PUBLICADO EM 28 de mar de 2020
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A peste negra, o capitalismo e a liberdade pessoal

A peste em Winterthur em 1328 | Litografia de A. Corrodi,

Por José Carlos Ruy

A preocupação com o coronavírus e as medidas de profilaxia adotadas para combatê-lo e evitar sua proliferação refletem o nível de conhecimento científico, médico e sanitário alcançado pela humanidade neste início do terceiro milênio.

Ao longo da história a humanidade enfrentou algumas catástrofes tão graves como a atual e, infortunadamente, muito mais letais do que a vivida em nossos dias. Em relação aos enormes números das catástrofes anteriores, o enfrentamento da atual reflete o avanço científico alcançado pela humanidade, e os cuidados sanitários que, embora ainda insuficientes, são hoje muito mais eficazes do que foram no passado – permitindo um controle mais eficiente, embora custoso, da disseminação do vírus. Sua difusão é tão grave e rápida como foi em outros tempos – mas suas vítimas são em número muito menor – nesta quinta-feira (26), segundo o Ministério da Saúde, há mais quase 3 mil casos no Brasil, e 71 mortes. No mundo, segundo um balanço da AFP, havia mais de 500 mil infectados, em 175 nações – e ao menos 23 mil mortes. A gravidade da pandemia é ressaltada pela rapidez de sua disseminação – o número de infectados e de mortes é crescente dia a dia – segundo a AFP, a cada 24 horas são registradas mais de 2 mil mortes e dezenas de milhares de novas infecções em todo o mundo – onde mais de um bilhão de pessoas acatam a orientação de seus governos para ficar em casa, evitando que o vírus se alastre.

Embora trágicos, estes números, dadas as condições sanitárias, médicas e científicas, ficam muito longe do que houve em pandemias anteriores vividas pela humanidade – refletindo o progresso vivido pela humanidade.

No passado o escasso conhecimento médico e científico – da biologia sobretudo – e as péssimas condições sanitárias que prevaleciam em todos os lugares, cobrou um alto preço ante pandemias que marcaram a história.

Na longa série de pandemias que a história registra – a Wikipédia anota algumas desde a chamada Peste do Egito, que ocorreu no século V a.C., quando a febre tifoide dizimou a cidade grega de Atenas.

Nessa longa série de catástrofes sanitárias, duas se destacam – a peste negra, no final da Idade Média, e a gripe espanhola, no início do século XX.

Este artigo vai tratar apenas da peste negra – a gripe espanhola fica para outra oportunidade.

A peste negra ocorreu na Europa, Ásia (principalmente China) e Oriente Médio na metade do século XIV – seu auge foi entre 1348 e 1353 – dizimou a população. Calcula-se que morreu um em cada três seres humanos, numa época em que a população mundial seria de algo em torno de 450 milhões de pessoas.

Isto é, teriam morrido, calculam os historiadores, entre 75 milhões a 200 milhões de pessoas em todo o mundo – há historiadores que dizem que a população da Terra levou dois ou três séculos para voltar ao nível que tinha antes da peste.

Na Europa, a devastação foi imensa – na Itália, França, Inglaterra, Portugal, ceifou de um terço e a metade da população. Um desastre populacional dessa magnitude certamente teve influência sobre o declínio do feudalismo e o surgimento do capitalismo. Na Europa, a peste atingiu primeiro Constantinopla, de onde passou para Genova e as cidades italianas, e depois se espalhou, chegando à Inglaterra e Portugal, França, Escandinávia e outras regiões.

A extrema falta de mão de obra que se seguiu à peste teve consequências sociais profundas na Europa. Provocou aumentos de salários – os donos de terras pagavam mais para atrair trabalhadores, empurrando os salários para cima. Houve migração de trabalhadores, que abandonavam as glebas que ocupavam em busca de melhores condições de trabalho e ganhos mais altos. Quando os senhores tentaram fazê-los aceitar as condições anteriores à peste, houve revoltas camponesas, que proliferaram pela Europa.

Nesse contexto, em 18 junho de 1349 – há 670 anos – surgiu na Inglaterra o “Ordinance of Labourers”, adotado por Eduardo III. Foi um dos primeiros códigos trabalhistas conhecidos – e era contra o trabalhador – seu objetivo era fazer o camponês aceitar as condições de trabalho e remuneração impostas pelos senhores de terras, submetendo-se à mesma situação que havia até o vigésimo ano do reinado de Eduardo III (1346) – antes da peste, portanto.

A lei impunha uma forte redução nos salários – e punia com pena de prisão aqueles que não se submetessem à lei e permanecessem “na preguiça e no vício”.

Houve leis parecidas na França, em Portugal e outros lugares da Europa – mas não pegou. A realidade da escassez de mão de obra e demanda crescente de mão de obra pelos senhores – beneficiou aos trabalhadores e houve relativa melhora nas condições de vida dos camponeses.

A peste negra precipitou por uma mudança que foi essencial para a vigência do modo de produção capitalista – a transformação da força de trabalho em mercadoria. Nos modos de produção anteriores, como no feudalismo, o trabalho era arregimentado por relações não econômicas – a lei, os costumes e mesmo a mera força bruta. As condições criadas pela escassez de população, e de mão de obra, depois da peste favoreceu a transformação gradual da força de trabalho em mercadoria, que o trabalhador podia vender a um patrão no mercado de trabalho, desde que tivesse liberdade pessoal para contrair contratos dessa natureza.

Mesmo esta visão sumária pode mostrar que a humanidade progride aos trancos e barrancos e que as crises graves – sejam guerras, sejam catástrofes como pandemias devastadores – podem ser resolvidas com saídas pra frente, rumo ao progresso social e ao aumento das liberdades e dos direitos sociais. A peste negra foi um dos fatores da mudança – que demorou ainda alguns séculos – entre o feudalismo e o capitalismo, entre a servidão e a liberdade pessoal típica do capitalismo. Ao favorecer a transformação da força de trabalho em mercadoria, favoreceu a criação das condições objetiva da liberdade pessoal que viria a prevalecer nos tempos posteriores.

A crise do coronavírus pode indicar, nesse sentido, a criação de condições para a superação do capitalismo extremado típico da era neoliberal, abrindo caminho para um papel mais efetivo do Estado (isto é, da sociedade politicamente organizada) no controle da ganância do capital e do atendimento das necessidades sociais que se impõe – como o combate ao coronavírus tem mostrado.

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