PUBLICADO EM 21 de set de 2021
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A filosofia de Paulo Freire em prática: a história de Guiomar

Quando Guiomar Albuquerque tinha 13 anos de idade, ela começou a ensinar pescadores na favela da Ilha do Maruim, em Olinda, como ler e escrever. Uma excelente estudante na sétima série da escola paroquial local, Guiomar já compreendia que a alfabetização é um passaporte, não um direito de nascença. Era o ano de 1984. Ela havia assistido seu pai com dificuldades de assinar seu nome para que ele pudesse votar na próxima eleição, a primeira em vinte anos. Os generais que haviam governado o Brasil desde 1964 ainda estavam no poder. Guiomar tinha um emprego de monitora no Movimento de Alfabetização Brasileira (MOBRAL), a resposta da ditadura à tentativa do exilado Paulo Freire de incluir as massas sem voz na vida política do País. Ela também era voluntária no Centro de Ação Comunitária Batista, onde crianças necessitadas, muitas delas filhas e filhos de pescadores, eram cuidados, ensinados e alimentados.

Com boneco gigante, manifestantes do #30MpelaEducacao, no Recife, fazem homenagem a Paulo Freire, patrono da Educação brasileira. O legado do educador pernambucano, que é reverenciado mundialmente, tem sido atacado no atual governo. Foto: Twitter Marco Zero Conteúdo

Peter Lownds (People´s World)

Os pescadores queriam começar uma cooperativa. Guiomar conduziu uma pesquisa para determinar quantos deles estariam interessados em aprender a ler. “Ninguém me ensinou a ensinar. O MOBRAL não treinava os professores. Eles nos davam livros de crianças, cartilhas, que não tinham nada a ver com a luta diária dos adultos.”

Um dia, um grupo de pesquisadores da Fundação Josué de Castro vieram para trabalhar com os pescadores. Como Paulo Freire, cujos Círculos de Leitura tinham sido populares em Olinda antes dos generais tomarem o poder em 1964, eles propunham estudar o mundo dos pescadores antes de sugerir qualquer mudança. Como professora, Guiomar foi convidada a se juntar a eles. Eles pediram a Guiomar para prestar atenção particular à linguagem dos homens, determinando quais palavras eles mais usavam. Os homens queriam aprender a ler, escrever e calcular, porque eles estavam sendo explorados por atravessadores, que lhes adiantavam dinheiro para consertar suas redes e compravam seus peixes por uma ninharia, revendendo-os para mercados no Recife por um belo lucro.

Os homens queriam negociar com os mercados diretamente. Eles precisavam ler e calcular. No princípio, eles a desafiaram. “Quem você pensa que é? Você é apenas uma criança!” Um homem tentou roubar o seu relógio. Eles disseram que ela não sabia o que era passar fome, fazer parte da batalha incessante que eles travavam com a vida. Eles estavam envergonhados de serem ensinados por uma garota de 13 anos de idade. Ser parte do programa MOBRAL também era vergonhoso. Eles insistiam que Guiomar fechasse a porta da classe, assim eles não seriam ouvidos lutando com as palavras que todos conheciam. Mas havia um muro próximo que as crianças subiam para provoca-los: “Mobral! Mobral!”

Quando Guiomar deixou a Ilha, aos 16 anos de idade, os pescadores tinham produzido dois livros sob sua tutela: um sobre suas vidas e trabalho e outro sobre o que sentiam ao ir à escola. Ela trouxe jornais para a classe e eles aprenderam a decifrar cartuns políticos. Na crítica dos cartunistas dos vinte anos de ditadura, os homens encontraram o que Paulo Freire chamou de “temas generativos”, o quanto eles tinham sido objetificados e desumanizados. Enquanto eles aprendiam a ler e escrever, eles viam que se sentiam menos como objetos e mais resolutos. Para Guiomar, decifrar os cartuns era essencial para o progresso deles.

Quando os homens disseram a Guiomar que eles estariam ausentes por uns poucos dias, porque a lua estava certa e as marés estavam boas para pescar, ela sugeriu acompanha-los: “Nós vamos ter aula no barco.”

“Não, não, não tem jeito. É escuro. O barco pode ter um vazamento.”

“Sim, há um jeito. Nós vamos fazer isso. Nós não precisamos de luz para dialogar. Além disso, eu não vou ser a monitora de vocês. Dessa vez, vocês vão ser os meus monitores.”

Estava escuro como breu e chuvoso. Essa era a primeira experiência real de Guiomar no mundo dos pescadores. Uma oportunidade de vê-los trabalhar. Além do recife que dá a Recife seu nome, as ondas a deixaram enjoada. À deriva em mares tempestuosos em um pequeno barco sem-terra à vista, nauseada, rodeada por homens dos quais sua vida dependia, ela descobriu sua vocação.

As experiências acumuladas naquela noite forneceram material suficiente para três semanas de estudo. Quando ela sugeriu que eles listassem “palavras chave”, os pescadores resistiram. “Porque nós temos que estudar a palavra “pesca”, quando é tudo sobre o que nós falamos?” eles queriam fazer sentenças com palavras não relacionadas com sua vida cotidiana. Guiomar argumentou que enquanto os pelicanos, cormorões e golfinhos pescavam instintivamente, os homens usavam estratégias e ferramentas: tecendo redes e armadilhas, construindo barcos, usando pontos de referência para localizar seus potes de lagostas.

Eles começaram a ver a si mesmos como produtores de cultura. Formar uma cooperativa era um bom negócio. Isso colocaria comida em suas mesas, compraria sapatos para seus filhos e evitaria ter que comprar tudo no crédito. Eles perceberam que “pesca” era uma palavra que definia sua profissão. Eles se sentiram orgulhosos de serem pescadores.

Quando eu entrevistei Guiomar, em 2002, ela era a chefe de uma escola pública que ocupa o mesmo prédio que o Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA), onde eu a encontrei pela primeira vez, em 1999. “Quando nos encontramos, nós tínhamos a melhor estrutura que você pode imaginar. Uma vez que a maioria dos professores estava trabalhando em suas monografias, nós estávamos entusiasmados com o seu estudo. Tudo era novo: a biblioteca de computador, o equipamento, tudo. Então os diretores desse prédio, que pertence ao governo municipal de Olinda, decidiram usá-lo para cursos de formação profissional, pelos quais as pessoas pagam. Houve eleições naquele ano e um partido conservador substituiu o PT (Partido dos Trabalhadores), em Olinda. “Quando nós voltamos, encontramos o prédio totalmente vazio. Eles roubaram tudo! Nós tínhamos cinquenta computadores no CEJA. Quando voltamos, encontramos apenas dois! Antes de irmos embora, nós tínhamos um laboratório de ciências com microscópios. Nós deixamos esse equipamento lá e essa foi a última vez que o vimos. Nós apresentamos uma reclamação e ela será ouvida no tribunal.

Durante o dia a escola funcionava, mas as condições eram caóticas. Em adição a 1.500 crianças da vizinhança imediata, 400 mais tinham recentemente sido adicionadas do Lixão, o lixão municipal, onde suas famílias viviam, peneirando o lixo em busca de comestíveis. Guiomar é uma de um grupo de voluntários que começaram uma escola no lixão. “Agora eles tiram 400 crianças fora do Lixão e as depositam aqui. Todas as salas de aula estão completamente preenchidas. Onde nós as colocamos? No pátio da escola, nos corredores, na cantina. Os professores estão no andar de cima dando aulas e as crianças do lixão estão sentadas nos corredores.”

Luciana Santos, prefeita de Olinda do Partido Comunista do Brasil, pediu a Guiomar para substituir a diretora diurna, que estava em licença médica. “Eu dou aulas duas manhãs e três tardes por semana, da pré-escola até a oitava série.” No primeiro dia como diretora temporária, o carro de Guiomar foi atacado: “’Esse é o carro da diretora!’ Era tudo o que eles tinham para dizer. As crianças correram, pegaram pedras e arranharam a pintura. Quando eu cheguei lá, o carro estava um desastre. A diretora ausente é uma nomeada política. Eles descontaram sua raiva no meu carro, pensando que era o dela. Ontem, um dos alunos jogou uma pedra em uma professora, que foi para o Pronto Socorro com um ferimento na cabeça. Os concursos públicos para futuros professores contam unicamente com testes escritos. Nenhum dos vencedores são entrevistados antecipadamente. Eu mesma estive no negócio de instrução privada por sete anos. Até agora, eu não tive que lidar com professores que carecem de qualquer tipo de sensibilidade. Eles levam uma hora para retornar para a sala de aula, depois de um intervalo de vinte minutos.

“Ontem, eu me encontrei com meus pais: ‘Então, você é a diretora. Você decidiu aparecer. Você se lembra que a escola existe?’ Essa é a ‘escola modelo’ de Olinda. Ela não parece uma escola. Ela é um manicômio. Uma completa casa de loucos, no momento. Mas você sabe, eu estou feliz que a Luciana me pediu para pegar o emprego. Eu estou pronta para isso porque se eu não estiver e não encontrar outra pessoa que esteja, a coisa toda vai colapsar. Há mil e quinhentas crianças lá. Mil e quinhentas crianças abandonadas, sendo deixadas a Deus sabe o que.”

Passaram-se dois anos antes que eu visse Guiomar de novo. “Quando você esteve aqui da última vez, o CEJA estava sendo reestruturado,” ela me disse. “Hoje ele tem uma estrutura melhor, porque a escola retomou sua parceria com a Universidade. O CEJA costumava ser um projeto – hoje é uma escola.” Nós estamos usando todos os espaços das salas de aula aqui, mais a cantina e a biblioteca, por causa do número de alunos inscritos.”

Eu perguntei a ela sobre os 400 alunos do Lixão para os quais não havia espaço, dois anos antes. Olinda incluiu. Hoje, todos aqueles estudantes estão em salas de aula. Se não aqui, então, em outras escolas dentro da municipalidade. Outros alunos estão em outras escolas próximas. Esses estudantes recebem subsídios do governo de Lula e ficam na escola o dia todo. Eu me mantenho informada sobre o CEJA, porque a educação de adultos está no meu sangue.” Mesmo como diretora de escola e empregada há 17 anos na Municipalidade de Olinda, Guiomar ganha menos de $500 por mês. A conversa voltou para a política. Guiomar vai votar em Lula e Luciana, a prefeita comunista de Olinda, cuja inciativa de orçamento participativo ela exalta. A educação, como Freire nunca se cansava de nos lembrar, é inextricavelmente política.

Peter Lownds é um escritor e tradutor que vive Los Angeles (EUA).

Fonte: People´s World

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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