterrada.

— Dizem que o tempo passa, e a dor diminui. É mentira. São 12 anos que não durmo, à espera de uma notícia. Vivo uma grande interrogação. Aonde vou, levo a foto do meu filho comigo. Quem sabe alguém possa reconhecê-lo — desabafa a mãe de Alex.

Aflições semelhantes são compartilhadas por centenas de famílias que tentam descobrir o paradeiro de desaparecidos em áreas dominadas por esses grupos paramilitares . Diretor do Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil, o delegado Antônio Ricardo Nunes estima, com base em informações de inteligência, que as gangues, quase a totalidade milícias, dão sumiço a uma pessoa a cada dois dias nos 18 municípios da Região Metropolitana cobertos pelas delegacias de homicídios ( DHs ). O que, segundo ele, representa de 5% a 10% do total de desaparecimentos nessas cidades.

Parte das histórias que estavam ocultas começa a ser revelada com a descoberta de cemitérios ilegais. Nos últimos 12 meses, investigações das DHs e do Ministério Público estadual ( MPRJ ) encontraram seis deles — dois em Itaboraí , dois em Queimados , um em Belford Roxo e outro em Itaguaí — com pelo menos 45 corpos ou ossadas.

Vidas perdidas: corpos enrolados em plásticos enterrados em Belford Roxo, na Baixada Foto: Divulgação / MPRJ e DHBF

Subnotificação
Há indícios de que a quantidade de cadáveres aumentará, e o número de desaparecidos está subestimado, de acordo com promotores, especialistas em segurança e relatos de parentes de vítimas.

— Temos que guardar a tristeza para a gente, fechar a boca para não morrer também — desabafa a mulher de um dos mortos identificados recentemente numa cova em Itaboraí. — O perigo é que continuo morando no mesmo lugar.

Muitas famílias optam pelo silêncio. Entre a dor de perder um ente querido e o temor de represálias, prevalece o medo. Há quem sequer preste queixa dos desaparecimentos. Outros, que procuram a polícia, depois se isolam.

— Eu me lembro do meu filho todos os dias. Mas não posso nem cobrar a prisão dos assassinos. Sofro sozinha. Sobrevivo hoje só pela misericórdia de Deus — diz a mãe de uma outra vítima de Itaboraí.

No começo de julho, foram descobertos dois cemitérios no município, nos bairros de Visconde de Itaboraí e Itamarati, com 18 corpos e seis ossadas. Não faz muito tempo, eram regiões pacatas e afastadas, quase rurais. Assistiram, primeiro, à chegada do tráfico de drogas. Em seguida, ao domínio do grupo paramilitar ligado a Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, que está preso. Foi implantado o terror numa área pobre, próxima às obras inacabadas do Comperj. De tão cruel, a milícia local ficou conhecida como “disco voador”, por desaparecer com suas vítimas.

Apenas em Itaboraí, o promotor Rômulo Santos Silva, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco/MPRJ), acredita que ainda haja 50 corpos a serem resgatados. Se somados aos desaparecidos da milícia em Queimados e Itaguaí, o número sobe para cerca de 200. Em Visconde de Itaboraí, parentes de vítimas ainda suportam, calados, visitas mensais de milicianos que cobram uma taxa de R$ 20 de todos os moradores. É o que ocorre com o parente de um jovem de 16 anos desaparecido este ano.

— Andei por necrotérios, hospitais… Testemunhas me contaram que ele foi levado por milicianos num carro. Mas não contei esse detalhe à polícia, porque tenho medo. Aqui, acabou a liberdade. Os assassinos sumiram com vários jovens — lamenta.

Ali, não se pode dividir a angústia com os vizinhos nem fazer perguntas sobre os desaparecidos porque há informantes dos criminosos por toda parte, a cada esquina.

A tática de desaparecer com os corpos remete ao passado, aos desaparecimentos forçados da ditadura militar. Foi adotada também pelo tráfico. E as milícias a intensificaram nos últimos dois anos. Vale a ideia de que, “sem corpo não há crime”, encobrindo a barbárie e driblando estatísticas de homicídios.

— Ao desaparecer com os corpos, a milícia mascara a violência na região — analisa o promotor do Gaeco Fábio Corrêa. — São grupos mercenários que buscam se apropriar de qualquer fonte de renda e atividade econômica, com um grande grau de perversidade. Na Baixada, estão em quase todos os municípios.

DNA é última esperança
Ainda que os cemitérios comecem a ser localizados, as investigações esbarram nas dificuldades de identificação das vítimas. Dos 45 corpos e ossadas encontrados desde agosto do ano passado, 11 tinham sido identificados até a semana passada. Tatuagens e peças de roupas ajudaram a perícia. Na última operação, na semana retrasada, num poço artesiano em Queimados, a DH da Baixada contou com especialistas em antropologia forense para ajudar com quatro ossadas recolhidas.

A tarefa é hercúlea. No Instituto Médico-Legal ( IML ) de Tribobó, para onde foram levados os restos mortais dos corpos de Itaboraí, os peritos recolheram amostras de ossos para tentar exames de DNA, já que, da maioria das vítimas, só restaram esqueletos. Os resultados desse tipo de análise podem demorar de 18 a 24 meses.

A mãe de Alex, desaparecido em Nova Iguaçu, colheu material dela para um possível cruzamento de dados com o de corpos localizados. A expectativa é achar seu filho:

— Quando sequestraram o Alex, eu nem sabia o que era uma milícia. Dois policiais foram identificados e condenados por cárcere privado. Ficaram só um ano na cadeia.

Outra dificuldade é detectar os cemitérios, normalmente em lugares ermos. Relatos anônimos auxiliam na procura. Só de janeiro a julho deste ano, o Disque-Denúncia recebeu 14 informes sobre covas, mais do que todo o ano passado (13). Nove das denúncias deste ano davam conta de cemitérios na cidade do Rio. Já foram feitas operações em Santa Cruz e Campo Grande, sem sucesso.

Fonte: O Globo

 

ENVIE SEUS COMENTÁRIOS

QUENTINHAS