PUBLICADO EM 27 de fev de 2022
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Crise na Ucrânia: os russos estão errados?

Por Luís Antonio Paulino

A esta altura dos acontecimentos é impossível predizer qual será o desfecho da crise da Ucrânia. Os cenários prováveis são muitos, mas em todos eles é possível apontar um traço comum. É o presidente Putin quem está dando as cartas e a resolução final da crise será no tempo e na direção que a Rússia quiser. Ameaças econômicas e militares dos Estados Unidos e de alguns países da Europa não estão tendo nenhum efeito sobre as decisões de Putin. A única coisa que poderia tê-lo demovido de ação militar em larga escala teria sido a aceitação por parte dos Estados Unidos e da Otan das condições por ele impostas: a não entrada da Ucrânia na Otan e a retirada das armas e tropas americanas e europeias de países da Europa Oriental que, no passado recente, fizeram parte da extinta União Soviética. Mas isso já é passado.

A guerra de palavras já ficou para traz; a guerra real já começou. Putin justificou a ação militar alegando a defesa das duas regiões separatistas habitadas por russos étnicos, que a Rússia acaba de reconhecer como as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. Pelo acordo de Minsk, assinado em 2015, a Ucrânia havia se comprometido a conceder autonomia a essas duas regiões, mas só não o fez como desencadeou uma ofensiva militar para retomar o controle da área que já deixou 14 mil mortos. Putin falou também em des-nazificar a Ucrânia, uma provável referência à sua intenção de desalojar o governo de extrema-direita que se instalou em Kiev desde 2014, quando o presidente eleito, Viktor Yanukovych, foi deposto por mais uma das “revoluções coloridas” patrocinadas pelos Estados Unidos na Europa Oriental.

O reconhecimento das duas repúblicas faz parte da estratégia de Putin para impedir a instalação de armas e tropas ocidentais dentro do que ele considera território russo. De quebra, resolve definitivamente o problema que vinha se arrastando há quase uma década e já deixado mais de 14 mil mortos. Ucrânia e Bielorrússia não são na visão de Putin dois países independentes, mas parte do território russo que Lenin e depois Stalin, como parte de sua política das nacionalidades (equivocada, na opinião de Putin), permitiram que se organizassem como repúblicas autônomas dentro da extinta União Soviética.

No caso da Ucrânia, os russos nunca cogitaram que aquela república autônoma da ex-URSS poderia se tornar um país independente, sobretudo por seus laços históricos e culturais com a Rússia (50% da população da Ucrânia tem o russo como primeira língua). Tanto isso é verdade que localizaram naquele território grande parte da capacidade industrial da antiga União Soviética e parte expressiva de seu arsenal atômico, que depois foi devolvido para a Rússia, quando da criação do país em 1991.

A aceitação da independência da Ucrânia foi, na visão de Putin, uma humilhação a que a Rússia foi submetida por ocasião da extinção da União Soviética. Tal situação foi tolerada por Putin enquanto a Ucrânia se manteve fora do alcance da Otan em seu movimento de cercamento da Rússia. Com a decisão de pedir ingresso na Otan, o atual governo da Ucrânia, que Putin despreza, cruzou a linha vermelha além da qual a Rússia não permite que a aliança ocidental comandada pelos Estados Unidos avance, o que na sua visão significa colocar armas e tropas americanas em território russo.

No fundo, talvez os russos não estejam tão errados. Como observou o jornalista Thomas L. Friedman, em artigo publicado no jornal New York Times e republicado pelo jornal o Estado de São Paulo (23/02/2022), a decisão de expandir a Otan para os países da Europa Oriental ao final da Guerra Fria foi uma provocação desnecessária dos Estados Unidos. No mencionado artigo Friedman arrola dois testemunhos insuspeitos: Bill Perry, ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos no governo Clinton, e George Kennan, o arquiteto da política americana de contenção da União Soviética, que deu origem à chamada “Guerra Fria”.

Bill Perry, conforme relata o jornalista, ao recordar esse momento anos mais tarde, Perry disse, ao público de uma conferência do jornal The Guardian:

“Nos anos mais recentes, a maior parte da culpa pode ser atribuída às medidas adotadas por Putin. Mas, nos primeiros anos, devo dizer que os EUA merecem boa parte da culpa. Nossa primeira reação que deu início a esse rumo desastroso foi o início da expansão da Otan, incluindo países da Europa Oriental, alguns dos quais fazem fronteira com a Rússia. Na época, trabalhávamos em proximidade com a Rússia e eles começavam a se acostumar com a ideia de que a Otan poderia ser uma aliada, e não uma inimiga … mas ficaram muito abalados com a presença da Otan bem nas suas fronteiras, e fizeram um forte apelo para que não levássemos adiante esses planos.”

George Kennan, em conversa com o jornalista no dia 2 de maio de 1998, também não poupou críticas à establishment belicista norte-americano. As palavras de Kennan, reproduzidas por Friedman no mencionado artigo:

“Acredito que seja o início de uma nova guerra fria. Acho que os russos vão, gradualmente, reagir de maneira bastante adversa, o que será refletido nas políticas deles. Me parece um erro trágico. Não havia nenhuma razão para isso. Ninguém está ameaçando ninguém. Tal expansão faria os pais fundadores dos EUA revirarem nas suas tumbas.”

“Assinamos um acordo para proteger uma série de países, mesmo sem ter os recursos ou a intenção de fazê-lo com um mínimo de seriedade. (A expansão da Otan) foi simplesmente uma decisão leviana de um Senado sem nenhum interesse real nas questões internacionais. O que me incomoda é a superficialidade e falta de informação vistas ao longo desse debate no Senado. Fiquei particularmente incomodado com as referências à Rússia como se se tratasse de um país louco para atacar a Europa Ocidental.”

“Será que as pessoas não entendem? Na Guerra Fria, nossas diferenças eram com o regime comunista soviético. E agora estamos virando as costas justamente para o povo que realizou a maior revolução pacífica da história para derrubar esse regime soviético. E a democracia russa é, no mínimo, tão avançada quanto a desses países que acabamos de prometer que defenderemos da Rússia. É claro que a Rússia vai reagir mal, e então (os responsáveis pela expansão da Otan) dirão que eles sempre alertaram para essa personalidade russa — mas isso é simplesmente um erro.”

Por último, nunca é demais lembrar que o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear quando a Rússia, a pedido de Fidel Castro, colocou seus misseis na ilha de Cuba. Por que seria diferente agora com a Ucrânia? Será que os russos estão tão errados assim?

Luís Antonio Paulino é professor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Fonte: Bonifácio

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