PUBLICADO EM 21 de fev de 2019
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Em defesa do marxismo

Por José Carlos Ruy

A campanha conservadora contra o marxismo é intensa; ela cresceu desde a campanha eleitoral de 2018 e, agora, sob o governo de direita de Jair Bolsonaro, alguns membros do governo federal multiplicam os ataques contra o que chamam de “cultura marxista”, generalisando as acusações contra o pensamento avançado de todos os matizes. Em relação ao marxismo não há argumentos novos, mas repetem a longa série de inverdades usadas desde os tempos em que Marx e Engels escreviam e atuavam, no século XIX. A violência verbal continua igualmente simplista, repetitiva, e reflete a indigência intelectual dos acusadores.

O marxismo continua sendo, como disse o pensador francês Jean-Paul Sartre, a filosofia insuperável de nosso tempo. Embora simpatizaante, Sartre não foi propriamente marxista mas um existencialista com forte influência da fenomenologia. Mas esteve decididamente envolvido na luta democrática, popular e anti-imperialista de seu tempo.

Sartre tinha razão. O marxismo, como pensamento radical e avançado é, sobretudo num país tão desigual, injusto e autoritário como o Brasil, mais que uma necessidade. É uma exigência ética e moral, científica e política que se impõe aos que se esforçam em entender, explicar e lutar contra as injustiças e a desigualdade extrema entre os homens que há no mundo capitalista.

A dimensão ética e moral do marxismo foi exposta de maneira cabal quando Marx, ainda jovem, em novembro de 1837, escreveu uma carta ao pai justificando sua troca do curso de Direeito pelo de Filosofia. E expôs sua profunda necessidade de compreender as injustiças do mundo burgês e lutar contra elas.

Marx não aceitava a igualdade meramente formal do direito burguês e exigia a igualdade real e concreta entre todos os seres humanos como prenúncio da emancipação da humanidade. A compreensão da igualdade que decorre do direito burguês é apenas formal. Contra ela, Marx compreendia que todos os homens são substancialmente iguais e, assim, tem igual direito ao acesso aos meios que tornem a vida possível . Tem igual direito à alimentação, abrigo. saúde, educação – e tudo isso resulta do trabalho de todos, que é igualmente um direito.
Este princípio ético, de que todo os homens tem igual direito à vida e aos meios de vida nunca foi abandonado por Marx, embora tenha compreendido como ninguém que a igualdade entre os homens não decorre de uma condição moral mas resulta do desenvolvimento material e cultural da sociedade para criar as condições para o atendimento das necessidades de toda a humanidade.

A moral por trás destas idéias de Marx é a da fraternidade universal, que rejeita a desigualdade concreta imposta pelo capitalismo e disfarça, sob o rótulo da igualdade formal perante a lei, a verdadeira espoliação dos trabalhadores implícita neste sistema que transforma a força de trabalho em mercadoria, no qual a “justiça” se resume ao respeito ao preço daquela mercadoria no mercado comandado pelo direito à propriedade privada encarada como o principal dos chamados direitos humanos, e que permite a exploração do homem pelo homem disfarçada como “justiça”.

Foi com esta convicção que o jovem Marx, partindo da filosofia, passou ao estudo da sociedade e, mais adiante, da economia política: o estudo da sociedade para compreender suas contradições. O passo seguinte foi a compreensão da maneira como os homens produzem seus meios de vida e distribuem o produto do trabalho coletivo: a economia política.

A compreensão da forma de produção e de divisão do resultado do trabalho leva à outra dimensão fundamental do pensamento de Marx: a luta política.

A luta política

Foi também naqueles anos de passagem dos escritos e estudos da juventude para a maturidade que Marx formulou, em “A Ideologia Alemã” (1845), as condições para que a história ocorra: é preciso comer, beber, abrigar-se, criar as condições materiais de vida para que a história seja feita. Assim, o primeiro ato histórico é a produção – e distribuição – dos meios de vida, que resultam do trabalho de todos. Produto que, nas diferentes formas históricas da organização da sociedade e do trabalho, é apropriado de maneira desigual entre o conjunto dos indivíduos. Em todas elas – com exceção do período inicial do comunismo primitivo – as sociedades são divididas em classes antagônicas, opondo aqueles que trabalham à minoria que controla o trabalho dos demais e é privilegiada na divisão e apropriação do resultado da ação coletiva.

A organização social que surge para garantir essa situação contraditória e a exploração de uma parte da sociedade (a maioria) por um setor minoritário da população, é o Estado. A ação política é a forma assumida pela luta para controlar o poder do Estado e tornar menos predatória a apropriação privada do resultado do trabalho coletivo. Neste sentido a luta política em torno do poder do Estado é fundamentalmente a luta pelo reconhecimento e ampliação dos direitos sociais, pela redistribuição do produto do trabalho social de forma que possa atender às necessidades de todos e, fundamentalmente, pela apropriação coletiva da propriedade privada dos meios de produção, colocando-os sob controle da sociedade, fora do domínio privado.

É nesse sentido que a luta política se torna uma necessidade fundamental para o marxismo. É na política que o domínio de uma minoria sobre os demais pode ser derrotado para abrir caminho para a reorganização radical da sociedade, para eliminar as injustiças que decorrem da exploração do homem pelo homem.

Socialismo científico

O marxismo se distingue de outras formas de pensamento social e correntes do movimento social (como os anarquistas e os socialistas utópicos) ao adotar o adjetivo “científico” para caracterizar a análise para fundamentar a organização eficiente da luta: “socialismo científico”. A proposta de mudança social (revolucionária) do marxismo deriva não da mera vontade individual e subjetiva, mas da análise científica das condições sociais, da correlação de forças na sociedade, do grau de amadurecimento das condições sociais para a mudança, que resulta da situação concreta e subjetiva existente, e não da mera vontade de cada um. Nesse sentido, a mudança social obedece a leis que precisam ser conhecidas para que seja possível intervir nelas para haver a mudança.

Marx começou a amadurecer seu método ainda muito jovem, num artigo que publicou em 1843, no qual analisou a Lei da Repressão ao Roubo de Lenha, aprovada em 1842.

O estudo do chamado “roubo da lenha” levou Karl Marx ao caminho do comunismo. Aquela lei proibia e tornava crime o hábito secular dos camponeses pobres de coletar, nas terras comunais agora transformadas em propriedade privada, galhos caídos e gravetos para usar como lenha.

O estudo científico da sociedade e das relações de dominação que regem o direito passou a se impor de maneira crescente para Marx. De que maneria, e atendendo a que interesses um costume camponês tão antigo foi transformado em crime? Marx compreendeu, desde então, a dinâmica avassaladora da propriedade privada, que chega ao auge sob o capitalismo. Nesta altura a ética dá as mãos à ciência em seu pensamento.

Anos mais tarde, no prefácio de “Para a Crítica da Economia Política” (1859) ele reconheceu a importância daquele episódio para o desenvolvimento de suas idéias: “Vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais”, entre eles o “roubo de lenha” e o parcelamento da propriedade da terra. Marx escreveu, naquele prefácio: “tinha-se nesse tempo – em que a boa vontade de ‘ir adiante’ repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões – tornado audível na redação da Rheinische Zeitung um eco do socialismo e do comunismo francês, sob uma tênue coloração filosófica. Declarei-me contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente, numa controvérsia com a Allgemeine Augsburger Zeitung, que os meus estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer juízo sobre o conteúdo das orientações francesas”. Concluiu dizendo: preferi “me retirar do palco público e recolher ao quarto de estudo”.

Ele revela aqui o impulso científico do marxismo: não basta a mera vontade subjetiva de “ir adiante”; é preciso o estudo cauteloso, acurado e aprofundado das condições para a mudança. O resultado final daquele recolhimento “ao quarto de estudos” começou a vir a público mais de duas décadas depois com a publicação do primeiro volume de “O Capital” (1867), a obra genial de Marx que orienta não só o pensamento econômico inspirado por ele, mas sobretudo o pensamento filosófico, político e social.

O governo de direita instalado no Palácio do Planalto pretende afastar a influência do pensamento marxista, que cresce entre os brasileiros. É uma tarefa vã; o marxismo já enfrentou, no Brasil, períodos de grande adversidade e saiu fortalecido da luta. A união entre as dimensões ética e moral, científica e política faz do marxismo o pensamento insuperável de nosso tempo. Resistente às críticas interesseiras daqueles que defendem o sistema injusto e desumano que é o capitalismo, querem sua manutenção mas não tem uma filosofia que justifique a defesa desta sociedade desigual.

José Carlos Ruy é jornalista, escritor e colaborador do Portal Vermelho

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