PUBLICADO EM 29 de out de 2020
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O pensamento liberal fecha os olhos para as próprias barbáries

Sempre que uma mudança revolucionária ameace o status quo, os liberais deixam de lado esses pruridos e empregam a violência – do estado quase sempre – para derrotar essa ameaça.

No artigo que publicou na Folha de S. Paulo em 26/10/2020, o comentarista Luiz Felipe Pondé faz comparações no mínimo temerárias em defesa de dois pontos de vista conservadores. Sob o título “Revolução Russa é mais bem compreendida numa chave trágica”, ele compara a revolução dirigida pelos bolcheviques à revolução que levou à independência dos EUA, no século 18. Compara os bolcheviques com os filósofos liberais John Locke e John Stuart Mill. E elogia a esquerda nos EUA que, diz ele, “se chama liberal, com razão. A esquerda que sobrou é filha do liberalismo de John Locke (século 17) a John Stuart Mill (século 19)”. E que, com base no “pensamento liberal desde Locke”, exclui a “violência como instrumento político legítimo”.

Por que ele quer!  O liberal e John Locke – que, em seu tempo, foi muito mais lido nos EUA do que na Inglaterra. Ele foi um importante conselheiro político, à distância, na Carolina e ajudou a definir a legislação local, dando suporte legal à escravidão; sob sua influência, a lei dizia que “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os escravos negros.”

Isto é, como bom liberal (convém prestar atenção que liberalismo não é sinônimo de democrata), para John Locke o direito de propriedade estava acima do direito à liberdade. Ele, que foi acionista da Royal African Company, uma empresa dedicada ao tráfico de escravos e ganhou dinheiro com este tráfico nefando e desumano defendeu como o inalienável direito de propriedade a posse de um ser humano por outro!

É possível considerar um pensador como este como sendo não-violento? Só porque autores de direita, como Pondé, querem!

Um liberal como John Locke, e seus apoiadores séculos afora, defenderam a luta institucional, não violenta, pelo poder – em condições estabelecidas, à margem de qualquer movimento revolucionário que conteste as condições estabelecidas.

Sempre que uma mudança revolucionária ameace o status quo, os liberais deixam de lado esses pruridos e empregam a violência – do estado quase sempre – para derrotar essa ameaça. Basta ver o rio de sangue derrubado pela Inglaterra, França, Alemanha, Estados Unidos, ao longo da história, em episódios guerreiros extremamente violentos cometidos contra os povos e os trabalhadores ao longo do tempo. A ditadura de Pinochet no Chile, que teve o beneplácito de um teórico neoliberal como Milton Friedman.

Os pruridos liberais foram postos de lado, trocados pela violência das armas em episódios como a guerra civil na Grécia, nos anos 40, na guerra do Vietnã, entre as décadas de 1950 e 1970, os ataques contra o Iraque e o Afeganistão desde a década de 1990.

O pensamento liberal simplesmente fecha os olhos ante a barbárie visível nestes episódios, mas se horroriza ante uma revolução vitoriosa, como foi a revolução russa de 1917. Aliás, já faz parte do repertório liberal (desde pelo menos “Sobre a Revolução”, de Hanna Arendt) a valorização como não violenta, da revolução americana ante uma revolução como a francesa do final do século 18, na qual os jacobinos encarnaram a violência condenada pelos liberais.

Mas considerar a revolução americana como não violenta é fechar os olhos para a realidade histórica daqueles acontecimentos que envolveram uma dura guerra contra a Inglaterra, que terminou em 1783 e deixou quase 70 mil mortos entre os lutadores pela independência e mais de 10 mil mortos entre os colonizadores britânicos. E, se consideramos a Guerra Civil americana (1861 a 1865), que consolidou aquele país como uma nação moderna, e deixou cerca de 500 mil mortos, o caráter pacífico e pacifista do liberalismo só pode ser defendido como farsa.

Pondé afirma: “Restou à política os espaços institucionais e o mercado, que também têm se transformado em poder representativo da República”. Ele diz que a revolução bolchevique é caracterizada pela política como violência. Como assim? E os outros processos disruptivos? Foram resolvidos pela razão?  Mesmo um exame superficial, desde que honesto e não ideológico, mostra a fragilidade desta tese. A história, ensinou Hegel, é um caminho cruel, para a frente, que deixa escombros enormes da luta pela liberdade.

Outro aspecto – que talvez seja central na argumentação de Pondé – é aquele que encara a história como tragédia – tragédia no sentido grego, de uma força incoercível que acomete as sociedades e não pode ser vencida. Sob este argumento ele diz: “‘Isso quer dizer que a revolução aconteceu por inúmeras razões que escapam ao controle humano quando vistas numa longa duração entre 1825 e 1924.” Este é o ponto no qual se apoia o traço conservador de sua visão da história – ela ocorre e os homens não são seus agentes, mas suas vítimas. Isto é, não há possibilidade de intervenção humana consciente nesse processo histórico incorrigível.

Desde Nietzche, pelo menos, o pensamento de direita recusa o reconhecimento da intervenção humana consciente na história. E todos se enganam por supor que o protagonista da “intervenção humana consciente” seja o indivíduo, um indivíduo. Não é. É claro que são os homens que fazem a história, mas, ensina Marx, os homens a fazem sem escolher as circunstâncias para fazê-lo; eles herdam as condições objetivas legadas pelas gerações anteriores, legado que condiciona a ação atual dos homens. Se eles, ou pelo menos parte deles, tem consciência das condições dadas para agir, podem acertar e avanças na conquista de formas de convivência mais avançadas e justas. Como diz o “Manifesto Comunista”, o desenvolvimento de todos é a condição do desenvolvimento de cada um. Mas, como notou o historiador inglês Edward Carr, os conservadores não conseguem compreender que a história avança – eles pintam aquarelas num navio que está afundando. Daí sua consideração de que uma revolução com a magnitude da revolução bolchevique “só acontece como tragédia”. Tragédia para a classe dominante, vencida pelas classes anteriormente subalternas.

Daí sua conclusão torta e interesseira de que o “liberalismo como tradição exclui qualquer opção violenta e pretende conter toda ação política e social dentro de uma racionalidade institucional” – onde “racionalidade institucional” significa o sistema atualmente existente – que os liberais defendem com toda violência contra qualquer ameaça de rompimento com esse sistema. A história do século 20 em diante é um verdadeiro e longo relato da sangrenta ação da racionalidade liberal.

José Carlos Ruy, jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista e autor do livro Biografia da Nação, história e luta de classes, Editora Anita Garibaldi, 2018.

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