PUBLICADO EM 29 de abr de 2018
COMPARTILHAR COM:

A história brutal e quase esquecida da era de linchamentos de negros nos EUA

Negros – Em 1904, o afro-americano Luther Holbert foi amarrado a uma árvore em Doddsville, no Estado americano do Mississippi, por uma multidão que o acusava de matar um fazendeiro branco. Naquela época, os Estados Unidos viviam um período de violência e segregação raciais.

Em 2005, o Senado dos Estados Unidos pediu desculpas por não ter aprovado uma legislação proibindo linchamentos

Junto de Holbert, também presa a uma árvore, estava uma mulher – acredita-se que era sua esposa. Ambos foram obrigados a erguerem as mãos. Em seguida, seus dedos foram cortados um a um, e depois jogados para a multidão, como uma espécie de souvenir macabro. Suas orelhas também foram cortadas.

Além disso, os dois foram espancados. Uma espécie de saca-rolhas foi usada para fazer buracos em seus corpos e retirar pedaços de suas carnes. Finalmente, Holbert e a mulher foram jogados em uma fogueira e morreram queimados.

A tortura e o assassinato de Holbert e da mulher desconhecida foram assistidos por uma multidão de homens, mulheres e até crianças, todos brancos. Enquanto presenciava o linchamento, o público comia ovos recheados e bebia limonada ou uísque, com a mesma atitude tranquila de quem está fazendo um piquenique.

Este episódio de linchamento brutal está longe de ter sido o único nos Estados Unidos. Entre 1877 e 1950, 4,4 mil pessoas foram linchadas no país, segundo registros da Iniciativa por uma Justiça Igualitária (EJI, na sigla em inglês), uma organização não governamental. A grande maioria delas eram pessoas negras.

É o que os historiadores chamam de “era dos linchamentos”. Não era uma forma de fazer justiça pelas próprias mãos. Tratava-se, na verdade, de crimes raciais.

Mais de 4,4 mil afro-americanos morreram durante a ‘era dos linchamentos’

Linchamentos foram anunciados nos jornais da época
A “era dos linchamentos” se estendeu até meados do século 20. Seu ápice foi entre 1890 e 1930, explica Stewart Tolnay, professor de Sociologia da Universidade de Washington.

Em alguns casos, inclusive, eram publicados anúncios nos jornais, convocando as massas para participarem. “Três mil pessoas vão queimar um negro”, dizia uma notícia do New Orleans State, de 1919. “John Hartfield será linchado por uma multidão de Ellisville às 5 da tarde de hoje”, falava o Daily News de Jackson, Mississipi, do mesmo período.

“Os casos em que os linchamentos foram anunciados nos jornais são poucos, ainda que tenham resultado em algumas das maiores multidões. Mais frequentes foram os casos em que massas pequenas detinham e linchavam alguém, a quem acusavam de ter cometido um tipo de crime. Eram eventos rotineiros e silenciosos”, indica Tolnay, que publicou dois livros e diversos artigos sobre o tema.

O fato de estas mortes poderem ser anunciadas na imprensa, com antecedência, demonstra que não se tratava de ações impulsivas executadas por uma turba exaltada. Havia um planejamento. Some-se a isso que era muito raro que os linchadores fossem julgados.

A EJI destaca que as mortes não eram resultado da ação de uns poucos extremistas, mas sim atos públicos violentos que contavam com a participação de toda uma comunidade. Além disso, eram toleradas pelas autoridades e os responsáveis não enfrentavam nenhum tipo de consequência legal.

“Os linchamentos eram atos de violência racial que estavam no centro de uma campanha sistemática de terror que perpetuava e respaldava uma ordem social injusta. Estes linchamentos eram terrorismo”, aponta a organização em seu informe.

Público de um linchamento de afro-americanos em Indiana, em 1930

De supostos crimes ao simples fato de esbarrar em brancos
A maior parte de vítimas de linchamentos era negra. Entre 1882 e 1889, a proporção era de 4 negros para cada branco. Posteriormente, entre 1890 e 1900, aumentou para 6 negros para cada branco. Depois disso, chegou a 17 para 1.

Segundo o estudo da EJI, cerca de 30% dos afro-americanos linchados foram acusados de homicídio. Outros 25% foram acusados de agressão sexual. “A definição de violação sexual de um negro a uma branca no Sul dos Estados Unidos era incrivelmente ampla. Não era necessário o uso da força, porque a maior parte dos brancos rechaçava a ideia de que uma mulher branca poderia consentir uma relação sexual com um negro”, considera a organização.

Outras centenas de negros perderam a vida acusados de provocar incêndio, praticar roubo ou simplesmente por “vadiagem”.

Havia acusações mais banais. Segundo o estudo da EIJ, o afro-americano Jesse Thornton foi linchado em Luverne, Alabama, em 1940 por ter se referido a um policial pelo nome, e não por “senhor”. Já em 1916, Jeff Brown foi linchado em Cedarbluff, Mississipi, por tropeçar acidentalmente em uma jovem branca enquanto corria para pegar o trem. O soldado Charles Lewis foi linchado em 1918, em Hickman, Kentucky, por se negar a esvaziar os bolsos enquanto estava vestindo seu uniforme militar.

O professor Stewart Tolnay aponta que os linchamentos não eram uma forma de justiça popular frente a um sistema de justiça oficial que não funcionava.

“Havia um sistema penal perfeitamente adequado que podia lidar com os delinquentes, fossem eles brancos ou negros. O linchamento dos negros tinha um objetivo diferente: deixar uma mensagem muito clara para a comunidade negra de que havia limites para sua ascensão social”, afirma Tolnay.

Já os brancos que eram linchados costumavam fazer parte de uma camada marginalizada da sociedade, explica Tolnay. Eles “nunca eram linchados pelos motivos banais pelos quais os negros eram mortos. Além disso, não costumavam sofrer torturas”, afirma Tolnay.

Depois da Primeira Guerra Mundial, os linchamentos recomeçaram pela ação de grupos supremacistas, como a Ku Klux Klan

Negros foram privados de direitos
A “era dos linchamentos” teve seu epicentro no Sul dos Estados Unidos. Se iniciou depois do fim da Guerra Civil americana e da declaração formal de fim da escravidão, em 1863. Para os pesquisadores, não se trata de coincidência.

“Depois da Guerra Civil, cerca de 4 milhões de escravos negros se tornaram livres e passaram a competir com os brancos (por empregos) nas economias dos estados do Sul”, explica Tolnay.

“Os negros foram ameaçados até que ficaram completamente privados de direitos de participação política, por volta do ano 1900, e o Sul ficou governado pelo sistema de castas raciais, no qual havia uma clara linha de separação entre a ‘raça branca superior’ e a ‘raça negra subordinada'”.

“Os brancos ricos eram a elite e os brancos pobres usavam o linchamento para reforçar esse sistema de castas raciais e reduzir as probabilidades de ascenção social dos negros do Sul”, acrescenta.

Afro-americanos fugiram do Sul para o Norte
Os linchamentos foram uma das causas da migração massiva de cerca de 6 milhões de afro-americanos do Sul para o Norte dos Estados Unidos, entre 1915 e 1970. No Norte, se estabeleceram em guetos.

Essa redistribuição da população reduziu a disponibilidade de mão-de-obra barata no Sul, algo que segundo Tolnay pode ter convencido as elites do Sul sobre a necessidade de mudanças.

“Os linchamentos se converteram em algo vergonhoso para o Sul, à medida que a economia se desenvolvia. A elite branca tentava atrair capitais externos, então precisava mudar a imagem do Sul. Essa era uma prática brutal, espantosa e desumana, que não ajudava”, assinala o professor.

Deste modo, o fenômeno foi se reduzindo até acabar. Mas sem que, segundo a ONG EJI, houvesse um processo de reconhecimento da brutalidade do passado e de reconciliação, como ocorreu na Alemanha com relação ao Holocausto ou na África do Sul sobre o apartheid.

Depois da abolição da escravidão, em 1865, aumentaram os ataques racistas contra os afro-americanos

Monumento para lembrar as vítimas
Apesar de ser uma parte importante da história dos Estados Unidos, a “era dos linchamentos” é pouco conhecida. Para mudar isso, em 26 de abril, foi inaugurado o Monumento Nacional pela Paz e Justiça em Montgomery, no Estado americano do Alabama.

“Diga o nome de um afro-americano linchado entre 1877 e 1950? A maior parte das pessoas não conhece nenhum. Milhares de pessoas morreram, mas não se pode nomear uma sequer? Por quê? Porque não temos falado sobre isso”, comentou Bryan Stevenson, fundador da EJI, sobre o motivo por trás da criação do Monumento.

O Monumento espera apresentar para o público o contexto da história do terror racial nos Estados Unidos, com o uso de recursos artísticos. Além disso, foram criados mais de 800 memoriais de aço de cerca de 2 metros de altura, um para cada condado dos Estados Unidos onde afro-americanos foram linchados. Neles, estará grafado o nome das vítimas.

Cada um desses monumentos tem uma réplica, que a EJI espera entregar para as regiões correspondentes. A ideia é que as esculturas sejam expostas nos próprios locais, recordando as histórias de linchamento.

Para os responsáveis da EJI, o número de regiões que solicitarem o envio dessas réplicas será um indicador de quanto se avançou no caminho da verdade e da reconciliação.

 

Confira Billi Holiday interptretando a canção Strange Fruit. A canção não é dela, mas ficou marcada. A letra de  “estranho fruto” denuncia as vítimas do horror racista.

Strange Fruit

Southern trees bear strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

Here is fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop

Fruta estranha

Árvores do sul carregam frutos estranhos
Sangue nas folhas e sangue na raiz
Corpos negros balançando na brisa do sul
Fruta estranha pendurada nas árvores de álamo

Cena pastoral do sul galante
Os olhos esbugalhados e a boca torcida
Perfume de magnólias, doces e frescas
Então o cheiro repentino de carne queimada

Aqui está a fruta para os corvos arrancarem
Para a chuva se reunir, para o vento chupar
Para o sol apodrecer, para as árvores caírem
Aqui está uma colheita estranha e amarga

Fonte: Com  BBC Brasil

ENVIE SEUS COMENTÁRIOS

  • Jocelmar Silva dos santos

    Acabei de assistir, 12 anos de escravidão, desejei ouvir essa música, dolorida

QUENTINHAS