PUBLICADO EM 29 de jul de 2020
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Cinemateca Brasileira agoniza e se torna símbolo da falta de política cultural do Governo Bolsonaro

União deve 14 milhões de reais à mantenedora da instituição, cujo acervo conta com mais de 250.000 filmes da história do Brasil e é a quinta maior cinemateca em restauro do mundo

Fachada da Cinemateca Brasileira, em São Paulo – Foto: REPRODUÇÃO/ASS. ROQUETTE PINTO

O arquivo completo de Glauber Rocha, maior expoente do Cinema Novo. As películas do cinejornal futebolístico Canal 100, feitas entre 1958 e 1986. As gravações de Marechal Rondon sobre as Forças Expedicionárias Brasileiras.

O original de O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, que fez sucesso em Cannes e é considerado o primeiro filme brasileiro com reconhecimento internacional. Esses são alguns dos tesouros guardados no maior acervo de imagens em movimento da América do Sul, a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e que estão em risco de desaparecer por falta de financiamento do Governo Federal.

A Associação Roquette Pinto, mantenedora da Cinemateca desde 2018, afirma que o Executivo não repassou qualquer verba a ela neste ano e acusa o Governo de Jair Bolsonaro de uma dívida de 14 milhões de reais. No último capítulo dessa novela que se arrasta há meses, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou, em 15 de julho, uma ação civil contra a União, considerando que Executivo é responsável pelo “estrangulamento financeiro e abandono administrativo” do local. O resultado de tal ação deve sair até o final desta semana.

Criada na década de 1940 e conhecida como a quinta maior cinemateca em restauro do mundo, a instituição abriga 250.000 rolos de filme, sendo 44.000 títulos de curta, média e longa-metragens, além de programas de TV e registros de jogos de futebol. O custo de manutenção é de 1,2 milhão por mês. Há quatro meses, os 150 funcionários não recebem salários e entraram em greve, incluindo a brigada de incêndio, fazendo pairar sobre o local o fantasma da tragédia do Museu Nacional, que pegou fogo em 2 de setembro de 2018. Os rolos de películas em nitrato de celulose, que correspondem aos filmes produzidos até os anos 1950, são altamente inflamáveis, já que essa substância tem a propriedade de entrar em combustão espontânea, ou seja, a capacidade de incendiar-se apenas com calor. Por isso, algumas paredes da instituição têm até dois metros de espessura e algumas salas contam com um sistema de refrigeração específico.

Apesar dos cuidados, a Cinemateca já enfrentou quatro incêndios. O mais recente, em fevereiro de 2016, destruiu definitivamente 270 títulos e outras 461 obras que tinham cópia de segurança. Em fevereiro deste ano, uma enchente no depósito da instituição danificou 113.000 cópias de DVDs. “Não existe uma consciência política ou social do que podemos perder, da importância cultural da documentação de uma época. As épocas não são documentadas através do PIB, através da política econômica, mas sim com a arte e a cultura”, afirma ao EL PAÍS o ator Carlos Vereza, que denunciou a situação da Cinemateca nas redes sociais.

Vereza, que foi um dos poucos apoiadores de Jair Bolsonaro na classe artística —o ator rompeu com o presidente em abril, após a demissão de Henrique Mandetta do Ministério da Saúde—, acusa o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub de ter começado o “desmonte” da instituição. Em dezembro, Weintraub encerrou o contrato da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) para a realização da TV Escola, cujo orçamento de 400 milhões de reais ao longo de cinco anos subsidia a Cinemateca.

Vereza, que apresentava o programa Plano Sequência no canal público, foi chamado para uma reunião. “Ele deixou claro que ele queria levar meu programa para a EBC [a estatal Empresa Brasil de Comunicação] e esquecer a TV Escola. Eu disse que de jeito nenhum. Mas ele acabou com a TV Escola e, em consequência, está acabando com a Cinemateca também”, lamenta o ator.

Com o fim do canal público educativo, a situação virou um imbróglio jurídico, já que o acordo original com a Cinemateca vai até março de 2021 e a Roquette Pinto continuou a manter a instituição com recursos próprios. À dívida da União, de aproximadamente 14 milhões de reais, somam-se ainda pendências anteriores: em 2019, o Governo só pagou sete dos 13 milhões de reais previstos. “É uma prova de que não existe política cultural neste Governo. Pelo contrário, existe um projeto frio e consciente de acabar com o pensamento, a cultura e a arte no país”, afirma Vereza.

Além do bolso da Fundação Roquette Pinto, a Cinemateca tem contado com ajuda financeira da Prefeitura de São Paulo, que, através do SPCine (entidade municipal de cinema e audiovisual) e da Câmara de Vereadores, têm pago uma equipe de segurança no local, além de algumas contas atrasadas. “Eu expus ao prefeito Bruno Covas a ideia de pedir ao Governo Federal que o município, através de um conselho administrativo com artistas e técnicos, gerisse a Cinemateca. Dessa forma, poderíamos solicitar uma emenda parlamentar de um milhão de reais e destiná-lo à instituição”, diz o vereador Xexéu Tripoli (PV). Covas fez a solicitação formal ao Ministério do Turismo, responsável pela Secretaria Especial de Cultura, mas não obteve resposta.

Marcelo Álvaro Antônio, ministro do Turismo, e Mário Frias, secretário da pasta cultural, visitaram a Cinemateca no dia 23 de junho e publicaram, em um vídeo no Instagram, o compromisso de “resolver o impasse”. Frias substituiu a atriz Regina Duarte na Secretaria de Cultura, para quem Bolsonaro prometeu uma posição de chefia na Cinemateca. A vaga, que não existe, virou mais uma das dúvidas em torno da instituição. Em outro vídeo, em 15 de julho, Frias e o ministro do Turismo afirmam que técnicos do Governo foram impedidos por funcionários da Cinemateca de entrar no local e negam a responsabilidade de assumir a “dívida de um contrato que não está vigente há mais de seis meses”.

O Ministério do Turismo afirma ainda que, desde a rescisão contratual do Ministério da Educação com a Roquette Pinto, o Governo não tem acesso aos dados que permitam tomar as decisões relativas à manutenção do patrimônio público, como custos de água, energia, brigadistas e segurança, entre outros. E, por isso, não fez repasses de verba à instituição neste período. A Fundação Roquette Pinto garante, no entanto, que já enviou 1,5 terabyte de informação ao Executivo.

Marcelo Álvaro Antônio e Mário Frias chegaram a especular a mudança da Cinemateca para Brasília e que o Governo passasse a administrá-la, algo que seria ilegal. Isso porque o termo de doação em 1984 do acervo cedido à União —lavrado em escritura pública e ao qual o EL PAÍS teve acesso— pela sociedade Amigos da Cinemateca determina que a instituição deve localizar-se em São Paulo e impede o Governo de empregar funcionários públicos ou assessores de confiança na mesma. O documento, assinado pela União durante o Governo militar de João Figueiredo, visa a proteção do acervo e a memória audiovisual do país de ideologias políticas.

“Na Cinemateca não está só a história do cinema, mas uma parte importante da história do Brasil. Lá está a Marcha da Família, de 1964, a revelação do cineasta Marechal Rondon, que filmava e revelava na selva, fez o primeiro nu cinematográfico de um indígena brasileiro… É um tesouro que não dá para simplesmente transferir para outro lugar. Não é qualquer funcionário que vai saber manusear o material”, argumenta Carlos Vereza.

O futuro da instituição parece estar, de fato, nas mãos do MPF, cuja ação pede, em caráter de urgência, a renovação de contrato com a Roquette Pinto até o fim de 2020 e dá 60 dias para a reestruturação, manutenção e empoderamento do Conselho Consultivo da Cinemateca, incluindo a ordem de que não sejam demitidos ou dispensados funcionários.

“[Os documentos apresentados demonstram] a necessidade de se manter mobilizado o corpo técnico de funcionários especializados, com inigualável expertise na área cinematográfica, cuja desmobilização (por mera dispensa ou ausência reiterada de pagamento) causará irreparável prejuízo imaterial à União (que demorou anos, décadas, para formar ali um polo reprodutor de tal conhecimento especializado)”, diz o documento. “Enquanto esperamos, o que nos resta é fazer pressão política, popular e cultural para que eles resolvam a situação”, diz o vereador Tripoli.

Fonte: El Pais Brasil

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