PUBLICADO EM 09 de jan de 2021
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Esquerda não está ante a ‘escolha de Sofia’ na eleição da Câmara

Candidatura para afirmar “independência” e ter 10 ou 15 minutos de ribalta para denunciar o “entreguismo do governo e suas políticas de destruição do Estado de bem-estar social” é desejar “ocupar o olimpo” de forma fugaz. A esquerda, nesse caso, não está diante da “escolha” ou “dilema de Sofia”.

O parlamento de um País como o Brasil — injusto, desigual e desequilibrado —, não é um espaço qualquer. É relevante que as forças políticas que defendem os genuínos interesses do povo tenham representantes, se possível muitos, em ambas as casas legislativas — Câmara e Senado.

Do contrário, será dominado por aqueles que defendem apenas os interesses da elite dominante e, de quebra, vários desses apenas com objetivo de se locupletarem. Como foi o caso de Bolsonaro, que passou 7 mandatos ou 28 anos como deputado fazendo pequenos negócios escusos que lhe tornaram homem rico, sem nada devolver ao País e ao povo em serviços retributivos.

Não será no Parlamento, sob a ordem capitalista ou burguesa, que a esquerda fará grandes transformações políticas, sociais e/ou econômicas. Isso não aconteceu em nenhum lugar no mundo. Mas é relevante, repita-se, ter representes no Congresso, a fim de disputar ideias e espaços (imaginar que não, é um erro grave; isso seria menosprezar o papel da instituição nos avanços civilizatórios) para expandir direitos e interesses do povo ou impedir ou ajudar a impedir retrocessos, sobretudo os graves, como seria a vitória do candidato de Bolsonaro na Câmara.

Assim, se deixar sucumbir pelo falso dilema entre apoiar os liberais ditos progressistas contra a extrema-direita obscurantista ou ter candidato próprio constitui-se num devaneio. Candidatura própria para afirmar “independência” e ter 10 ou 15 minutos de ribalta para “denunciar o entreguismo do governo e suas políticas de destruição do Estado de bem-estar social” é desejar “subir ao olimpo” de forma fugaz. A esquerda, nesse caso, não está diante da “escolha” ou “dilema de Sofia”1.

Relevância do Parlamento e seus limites
Duvidar, de um lado, da relevância do Parlamento ao ponto de deixá-lo ser transformado num “puxadinho” de um governo obscurantista como o ora ocupado por Bolsonaro seria erro crasso. Daí o acerto de a esquerda participar da amplíssima composição para derrotar a extrema-direita.

De outro, imaginar e fazer disso proselitismo, que não ter candidato mostra ausência de perspectiva de poder ou capitulação, expressa bem o quanto é necessário compreender o curso da luta política. As disputas políticas — inclua-se aí, a da presidência da Câmara —, devem ser calcadas na realidade concreta e objetiva do País. A hegemonia política, desde 2016, foi empalmada pela direita. Não seria qualquer candidatura de turno e, ainda sem chances reais de vitória, que poderia mudar esse quadro.

As disputas políticas e sociais não se dão apenas no Parlamento. Se dão também e, sobretudo, na sociedade. A propósito, a atual configuração política do Congresso é uma síntese dessa nova hegemonia erigida dos escombros do impeachment de 2016. Ter abandonado, menosprezado ou secundado os espaços sociais onde se dão as disputas da consciência político-social foi, talvez, o erro mais grave de um governo (2003 a 2016) que se pretendia popular e progressista.

As eleições municipais de 2020 comprovaram a hegemonia dos partidos que ora lideram o processo político brasileiro, o Congresso e as disputas nas 2 casas legislativas2. Confrontar essa realidade sem medir suas reais consequências pode trazer prejuízos incalculáveis. A esquerda está sob severa defensiva. A realidade, entre as décadas de 70 e 90, que permitiu acumular força mesmo perdendo eleições foi profundamente alterada.

Entender, talvez, a “revolução encalhada” na Alemanha, no final do 2º decênio do século 20, ajuda a compreender a relevância e os limites da luta parlamentar e institucional, que foram percebidos de forma contundente pelos revolucionários alemães, entre 1918 e 1919, quando a social-democracia, que governava o país e também tinha maioria no parlamento, esmagou a revolução germânica3. O poder real e de fato estava nas mãos da burguesia, que comandava o governo e o parlamento.

A propósito, daí derivou a ruptura entre a social-democracia e os comunistas alemães que se abrigavam no secular PSD (Partido Social- Democrata), instituído em 1863, com a formação do Partido Comunista, em dezembro de 1918. Os comunistas4 perceberam, então, que mesmo estando no governo e/ou com maioria no parlamento não era suficiente para imprimir as mudanças necessárias para alterar a estrutura social do país. Para isso, é necessário conquistar o poder político real e não apenas estar na institucionalidade.

Por fim, mas não menos importante, é relevante lembrar que todo acúmulo social e político, que permitiram ao PT e Lula vencer 4 eleições presidenciais começaram a erodir com as manifestações de junho de 2013. Implodiram com o impeachment da ex-presidente Dilma, em 2016. É como disse o economista Marcio Pochmann, em debate realizado com a direção estadual do PT no Rio Grande do Sul, em agosto de 2019: “A sociedade do final dos anos 70 e início dos anos 80, que deu origem ao PT, não existe mais”5.

Precisamos, todos, visitar ou revisitar os “intérpretes” do Brasil, os clássicos e os novos, a fim de entendê-los; decodificar a alma nacional não é obra para diletantes.

Marcos Verlaine, jornalista, analista político e assessor parlamentar licenciado do Diap
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NOTAS

1 “A escolha de Sofia” é expressão que invoca a imposição de se tomar decisão difícil sob pressão e enorme sacrifício pessoal, como a vista no filme homônimo de 1982, que valeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz. A trama dirigida por Alan J. Pakula, a partir do romance de William Styron, conta a história de Sofia, polonesa que, sob acusação de contrabando, é presa com seus 2 filhos pequenos, menino e menina, no campo de concentração de Auschwitz (Polônia) durante a 2ª Guerra. Um sádico oficial nazista dá a ela a opção de salvar apenas uma das crianças da execução, ou ambas morreriam, obrigando-a à terrível decisão. O trauma é relembrado por Sofia em 1947, quando ela, morando em Nova Iorque e casada com judeu americano, vive triângulo amoroso com aspirante a escritor.

2 TSE – MDB, PP, PSD, PSDB e DEM são os partidos que mais elegeram candidatos no 1º turno das Eleições 2020 – https://bit.ly/3ovDH5c – acesso em 8/01/21

3 DW Notícias – A revolução encalhada de novembro de 1918 na Alemanha – https://bit.ly/38qAQF5 – acesso em 8/01/21

4 O Partido Comunista da Alemanha (em alemão KPD – Kommunistische Partei Deutschlands) foi fundado em 30 dezembro de 1918, a partir da Liga Espartaquista, que originalmente era uma tendência revolucionária no interior do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), e do grupo Comunistas Internacionalistas da Alemanha (IKD). A LE era liderada por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, presos e assassinados em Berlim depois do fracasso do levante popular. Ambas as correntes se opuseram à 1ª Guerra, sob o argumento que se tratava de conflito imperialista, no qual a classe operária não tinha nada a ganhar e nenhum interesse a defender.

5 Portal Sul21 – Pochmann: “sociedade que deu origem ao PT não existe mais. Estamos com uma retórica envelhecida” – https://bit.ly/3s8kBEz – acesso em 8/01/21

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