Adaptado de Tridip Suhrud, para Time
“Às seis horas Mussolini.” Essa nota enigmática em seu diário de 12 de dezembro de 1931 é o único registro que M. K. Gandhi fez de seu encontro com Benito Mussolini, em Roma.
Gandhi veio, desde seus dias como estudante em Londres, a ter profundo carinho pelas pessoas da Europa, enquanto nutria profundas dúvidas sobre a natureza dos Estados europeus. Sua ternura pelas pessoas baseava-se na crença de que eles também – como as pessoas através do mundo que foram escravizadas pela Europa – foram triturados sob o calcanhar da civilização moderna, que era encarnada pela voraz estrutura colonial que a Europa tinha criado e perpetuado. Gandhi podia então contar entre seus amigos e colegas de trabalho muitas mulheres e homens europeus, e ele manteve um carinho de uma vida inteira pela cidade de Londres.
A civilização europeia, Gandhi sentia, tinha sido posta em cheque durante a Primeira Guerra Mundial.
Ela tinha se rendido quase inteiramente à crença de que a violência só poderia ser enfrentada por força destrutiva superior. Mas Gandhi acreditava que era possível alertar – e que este era seu dever – mesmo aqueles comprometidos com regras autoritárias, para a possibilidade da não-violência, não como uma arma dos fracos, mas dos espiritualmente superiores. Portanto, seu encontro com Mussolini.
E então, nos anos depois do encontro, quando a Europa se movia inevitavelmente na direção da Segunda Guerra Mundial, que ameaçava aniquilar toda a humanidade, Gandhi estava profundamente perturbado. Ele estava mexido com a possibilidade da destruição das Casas do Parlamento e da Abadia de Westminster, em Londres, e os monumentos similares na França e na Alemanha. Ele fazia parte das pessoas há muito subjugadas pela Europa, mas não podia contemplar com equanimidade a liberdade da Índia e a libertação do domínio colonial através da queda da Inglaterra e França, ou com a Alemanha destruída e humilhada. Um assunto que as pessoas poderiam tratar através da paz.
Em 1939, meses antes da 2ª Guerra, ele decidiu fazer um outro apelo, desta vez diretamente para o ditador nazista Adolf Hitler. Ele tentou novamente em 1940, uma vez que a guerra estava em andamento. O governo colonial não permitiu que nenhuma das cartas que ele escreveu para Hitler fossem mandadas, mas elas não foram atos de uma pessoa ingênua. Ele sabia que o único Deus que Hitler conhecia era a força bruta, mas como um devoto da verdade e um oponente não violento, Gandhi sentiu-se moralmente obrigado a apelar para Hitler e Mussolini porque, como seres humanos, eles também tinham a capacidade de distinguir a verdade da falsidade. Aqui estão essas cartas.
Querido amigo,
Amigos me pediram para escrever essas cartas para você em prol da humanidade. Mas eu resisti ao pedido por causa do sentimento de que qualquer carta seria uma impertinência. Algo me diz que eu não devo calcular e que eu devo fazer meu apelo por tudo que valer a pena. É bastante claro que você é hoje a única pessoa no mundo que pode evitar uma guerra que pode reduzir a humanidade ao estado selvagem. Você deve pagar o preço por um objeto, por mais valoroso que pode aparecer para você? Você vai ouvir o apelo de alguém que deliberadamente evitou o método da guerra, com considerável sucesso? De qualquer modo eu antecipo seu perdão, se eu errei em escrever para você.
Eu continuo, seu sincero amigo,
HERR HITLER, BERLIM, ALEMANHA
Carta para Adolf Hitler, 1940, WARDHA
24 de dezembro de 1940
QUERIDO AMIGO,
Eu me dirijo a você como amigo não como formalidade. Eu não possuo inimigos. Meu negócio na vida, nos últimos 33 anos, tem sido conseguir a amizade de toda a humanidade, sendo amigo da raça humana independentemente de raça, cor ou credo. Eu espero que você tenha o tempo e desejo de saber como uma boa porção da humanidade que tem vivido sob a influência da doutrina da amizade universal vê sua ação. Nós não temos dúvidas de sua bravura e devoção a sua pátria, nem acreditamos que você é o monstro descrito por seus oponentes. Mas seus próprios escritos e pronunciamentos e aqueles seus amigos e admiradores não deixam espaço para dúvidas de que muitos de seus atos são monstruosos e impróprios à dignidade humana, especialmente na estimativa de homens como eu, que acreditam na cordialidade universal. Tais são a humilhação da Tchecoslováquia, o estupro da Polônia e o engolimento da Dinamarca. Eu estou consciente de que sua visão de vida considera tais espoliações como atos virtuosos. Mas nós fomos ensinados desde a infância a considera-los atos degradantes para a humanidade. Consequentemente, nós não podemos possivelmente desejar sucesso para suas armas. Mas nossa posição é única. Nós resistimos ao imperialismo britânico, não menos que o nazismo. Se há uma diferença, é em grau. Um quinto da raça humana foi trazido sob o calcanhar britânico por meios que não suportarão escrutínio. Nossa resistência a isso não significa dano ao povo britânico. Nós procuramos converte-los, não os derrotar no campo de batalha. Nossa revolta é desarmada contra o domínio britânico. Mas se nós os convertermos ou não, nós estamos determinados a fazer seu domínio impossível por não-cooperação não violenta. É um método em sua natureza indefensável. É baseado no conhecimento que nenhum espoliador pode conseguir seu fim sem um certo degrau de cooperação, de boa vontade ou compulsório, da vítima. Nossos dominadores podem ter nossa terra e nossos corpos, mas não nossas almas. Eles podem ter essa última somente pela completa destruição de todos os homens, mulheres e crianças indianos. Que nem todos podem subir aquele degrau de heroísmo e que uma quantia justa de terror pode dobrar as costas da revolta é verdade, mas o argumento estaria ao lado do ponto. Porque, se um número justo de homens e mulheres forem encontrados na Índia que estariam preparados sem nenhum mal contra os espoliadores, para depor suas vidas, ao invés de ficar de joelhos para eles, eles teriam mostrado o caminho para a liberdade da tirania da violência. Eu peço para você acreditar em mim quando eu digo que você vai encontrar um inesperado número de tais homens e mulheres na Índia. Eles estão tendo esse treinamento nos últimos 20 anos. Nós temos tentado pelo último meio século jogar fora o domínio britânico. O movimento de independência nunca esteve tão forte como agora. A mais poderosa organização política, eu digo o Congresso Nacional Indiano, está tentando conseguir esse objetivo. Nós alcançamos uma medida muito justa de sucesso através de esforços não violentos. Nós estamos fazendo tentativas pelos meios certos de combater a violência mais organizada no mundo, que o poder britânico representa. Você os desafiou. Resta a ver se quem é melhor organizado, os alemães ou os britânicos. Nós sabemos o que o calcanhar britânico significa para nós e as raças não europeias no mundo. Mas nós nunca desejaríamos o fim do domínio britânico com a ajuda dos alemães. Nós encontramos na não-violência uma força que, se organizada, pode sem dúvida se corresponder contra uma combinação de todas as mais violentas forças no mundo. Na técnica não violenta, como eu disse, não há algo como a derrota. É tudo “faz ou morre”, sem matar ou machucar. Pode ser usado praticamente sem dinheiro, e obviamente sem a ajuda da ciência da destruição que você trouxe a tal perfeição. É uma maravilha para mim que você não vê que não é o monopólio de ninguém. Se não os britânicos, alguma outra força certamente vai melhorar seu método, e bater em você com suas próprias armas. Você não está deixando nenhum legado para seu povo do qual eles se sentiriam orgulhosos. Eles não podem ter orgulho em um recital de ações cruéis, mesmo habilmente planejadas. Eu, assim, apelo a você em nome da humanidade para parar a guerra. Você não vai perder nada referindo todos os assuntos da disputa entre você e a Grã-Bretanha para um tribunal internacional, de sua escolha conjunta. Se você atingir sucesso na guerra, você não vai provar que você estava no certo. Você vai apenas provar que sua força de destruição era maior. Considerando que um prêmio por um tribunal imparcial vai mostrar até onde é humanamente possível qual partido estava no certo. Você sabe que há não muito atrás eu fiz um apelo para cada britânico aceitar meu método de resistência não violenta. Eu fiz isso porque os britânicos me conhecem como um amigo, embora um rebelde.
Eu sou um estranho para você e para seu povo. Eu não tenho coragem de fazer para você o apelo que eu fiz para cada britânico. Não que eu não aplicaria a você com a mesma força que com os britânicos. Mas minha presente proposta é muito simples, porque muito mais prática e familiar. Durante esta temporada quando os corações das pessoas na Europa anseiam por paz, nós suspendemos até nossa própria luta pacífica. É muito pedir para você fazer um esforço por paz durante um tempo, que pode significar nada para você pessoalmente, mas pode significar muito para os milhões de europeus, cujo grito mudo eu escuto, porque minhas orelhas estão sintonizadas para ouvir os milhões de mudos? Eu pretendia abordar um apelo conjunto para você e o senhor Mussolini, que eu tive o privilégio de encontrar quando eu estava em Roma, durante minha visita para a Inglaterra, como um delegado para a Conferência de Mesa Redonda. Eu espero que ele leve isso como dirigido também a ele, com as necessárias mudanças.
Eu sou, seu sincero amigo, M. K. Gandhi
Fonte: Time.com
Tradução: Luciana Cristina Ruy
Rita De c v gava
É Hitler só conseguiu provar que seu poder de destruição era enorme.
…É uma pequena porcentagem do mundo que ainda o admira