PUBLICADO EM 14 de nov de 2019
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Falsa tese de polarização compromete a democracia, avaliam especialistas

Mídia não distingue polarização de radicalização, afirma cientista político, lembrando que Bolsonaro já dizia em 2018 que não aceitaria derrota eleitoral

Tem gente que defende a ditadura, esquecendo-se da tortura, assassinatos e exílio a que foram submetidos vários brasileiros e brasileiras.

O termo polarização está sendo usado no Brasil de forma equivocada. O que está ocorrendo no país e em outras nações da América Latina é radicalização, avalia o cientista político Vitor Marchetti. Para ele, embora o bolsonarismo tenha se beneficiado das regras democráticas para se consolidar na vida política, hoje joga contra a democracia. E os meios de comunicação contribuem com essa lógica ao naturalizar a conduta dessa direita que atualmente ocupa o poder.

“A gente não vive uma polarização efetivamente, mas vive de um lado um projeto político que se coloca e que tem muita dificuldade em conviver com o ambiente democrático e todos os protocolos que o sistema democrático pressupõe”, afirma Marchetti. “Na realidade, a radicalização que existe hoje no país nem é consequência da polarização, mas da existência de um grupo político que é um grupo de direita que chegou ao Palácio do Planalto e não pactua com as regras democráticas. Ou seja, a polarização não é o problema, mas a radicalização da existência desse grupo que não pactua com as regras da democracia.”

O Brasil desde os anos 1990, lembra ele, viveu uma polarização política capitalizada por PT e PSDB. “Desde as eleições de Fernando Henrique passando por Lula, Dilma. Fez enfrentamentos políticos partidários duros, com críticas. E era uma polarização que acontecia em um ambiente institucional dentro de uma lógica de normalidade democrática”, diz, destacando que tudo isso é extremamente natural, legítimo e saudável para a democracia.

Para Marchetti, até houve um movimento do PSDB nos últimos anos de ocupar esse espaço do discurso da direita, mas seguindo a lógica da disputa eleitoral. “Isso se rompe nas eleições de 2014, quando Aécio Neves e PSDB dão sinais bastante dúbios em relação a como se comportariam diante do resultado das eleições com a vitória de Dilma Rousseff”, recorda. “Num primeiro momento Aécio reconhece a derrota, mas logo depois o PSDB começa um movimento de questionar os resultados, a confiabilidade das urnas. Daí a gente sabe o processo todo como se deu.”

Professor na Universidade Federal do ABC, Marchetti afirma que o PSDB perdeu controle da situação. “Não é ele a liderar esse processo, é uma direita mais radical que não tem compromisso nenhum com o status democrático. E o mais interessante é que boa parte dessa extrema-direita nasceu e vive dentro da lógica do marco democrático. Jair Bolsonaro e seus filhos foram eleitos, mas eles pactuam com a democracia desde que a democracia favoreça a si e ao seu grupo. Começam então a lançar constantes dúvidas sobre o regime democrático”, critica.

Marchetti lembra a postura de Bolsonaro ao longo das eleições de 2018. “Ele dizia que não aceitaria nenhum resultado que não fosse aquele em que ele seria eleito. Isso, dentre tantas outras coisas, é muito revelador do quanto se formou no país um grupo de direita antidemocrático, que tem muitas resistências em aceitar o perfil das regras do jogo.”

Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (GPCRIM Uefs), Felipe Freitas destaca que, ao contrário de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva jamais desdenhou da ordem democrática ou da legalidade. “Já Bolsonaro, na sua trajetória pessoal, acumula discursos e práticas de descompromisso com a democracia”, observa. “Foi processado por descumprir regras das Forças Armadas. Como deputado sempre produzir discurso de profundo desrespeito às instituições, à legalidade. E tem confirmado isso como presidente da República, recebendo censura pública até mesmo do Supremo Tribunal Federal.”

Vocação democrática

Para o cientista político, a esquerda no Brasil estabeleceu-se na Constituição de 1988 com essa disposição e vocação democrática, de respeitar as regras do jogo, de fazer a disputa eleitoral. “Mas, nesse período, acabou-se produzindo uma direita com baixíssima disposição a pactuar com as regras de 88, pactuar com o jogo democrático.”

Marchetti vê com preocupação o fato de a imprensa comercial não fazer distinção de uma coisa para outra, do que é polarização e do que é discurso radicalizado. “Se pegar a história do PT, nunca fez um discurso de que a ruptura do jogo democrático era um caminho que o partido optaria a seguir. Ao contrário: as sinalizações foram progressivas. Desde a primeira eleição que o Lula disputa em 1989, houve um movimento progressivo de aceitar as regras do jogo.”

O cientista político critica a postura maniqueísta de considerar que polarização é igual a radicalização. “Radicalização é quando um grupo político se manifesta contra essas regras ou contra os resultados que essas regras podem produzir. E não é a esquerda brasileira hoje, ou pelo menos não é o partido majoritário da esquerda hoje, o PT, ou uma liderança como o Lula que tem feito esse discurso.”

Para o veterano jornalista Palmério Doria, a imprensa quer passar a “lorota” dos extremos opostos. “Lula atinge todos os espectros e é capaz de unir todo o país, até a direita. Ele tem capacidade de conciliação e provou isso durante oito anos.”

O professor de Direto Penal Felipe Freitas concorda. “Não há qualquer paralelismo possível entre Lula e Bolsonaro, seja em termos de trajetória política, de pertencimento partidário, seja em termos de conduta e comprometimento com a democracia. Bolsonaro é um extremista de direita, autoritário. E Lula é um político de esquerda bastante comprometido com a democracia e a legalidade”, avalia.

Para Freitas, impressiona como os três grandes jornais escritos de circulação nacional – O Estado de S.PauloFolha de S. Paulo e O Globo – insistem nos seus editoriais em reforçar essa tese de que Lula e Bolsonaro são diferentes expressões de uma polarização. “Isso é muito contraproducente para a sociedade brasileira, porque isso é inverídico e normaliza a conduta de Bolsonaro, que é uma conduta que não pode ser normalizada. Não é possível que a gente transforme em coisa banal os sucessivos ataques à democracia, às instituições, que Bolsonaro tem praticado como presidente da Republica, e é isso que a gente acaba fazendo quando reproduz esse discurso falso de que há uma polarização sob esse aspecto.”

América Latina em chamas

A situação de vários países da América Latina são exemplo do que pode significar a radicalização na política. “Vemos a formação de grupos em torno da ideia de que o jogo democrático não é o único possível, empreendendo golpes, envolvendo em rupturas institucionais, rompendo as regras do jogo para se perpetuar ou se manter no poder ou pra tomar o poder subvertendo a ordem eleitoral”, ressalta Marchetti.

“Na literatura de ciência política, Juán Linz (sociólogo espanhol) diz que as democracias estão consolidadas quando a democracia é o único jogo possível, o único disponível a ser considerado pelos atores políticos. E o que a gente está vendo na direita brasileira é que esse pacto fundamental da consolidação democrática está sendo abandonado.”

Fonte: Rede Brasil Atual

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