PUBLICADO EM 26 de out de 2020
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Professores relatam censura em colégios militares

Sem acordo, a volta às salas de aula dos colégios militares foi parar na Justiça em ao menos quatro estados — Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Foto: Arquivo

Por Rute Pina, da Agência Pública
Em fevereiro de 2019, o então comandante do Colégio Militar de Porto Alegre coronel Claudio Faulstich reuniu cerca de 200 funcionários em um auditório da escola para um anúncio: a partir daquele momento, alguns temas estavam proibidos em sala de aula. Entre os assuntos vetados, o militar citou explicitamente as palavras homofobia e racismo.

“Ele procurou minimizar a interferência dele e disse que era uma ordem superior, da Depa [Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial, departamento do Exército]. Mas, em tom ameaçador, disse que se alguém tentasse contrariar essas normas poderia sofrer consequências”, relata o professor Rafael*, que pediu anonimato por medo de represálias, como a maioria de seus colegas que conversou com a reportagem da Agência Pública.

O que surpreendeu Rafael não foi a interferência no conteúdo das aulas. O professor, que trabalha no sistema de colégios militares há mais de dez anos, conta que já havia recebido orientações por escrito para alterar provas com questões envolvendo política, “para evitar propaganda partidária”. O educador se espantou com o encontro para divulgar normas até então implícitas. A situação anormal fez parte dos professores enviar uma carta de repúdio ao comandante duas semanas após o episódio.

“As coisas se tornaram mais abertas, como, por exemplo, fazer uma reunião com todos os profissionais de ensino para falar uma coisa que sempre se praticou de forma velada. Isso me pareceu uma posição de ataque mais explícito. Antigamente, a perseguição era mais individual. Mas chegamos a esse nível em que há abertura para dizer em um salão: ‘Agora é assim’”, analisa o professor.

O relato de Rafael se soma a uma dezena de outras entrevistas que a Pública fez com professores civis do sistema de colégios militares em Recife, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Porto Alegre. Os educadores relataram “censura” e “intervenção nos conteúdos” nas salas de aula das 14 instituições de ensino regular gerenciadas pelo Exército – e vistas como modelo de ensino pelo presidente Jair Bolsonaro.

Os colégios militares integram o Departamento de Educação e Cultura do Exército (Decex), mas não preparam para a carreira militar. São escolas de ensino regular, do fundamental II ao médio. Na sua maioria os estudantes são dependentes de militares, que sofrem os reflexos das obrigações profissionais dos pais em razão das peculiaridades da carreira. Já as vagas remanescentes são abertas ao público por meio de concursos. O primeiro colégio militar foi fundado no Rio de Janeiro em 1889. O mais recente, localizado em São Paulo, foi inaugurado este ano.

A proibição de abordar feminismo e gênero, citar programas de governos anteriores, como o Minha Casa Minha Vida ou Bolsa Família, debater a existência de racismo no Brasil ou fazer analogias com discussões recentes do noticiário foram alguns dos episódios relatados pelos professores ao mencionar o aumento do conservadorismo e da influência de discursos do Escola Sem Partido na administração dos colégios militares, mantidos com orçamento do Ministério da Defesa. O movimento Escola Sem Partido defende o fim do que chamam de “doutrinação ideológica” nas escolas e repreende debates como a igualdade de gênero nas salas de aula.

Além disso, os profissionais relataram assédio a professores que questionaram o retorno às aulas presenciais, após seis meses de ensino remoto por causa do isolamento, em cidades que ainda têm número de casos elevados de Covid-19.

O professor Antônio Araújo Jr. dá aulas de biologia no Colégio Militar de Brasília desde 2015. Ele afirma que o projeto pedagógico do colégio “sempre foi simpático às Forças Armadas”, principalmente em disciplinas como história ou português, mas observa que as interferências aos conteúdos lecionados se intensificaram – e passaram a atingir, inclusive, as áreas de exatas e biológicas.

“Eu achava que tinha liberdade porque era visto como professor de uma área técnica. Aquela ideia positivista de que a ciência é neutra. Minhas aulas sobre sexo, reprodução, sexualidade aconteciam sem controle”, relata o professor. “A postura negacionista e anticientífica ficava restrita a alguns temas das disciplinas de humanas.”

Os docentes entrevistados disseram que devem entregar, para análise, com pelo menos um mês de antecedência as provas que serão aplicadas aos alunos. Essa análise é registrada num documento chamado “processo de prova”, em que constam os comentários de todos os envolvidos na elaboração da atividade.

A primeira vez que Antônio viu uma interferência ideológica em uma prova que não de disciplinas como redação ou história foi em meados de 2016, quando o comando do colégio mandou uma equipe refazer uma avaliação de química porque uma questão trazia a fórmula da cocaína. “Eles disseram que isso poderia ser entendido pelos pais como um incentivo ao uso de drogas ou mesmo à produção de drogas”, lembra. “Na época, a gente chegou a rir disso porque era como se o comandante tivesse só entendido ‘fórmula’ como uma ‘receita’ para preparar alguma coisa. Mas a gente não percebeu que ali já estava uma espécie de articulação com o princípio ideológico do movimento Escola Sem Partido, que já estava começando a ganhar força.”

Os casos, segundo o professor, deixaram de ser pontuais. Ele se lembra de uma questão de biologia em que contextualizou processos hormonais do corpo humano, como o estímulo ao sistema nervoso que faz o coração bater mais rápido quando se vê uma pessoa atraente e aumento de hormônios durante a gravidez, contando a história de um casal desde que se conheceu até quando teve um filho. A prova, entregue para aprovação do colégio com antecedência de cerca de um mês, foi vetada. “O comando disse que poderia dar a impressão de que estamos ensinando os alunos a namorarem. E a escola era contra o namoro na adolescência.”

Vitrine conservadora

Durante as eleições de 2018, o presidente Jair Bolsonaro, ainda candidato, em seu plano de governo prometeu criar colégios militares em todas as capitais em dois anos. A avaliação do professor Araújo é que, a partir daquele ano, o colégio militar em Brasília passou a ser a vitrine de um ensino ultraconservador. “Por isso, a escola não poderia ter nenhum traço progressista. Qualquer atividade, aula, documento, prova tinha que ser livre de qualquer coisa que se confunda com progressismo.”

Já em junho deste ano, com as aulas ocorrendo em uma plataforma virtual, um professor de geografia do Colégio Militar de Brasília foi afastado depois de ter criticado, durante uma aula, a atuação da Polícia Militar em uma manifestação pró-democracia ocorrida em São Paulo no dia 31 de maio. Aos alunos do 9º ano, o major Cláudio Fernandes disse que a PM agiu com “dois pesos e duas medidas” e que a ação policial “remete a um fascismo, o que a gente não quer mais isso no mundo”.

A fala foi denunciada por pais de alunos – prática que Araújo afirma ser corriqueira, já que a escola atende, em sua maioria, filhos e filhas de militares, que muitas vezes têm algum vínculo com o comando do colégio. O caso do afastamento do professor gerou nota de repúdio de estudantes, ex-alunos e professores, que ficaram surpresos com a posição do colégio. “É assustador porque, além de ir a público, eles expuseram um colega militar. Quebraram o vínculo corporativista só para se assumirem publicamente ultraconservadores”, avalia Araújo. Um abaixo-assinado reuniu mais de 8 mil assinaturas a favor do professor Fernandes.

Entre atividades que foram extintas no último ano, o colégio deixou de participar, em 2019, da Olimpíada Nacional em História do Brasil, projeto de extensão da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), competição que premia escolas públicas e particulares de todo o país. Naquele ano, a competição tinha como tema uma homenagem aos “Excluídos da História”.

Esse anúncio foi recebido com surpresa pelos colegas e estudantes, lembra outro professor, Reinaldo*, que dá aulas de história do Colégio Militar do Rio de Janeiro. “Foi lamentável porque os estudantes estavam em pleno processo [de preparação para a Olimpíada]. Essa ordem veio de cima e toda a equipe do colégio recebeu a notícia com tristeza, porque era um momento muito legal de integração dos alunos”, lamenta o professor.

O professor de história diz que alguns temas são “absolutamente proibidos” em sua disciplina. “Você não pode falar em ‘golpe de 1964’, mas em ‘revolução de 1964’. Não se pode falar em tortura e coisas assim. E por conta disso eu, que já cheguei no colégio marcado como ‘sindicalista’, nunca peguei os anos em que se trabalham esses conteúdos. Jamais vão me colocar numa posição de dar uma aula dessas. Sempre, nos colégios militares, houve pressões sobre os conteúdos e as formas de trabalhar. Isso é uma constante. A gente tem sempre um controle muito grande do nosso trabalho.”

Já Márcia*, uma colega de Reinaldo na unidade do Rio de Janeiro que leciona português, afirma que a possibilidade de trabalhar com livros de literatura de autores contemporâneos ficou ainda mais restrita. Desde o ano passado, o colégio adotou uma lista de livros permitidos, a maioria clássicos. “Já tentamos pedir outros autores, mas a resposta da chefia é que não há justificativa para incluir nenhum outro livro naquela lista. Então, se surgir um livro novo que lançou agora, a gente não pode trabalhar com ele.”

Segundo ela, temas do Enem como intolerância religiosa, de 2016, e violência contra a mulher, de 2015, não são bem-vindos. “O Enem já foi tachado de comunista”, diz a professora. “Eu me sinto péssima. É uma censura que, ainda que você se cerque de todos os cuidados, é muito exaustivo. É claro que eu sei que a gente tem uma legislação que diz que o militar não deve tomar partido político. Por estar dentro de uma instituição militar, a gente sempre respeitou muito isso. Mas eles confundem muito o que é política. Por exemplo, dependendo do aspecto que você for falar sobre a fome, vai ser cortado. E isso é um assunto político, apesar de não ter nada a ver com partidário. A fome existe no Brasil desde sempre. Mas tudo o que eles possam ler como forma crítica ao governo atual vai ser proibido.”

Procurada pela Pública, a assessoria do Decex informou que o Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB) adota os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e outros previstos nas Normas de Planejamento e Gestão Escolar (NPGE).

No entanto, o órgão não respondeu às perguntas sobre a existência de orientações a professores sobre temas que não podem ser tratados em sala de aula. “Se os Colégios Militares se destacam no cenário educacional brasileiro, isso se deve ao conjunto formado pelas tradições e valores amalgamados pela sua instituição mantenedora, o Exército Brasileiro, entre os quais aponto a LEALDADE, o RESPEITO, a DISCIPLINA e a ORDEM, bem como pela competência efetiva dos nossos professores em sala de aula, que realmente compreendem o Projeto Pedagógico do SCMB”, diz a nota, com palavras em caixa-alta da própria assessoria.

Pressão pelo retorno às aulas presenciais

No dia 15 de setembro, uma orientação enviada a todas as unidades dos colégios militares determinou para o dia 21 daquele mês o retorno às aulas presenciais, após um semestre de afastamento devido à pandemia de Covid-19. Professores questionaram o retorno da instituição federal antes do calendário das escolas públicas na maioria das cidades, algumas das quais ainda estavam em situação epidemiológica considerada crítica, caso de Porto Alegre.

Sem acordo, a volta às salas de aula dos colégios militares foi parar na Justiça em ao menos quatro estados — Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em todos eles, as entidades de classe dos professores conseguiram decisões liminares favoráveis para adiar a volta. Ao recorrer da decisão, a Advocacia-Geral da União (AGU), que representa a instituição federal, defendeu que “a exposição a riscos é inerente à formação e à vida militar”.

O coordenador do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (Sinasefe), o professor de história Marcelo Assunção questiona o argumento: “Eles estão colocando em risco não só os professores militares, mas jovens e crianças de 10 anos. Correr risco é inerente à carreira militar, mas o que um jovem de 10 anos tem a ver com isso? O que o motorista de van que vai levar eles até a escola tem a ver com isso? O que os pais civis ou seus avós, tios e irmãos, que podem se infectar com essa história toda, têm a ver com esse risco?”

No Rio, o Sinasefe, entidade que representa os professores civis, decretou greve sanitária – ou seja, a paralisação apenas de atividades que sejam consideradas de risco para a comunidade escolar. “Mandamos um material jurídico e epidemiológico mostrando que não se deveria abrir naquele momento. O colégio ignorou e sequer respondeu. Então, no dia seguinte, a gente convocou uma assembleia”, explica o professor.

O sindicalista questiona a volta sem planejamentos, laudos ou testes. “O colégio não tinha nenhuma preparação, os professores estão batendo cabeça. A ideia de distanciamento social foi feita com turmas com mais de 50 alunos em uma sala”, afirma Assunção.

No Distrito Federal, a professora Carolina* relata um momento “muito complicado, de muito assédio”, para pressionar pela volta às aulas presenciais. Como ocorreu no Rio de Janeiro após a Justiça ter impedido professores civis de voltar às salas de aulas, os educadores receberam uma convocação por telefone para se voluntariar e auxiliar os militares – a Constituição Federal proíbe a categoria de fazer greve – nas atividades dentro da instituição.

“Eles ligam para as pessoas para assinarem um documento de que estão indo por conta própria, por vontade própria. Alguns professores não têm vontade, mas mesmo assim se sentem constrangidos”, relata a professora. “E detalhe: estamos trabalhando remotamente. Eu mesma estou trabalhando muito mais do que trabalhava antes.”

Em Belo Horizonte, a Justiça Federal determinou o teletrabalho a todos os professores, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. Contrariando as recomendações das autoridades sanitárias do município, que ainda não estabeleceu o funcionamento de escolas, o Exército desafiou a decisão judicial e abriu o colégio no dia 21 de setembro, com aulas ministradas por professores militares – uma nova decisão judicial aumentou a multa em dez vezes: R$ 50 mil por dia em caso de descumprimento do teletrabalho.

O procurador da República Helder Magno da Silva diz que pais de alunos procuraram o Ministério Público Federal, preocupados com o retorno à escola. “É interessante que o próprio colégio militar, na resposta ao Ministério Público, louva o seu sistema de ensino a distância. Se o sistema funciona tão bem, não faz sentido essa pressa toda no retorno das aulas presenciais [antes das escolas públicas]. Parece ser mais uma questão de atuação do governo federal para a reabertura, alinhado ao discurso da cloroquina, da reativação da economia e do enfrentamento das decisões dos municípios e dos estados”, analisa Silva.

Enquanto não há acordo, o colégio militar anunciou que o retorno dos alunos não é obrigatório. Já no Rio de Janeiro, os professores civis permanecem em greve sanitária.

O Decex informou à Pública que, até o momento, cinco dos 14 colégios militares retornaram às atividades presenciais: as unidades de Manaus, Belém, Brasília, Rio de Janeiro e Fortaleza. “Outras Unidades vêm realizando ações de preparação para o retorno. Todos os colégios do nosso Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB) estão muito bem preparados para atender às necessidades de proteção dos seus integrantes em relação à pandemia da COVID-19 e em condições de cumprir as regras sanitárias impostas”, defende na resposta.

O Decex informou também que, desde o início da pandemia até o final de setembro, 30 professores civis e servidores foram diagnosticados com coronavírus em todo o sistema de colégios militares e que a instituição não registrou mortes relacionadas à Covid-19.

“Escola-modelo”

O plano de Bolsonaro de criar colégios militares em todas as capitais já era tido por especialistas em educação como uma “promessa impossível”, já que têm uma estrutura cara e público restrito, lembra a pesquisadora Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora no Distrito Federal da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Sem cumprir a promessa de campanha, o governo federal apostou em outra saída: a militarização das escolas públicas já existentes. Em 2019, o Ministério da Educação (MEC) lançou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, que funciona por meio de adesões dos municípios. A meta do governo federal é que 216 escolas passem a funcionar nesse modelo até o final da gestão Bolsonaro.

“Criar um colégio no nível dos colégios do Exército é um valor muito caro para alguém que não quer investir em educação”, analisa Catarina. Estudantes de colégios militares custam três vezes mais do que um aluno da rede pública regular: enquanto o Exército gasta R$ 19 mil por ano por aluno, o Ministério da Educação investe R$ 6 mil, segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo. No ano passado, os colégios militares receberam R$ 26,17 milhões em repasses do Ministério da Defesa.

“Bolsonaro arrumou uma forma muito barata de imprimir essa lógica [militar] nas escolas públicas básicas que já existem. E do jeito que ele está interferindo nas escolas básicas ele não conseguiria nem dentro das escolas do Exército”, pondera a especialista.

Para ela, o maior nível de interferência em conteúdos nos colégios militares reflete uma lógica corporativista que guia essas instituições, ainda que elas sejam públicas. “São escolas públicas, mas o público só tem acesso àquilo que sobra aos dependentes dos militares. Não é privado no sentido do financiamento, mas no sentido das normas e a quem se destina”, pontua a professora.

Esse processo, de acordo com ela, reflete a dimensão que ideias do Escola Sem Partido ganharam desde 2016. Também pensando no efeito da censura aos alunos, Rafael*, professor em Porto Alegre, se questiona: “Como é que a gente vai lutar por uma sociedade sem racismo e sem homofobia se a gente sequer pode abordar esses temas em sala de aula?”. “Particularmente acredito em um ensino para a promoção da cidadania. Não acredito em um ensino que sirva apenas para preparar o aluno para a próxima etapa. E a gente não tem como formar um indivíduo para uma sociedade democrática tendo um ensino antidemocrático.”

* Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.

Fonte: Agência Pública

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