Por Marcos Aurélio Ruy
Railídia e Douglas cantam a crueza da rotina forçada pelo sistema capitalista. “Quem é que vive assim?”, perguntam os autores, sobre “uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, Maria, Maria). Porque “meu peito é a minha cangalha pra eu carregar”, canta Railídia. Cangalha remonta à exploração da força do trabalho de quem só tem seus braços para se garantir.
O destaque dado para a amiga tem o propósito de mostrar a necessidade de espaço para artistas dos mais diversos matizes, criando e tentando viver de sua arte e com isso impulsionando a cultura brasileira, que não seria o que é sem os bravos e resistentes artistas distantes da mídia.
Cangalha, de Railídia Carvalho e Douglas Germano
A rotina me esmaga
em tempo de criar raiz
virar planta, fruto e flor
De rotina me acabo
dou cabo de mim
quem é que vive assim?
e quem merece, enfim?
De tanto dar a outra face
me desfigurei
e sempre há dor
que nunca passe,
mas que sou, eu sei.
Me entregar e ser mais um na multidão?
Eu não!
Eu vou rasgar a mortalha
vou afiar a navalha
vou porque o tempo não falha
se a fé falhar
Enxergo além da muralha
que a vida não é só batalha
meu peito é a minha cangalha
pra eu carregar.
O mineiro Lô Borges (foto acima) é um daqueles artistas merecedores de mais destaque em uma uma mídia inteiramente voltada para o fugaz e altos lucros. Da turma do Clube da Esquina com o primeiro disco lançado em 1972, a canção Trem de Doido, dele em parceria com seu irmão Márcio, mostra um tempo duro sob a violenta repressão do general presidente e sanguinário Emílio Garrastazu Médici.
“Nada a temer, nada a conquistar
Depois que esse trem começa andar, andar
Deixando pelo chão
Os ratos mortos na praça
Do mercado”
Trem de Doido, de Lô Borges e Márcio Borges
Noite azul, pedra e chão
Amigos num hotel
Muito além do céu
Nada a temer, nada a conquistar
Depois que esse trem começa andar, andar
Deixando pelo chão
Os ratos mortos na praça
Do mercado
Quero estar, onde estão
Os sonhos desse hotel
Muito além do céu
Nada a temer, nada a combinar
Na hora de achar meu lugar no trem
E não sentir pavor
Dos ratos soltos na praça
Minha casa
Não precisa ir muito além dessa estrada
Os ratos não sabem morrer na calçada
É hora de você achar o trem
E não sentir pavor
Dos ratos soltos na casa
Sua casa
A cantora gaúcha Shana Müller (foto acima) interpreta a música regional de seu estado, invariavelmente com temas voltados para o campo. Em Carreira de Campo, de 2008, os autores tratam de uma disputa por corrida de cavalos e mostramo trabalho em campos gaúchos.
Carreira de Campo, de Ângelo Franco, Erlon Pericles, Gujo Teixeira e Pirisca Grecco;
interpretação de Shana Müller
Era uma tarde qualquer
Volta pras casas da lida
Ia um gateado e um tordilho
Cruzando a várzea estendida
Ia um índio no gateado
No tordilho outro campeiro
Um de pala e meia espalda
O outro de lenço e sombreiro
Se largaram em paleteio
Que um olhar firma a carreira
Desde as duas corticeiras
Até o cruzar da porteira
É a rédea frouxa na mão
Contra espora segura
Quem sabe é por pataquada
Por honra ou por rapadura
Só sei que bem pareciam
Dois tauras em disparada
Uma carga de combate
Mas era só carreirada
Hace tiempo no se via
Uma carreira tão parelha
Era focinho a focinho
Era orelha com orelha
A várzea ficou pequena
Pra mostrar como se faz
Uma carreira de campo
Saltando barro pra trás
O gateado mais ligeiro
Que um tirambaço de bala
Cruzou o vão da porteira
Com o índio abanando o pala
No tordilho outro balaço
Cruzou ligeiro num facho
Chapéu quebrado na aba
Mas firme no barbicacho
Quem perdeu e quem ganhou
Cruzaram assim num repente
Um diz que cruzou primeiro
O outro que ia na frente
A canção Como Vovó já Dizia, de Raul Seixas (1945-1989), na foto acima, veio à mente por causa dos versos “enxergo além da muralha, que a vida não é só batalha”, de Cangalha, porque na versão para substituir a poesia censurada, Raul canta:
“Quem não tem colírio usa óculos escuros
Quem não tem filé come pão e osso duro
Quem não tem visão bate a cara contra o muro”
Todos os muros que se interpõem na cegueira de quem não vê o que não quer enxergar, principalmente por falta de informação. A poesia original (abaixo), de 1973, é tão mordaz oumais quanto os versos acima.
A ironia e a crítica ácida do roqueiro baiano ressalta o trabalho como essência da vida e denuncia a repressão e a censura às manifestações artísticas como forma de opressão a um povo cansado, por isso “quem não tem papel dá o recado pelo muro”, hoje pela internet e redes sociais, sem se conformar com o presente para ajudar a construir um futuro de igualdade.
Como Vovó já Dizia, de Raul Seixas
Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros.)
Essa luz tá muito forte, tenho medo de cegar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Os meus olhos tão manchados com teus raios de luar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Eu deixei a vela acesa para a bruxa não voltar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Acendi a luz do dia para a noite não chiar
Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Já bebi daquela água quero agora vomitar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Uma vez a gente aceita, duas tem que reclamar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
A serpente está na terra o programa está no ar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Vim de longe de outra terra pra morder teu calcanhar
Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa noite eu tive um sonho, eu queria me matar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tudo tá na mesma coisa, cada coisa em seu lugar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Com dois galos, a galinha não tem tempo de chocar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar