PUBLICADO EM 16 de jan de 2019
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A disputa política na Câmara: de Eduardo Cunha a Rodrigo Maia

É curioso que essas discussões nunca adquirem qualquer relevância ou penetração nas grandes massas de modo geral, mas elas sempre assumem uma relevância enorme no meio da militância de esquerda.

Por Arthur Silva

É impressionante: todas as vezes que há eleições para a presidência da Câmara ou do Senado a esquerda volta para uma mesma discussão velha e desgastante. De um lado, há aqueles que defendem o pragmatismo e a adesão aos candidatos viáveis do Centrão (que na maioria das vezes são apenas membros da direita fisiológica) para garantir presidências e presença dos partidos nas Comissões relevantes do Parlamento. De outro, há os partidários da “política das ruas” que defendem o apoio a políticos claramente identificados com a esquerda e nenhuma chance de vitória para “marcar posição” e “deixar clara a coerência” para a sociedade.

É curioso que essas discussões nunca adquirem qualquer relevância ou penetração nas grandes massas de modo geral, mas elas sempre assumem uma relevância enorme no meio da militância de esquerda. Isso tem um motivo: o que importa nesses debates não é a discussão em si, mas a disputa da militância de esquerda e de seu mercado de votos.

Esse é um daqueles momentos em que um grupo de deputados fala pra uma parte da base (geralmente a mais pobre): “nós somos os pragmáticos, nós somos que tem o pé na realidade, nós somos os que efetivamente defendem a população no parlamento”. Enquanto isso, outro grupo de deputados fala para a outra parte da base (geralmente a mais rica): “nós somos os verdadeiros parlamentares ideológicos, nós somos os que mantém a coerência, nós somos os que fazem a oposição de verdade à direita”.

Deixando o circo de lado, vamos debater o que interessa: se um militante arroga para si a postura revolucionária, isto é, a postura de quem ambiciona de fato mudar a realidade política e social do seu país, qual lado ele deve “adotar”? É comum ver aqueles mais identificados com os ideais socialdemocratas defenderem a postura mais pragmática, pois é imprescindível se chegar a algum nível de acordo para obter ganhos, por menores que sejam, para as bases populares. É por isso que este grupo acaba conquistando as grandes massas, porque tem ganhos concretos para oferecer em troca para a população mais pobre.

Por outro lado, é comum ver aqueles mais identificados com os ideais socialistas, ou de transformação mais radical defenderem a postura mais idealista. Quem tem suas necessidades materiais mais atendidas pode se dar ao luxo de defender “marcar posições” ou realizar “atos simbólicos” de “coerência e resistência”. É por isso que esta posição mais “radical” acaba agradando mais aos setores das classes médias, urbanizadas, do Sudeste, que são os mesmos que tem acesso privilegiado às redes sociais, e que acabam impondo sua visão no debate público, mesmo que socialmente estas questões não sejam tão relevantes.

Qual dos dois tem razão? Pra responder essa pergunta, sugiro que observemos o caso de um país onde uma mudança radical ocorreu: o Brasil. Aqui houve uma transição radical e estrutural da política em direção à direita. E sugiro também um ano de análise: o ano de 2015. Neste ano, Eduardo Cunha foi eleito presidente da Câmara dos Deputados ao mesmo tempo em que mega-protestos contra a presidente Dilma Rousseff foram organizados a partir da internet.

É preciso ter claro: a eleição de Eduardo Cunha foi extremamente importante para o impeachment de Dilma. Vamos lembrar que na época o governo federal, que tinha como Aloizio Mercadante seu principal articulador político, comprou a briga contra Cunha e o Centrão e apoiou um candidato “da esquerda”: o deputado Arlindo Chinaglia, do próprio PT. O resultado desta decisão foi um desastre político. Cunha se tornou presidente da Câmara no 1º turno, com 267 votos contra 136 votos de Chinaglia, o que já no resultado trouxe uma mensagem de humilhação para o governo federal, mostrando a debilidade de sua articulação política. Mas não foi só isso.

A vitória de Cunha contra o governo deixou nas mãos de Cunha o poder para abrir ou engavetar um processo de impeachment contra a presidenta, e fez com que o PT perdesse todas as posições nas Comissões da Câmara às quais teria direito, como maior partido da Casa. Na prática, isto significou o seguinte: sem presença relevante nas Comissões, o PT perdeu qualquer capacidade de determinar agendas de votação ou de realizar manobras regimentais para atuar em matérias do seu interesse.

Isto não significa apenas a perda de poder atuar em questões ideológicas, isto significa, por exemplo, a perda de capacidade de negociar com deputados de fora da esquerda a tramitação de matérias de seu interesse em troca de votos em uma outra votação estratégica, como digamos, uma votação de abertura impeachment. Ou seja, na derrota contra, Cunha o PT “marcou posição” e em troca perdeu, de forma muito prática, instrumentos de poder para conseguir negociar com os parlamentares em votações importantes, como foi a do impeachment. Não se trata de discussão ideológica: o partido perdeu poder, concretamente.

Em outra esfera de atuação, a construção do Vem Pra Rua, MBL, Revoltados ON LINE, e dos influenciadores digitais da direita como Joice Hasselmann, Olavo de Carvalho e até de políticos como Álvaro Dias e Jair Bolsonaro, foi determinante para o domínio que ela construiu nas mobilizações populares contra o governo. Estas mobilizações também foram extremamente importantes para o impeachment de Dilma. Os protestos maciços com centenas de milhares e até milhões de pessoas eram a face pública da grave crise que o governo atravessava.

A cada mega-manifestação lotando a Avenida Paulista os custos da negociação política do governo no Parlamento ficavam mais altos. A cada protesto televisionado, a direita política mobilizava suas bases, e dava a esperança concreta aos seus partidários de que o Brasil viveria uma mudança política radical. De que o governo Dilma cairia. De que Lula iria para a cadeia. De que o Judiciário “caçaria” os “políticos corruptos”, a despeito da lei “engessada demais”. De que o STF seria intimidado, e não aplicaria a lei na mesma interpretação que tinha até então. Tudo isso se confirmou.

E aqui vem o ponto central. A direita não privilegiou ou a atuação parlamentar, ou a mobilização de ruas. A direita, que teve uma visão total da realidade, fez os dois ao mesmo tempo. A cada derrota política do governo federal no parlamento, a mobilização da direita ganhou mais força. E a cada protesto com milhares de presentes, a direita parlamentar se fortalecia para derrubar o governo legitimamente eleito.

É por isso que ao mesmo tempo em que levantava multidões contra a “velha política” na Avenida Paulista, Kim Kataguiri se sentava com Eduardo Cunha, um dos políticos mais corruptos e nefastos da Câmara, para influenciar a agenda de votações da Casa e planejar a próxima rodada de manifestações. A esquerda simplesmente apontou com todo sarcasmo e ironia a “falta de coerência” de Kim Kataguiri, achando de alguma forma isso o prejudicaria politicamente.

Obviamente isso não ocorreu, porque a população de verdade, e não os militantes de internet, não mede os políticos por suas articulações, mas sim pelo impacto real que produzem na sociedade. E Kim Kataguiri, por ajudar a derrubar uma presidente, a prender a maior liderança popular do Brasil, e dar sequência ao macartismo da Lava Jato, foi recompensado com 465 mil votos. Assim como Alexandre Frota, Joice Hasselmann, e várias das lideranças da direita do ano de 2015, que foram eleitos com grande votação em 2018.

Pra quem é de esquerda e conhece um pouco de sua literatura, esta conversa pode lembrar um pensador famoso e revolucionário de ofício, Vladimir Lênin. Na obra O Estado e a Revolução, Lênin debate com os sociais-democratas russos apontando seu viés pelo “cretinismo parlamentar”, ou seja, sua crença de que o jogo do Parlamento seria o centro único e exclusivo da disputa política. Essa obra acaba sendo a principal justificativa teórica que a “esquerda radical” usa para atacar os defensores do pragmatismo parlamentar.

Eles só esquecem que Lênin nunca descartou ou minimizou a importância do alcance e dos mecanismos de poder que a atividade parlamentar dá. A crítica de Lênin ao cretinismo parlamentar não era contra o pragmatismo, que é inerente da atividade política. Era sim à falta de visão de totalidade que a esquerda social-democrata tinha, ao negligenciar ou esquecer as expressões da luta social fora do Parlamento, e achar que “aumentar a bancada” é o objetivo último da atividade política. O contexto era um cenário de altíssima mobilização popular na Rússia, e uma defesa dos mencheviques pela domesticação da base militante.

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É óbvio que ao parar de formar bases, ao não politizar a população, ao não conclamar o povo às ruas em momentos decisivos da história do país, ao tratar indicações para o Judiciário e Forças Armadas de forma “técnica”, o PT demonstrou sofrer da mesma aposta na institucionalidade e do mesmo cretinismo parlamentar que já destruiu todos os partidos sociais-democratas europeus. A base de todos os regimes sociais-democratas do mundo sempre foi uma atuação forte e vigorosa de sindicatos e movimentos populares, e tão logo esses movimentos se enfraqueceram, este modelo político-econômico se esfacelou.

Mas Lênin não era estúpido nem mais um dos sonhadores utópicos que o antecederam: ele era um realista político. Ele sabia que o Parlamento é um importante espaço de poder nas democracias burguesas, e que é importante disputa-lo e gerar ganhos para a classe trabalhadora ou constrangimentos para o poder estabelecido. Não se trata de debate ideológico, trata-se do reconhecimento factual do poder concreto que o Congresso tem. Foi com esse poder concreto do voto de cada congressista que Dilma foi derrubada da presidência e que teve sequência mais uma grande derrocada da esquerda brasileira. Hoje ninguém nem do povão nem da “militância esclarecida” se lembra de votação pra presidência da Câmara em 2015, as pessoas só se lembram que a presidente caiu.

Quando a esquerda defende um pragmatismo parlamentar, defendendo a candidatura de Rodrigo Maia por exemplo, sem atuar na formação de bases e sem construir uma visão estratégica de transformação da sociedade, ela salva o seu presente, mas sacrifica o seu futuro. Por outro lado, quando a esquerda defende coisas como “marcar posição” ou “manter coerência” em candidaturas isoladas e utópicas, como é a de Marcelo Freixo ou de qualquer petista hoje em dia, ela sacrifica seu poder de forma concreta no presente, esperando algo no futuro. É claro que entre ter ganhos num futuro hipotético ou no presente, a população mais pobre vai sempre preferir salvar o presente. Ou seja, no limite, os pragmáticos tem razão. Mas a visão do político e do militante revolucionário certamente tem de ir muito além disso.

Todas as vezes que vejo essas discussões de presidência da Câmara, e especialmente falas que colocam a atuação parlamentar em detrimento da mobilização social, vejo um sargento perguntando a um recruta na beira do campo de batalha se ele prefere ir pra guerra “usando fuzil ou munição”. Se a base atual de esquerda acredita que fazer política é privilegiar uma coisa ou outra, ela está mal formada. Se os parlamentares de esquerda seguirem a vontade dessa militância com medo de perder seus votos, estão errados. De 2019 em diante, vamos refletir um pouco com a derrota acachapante que sofremos nos últimos anos, e aprender com nossos adversários um pouco de leninismo: como disputar a política pra valer.

Arthur Silva, Servidor Público do Estado de São Paulo, Graduado em Ciências Sociais pela FFLCH/USP

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