PUBLICADO EM 02 de dez de 2022
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“Capital humano” não é a resposta para a desigualdade

Foto: Agência Brasil

Na era neoliberal, os Democratas adotaram um enfoque elitista que enfatizou a educação como chave para o sucesso individual. Apenas o renascimento de uma política social democrata inclusiva pode reverter a desigualdade econômica e derrotar o populismo reacionário.

Adaptado de “The Education Myth: How Human Capital Trumped Social Democracy (Cornell University Press, 2023)

A educação é uma das poucas experiências comuns que verdadeiramente une os americanos. Virtualmente hoje todos gastam pelo menos algum tempo em alguma instituição de educação, e muitos de nós por uma longa parte de nossas vidas: quase 90 por cento dos jovens que frequentam o ensino médio agora se graduam, e cerca de metade dos americanos com idades de vinte e cinco a vinte e nove anos têm pelo menos um diploma associado. Muitos de nós gastamos muito tempo no sistema educacional, e por escolha ou por necessidade, nós vemos o valor disso.

Mas, porque nós valorizamos a educação e o que nós esperamos conseguir dela? Porque nossas instituições mudam tão devagar – a experiência de alguém na, digamos, escola primária, não é tão diferente da de seus filhos – a educação pública pode parecer ter uma qualidade atemporal, como se nós sempre a valorizássemos pelas mesmas razões. Mas as razões que os políticos, legisladores, intelectuais e trabalhadores americanos advogaram por mais investimento na educação pública mudaram dramaticamente através do tempo.

No primeiro século da nação, líderes com espírito republicano como Thomas Jefferson buscaram a educação pública para ajudar a desenvolver a independência política. Embora sua visão fosse longe de universal, eles não obstante expandiram o círculo da democracia, e viam a educação como fornecendo o treinamento para ajudar a fazer isso. Reformadores sociais como Horace Mann buscaram o investimento na educação para cultivar as disposições para ajudar os trabalhadores a navegar na crescente desigualdade trazida pelo capitalismo de mercado, mas a educação pública como treinamento de mão-de-obra era principalmente uma reflexão tardia. Republicanos como Abraham Lincoln apoiaram investimentos em faculdades e universidades para fornecer educação “tanto liberal, quanto prática”, e ativistas sindicais como Margaret Haley na Era Progressiva viam a educação pública como algo para ensinar os estudantes a construir a democracia industrial.

Embora mais trabalhadores realmente começassem a ver a educação pública em termos de oportunidade econômica, os mais ousados e mais dramáticos esforços para expandir a social democracia na primeira metade do século XX, como seguridade social, direitos de negociação coletiva fortes, e leis de salário mínimo, tinham pouco a ver com a educação pública. Enquanto a social democracia do New Deal nunca preencheu sua promessa de fundamentalmente garantir seguridade econômica universal estabelecendo o direito ao emprego, ela não obstante deixou no lugar altas expectativas para a nação no pós-guerra.

Capital humano

Os investimentos no ensino superior depois da Segunda Guerra Mundial (através do GI Bill e apoio estatal para a educação pública) começaram a enfatizar a oportunidade econômica individual, particularmente quando a mais complexa economia da Guerra Fria Americana exigia mais trabalho profissional. Mas, mesmo assim, desenvolver a cidadania, como evidenciado pelas recomendações da Comissão Truman, em 1949, e missões estatais como aquela do Sistema da Universidade de Wisconsin, em 1971, continuaram a ser um objetivo duplo da educação superior.

Nos anos de 1960, contudo, os economistas Theodore Schultz e Gary Becker estavam na vanguarda de um argumento intelectual enfatizando a importância de investir em capital humano. Não estava tão errado em afirmar a importância de melhorar as capacidades dos trabalhadores no crescimento da economia americana. Seus argumentos, contudo, elevaram um chamado para investir em educação às custas de outras intervenções social democratas, que tinham posto os Estados Unidos no caminho para uma seguridade econômica maior, mesmo se essa seguridade fosse baseada em um modelo de ganha-pão que via as mulheres como parceiras auxiliares e excluía muitas minorias.

A administração Johnson, no último grande esforço de reforma do século XX, procurou retificar injustiças raciais passadas, e foi para a guerra contra a pobreza, mas sua principal arma na luta foi o capital humano, ao invés de mudanças mais amplas, representadas pelo Orçamento da Liberdade de A. Philip Randolph e Bayard Rustin, que pode ter tomado passos significativos na direção de preencher a promessa da social democracia do New Deal.

Dali, as sementes do mito da educação cresceram como erva daninha de crescimento rápido e onipresente que cada vez mais sufocou a promessa de quaisquer possibilidades sociais democratas amplas no futuro. Nos anos de 1970, houveram propostas de reformas na corrente principal política com amplo apoio social, que podem ter mudado essa trajetória. O melhor exemplo desse esforço foi a versão de Humphrey-Hawkins que garantiria finalmente o direito ao emprego, deste modo dando aos Estados Unidos sua melhor chance de se mover na direção de uma verdadeira democracia multirracial.

Ao invés, uma nova geração de Democratas, liderados por Jimmy Carter, elevou a educação pública na burocracia federal, retirando o apoio a reformas social democratas mais amplas. Essa geração de titulares de cargos, vendo a si mesmos como representando o crescente número de graduados da faculdade de classe profissional, cada vez mais imaginou a nação como uma meritocracia na qual nem todos merecessem ir bem.

O argumento ilusório de que o declínio da seguridade econômica surgiu do suposto declínio da educação pública

Nos anos de 1980, o mito da educação foi proeminentemente defendido pelos Republicanos, também, pois mesmo o Departamento de Educação de Ronald Reagan avançou o argumento ilusório de que o declínio da seguridade econômica para os trabalhadores americanos surgiu do suposto declínio da educação pública. Figuras políticas importantes em ambos os partidos – incluindo ambos George Bushes e Bill Clinton – construíram campanhas inteiras em torno da importância de investir na educação pública para que os futuros trabalhadores da América pudessem competir em um mercado global.

Crucialmente, a agenda de ambos os partidos também fez essa competição mais cruel, negociando acordos comerciais que capacitaram fabricantes americanos a procurar trabalho não sindicalizado mais barato em outro lugar. Em contraste com os proponentes anteriores do investimento em capital humano, contudo, esses políticos também procuraram fazer os professores e as escolas mais “responsáveis” pela suposta falha de seus estudantes em superar a pobreza e a falta de opções econômicas, em uma nação cada vez mais desigual.

Intelectuais como Robert Reich e Richard Florida fantasiosamente incentivaram a criação de botes salva-vidas simbólicos-analistas ou de classe-criativa quanto possível, mas em 2008, o crash econômico mostrou em total alívio que investir em capital humano estava falhando em fazer a maioria dos americanos, mesmo graduados de faculdade, mais economicamente seguros. Na eleição de 2008, Barack Obama mobilizou uma coalisão construída na premissa de melhorar as vidas da classe profissional, setor de serviços, e trabalhadores da manufatura, mas amplas intervenções sociais democratas, se ele teve alguma intenção de apoia-las, perderam para esforços para amolecer o capital financeiro, mais clichês sobre a importância da educação, e reforma baseada no mercado.

Populistas de direita, construindo sobre os esforços multiformes de Reagan, Patrick Buchanan e Ross Perot, aproveitaram a oportunidade para explorar a raiva causada pela insegurança e econômica, a perda de estima social por muitos americanos fora da classe profissional, e as falsas noções de meritocracia. Embora Donald Trump tenha aperfeiçoado essa estratégia em 2016, ele construiu sobre o trabalho de base deixado por populistas como o governador de Wisconsin, Scott Walker, que chegou ao poder em 2010. Na esquerda, pela primeira vez em décadas, sérias demandas sociais democratas se moveram mais uma vez na principal corrente política através de sindicatos de professores insurgentes, e políticos uma vez marginais como Bernie Sanders.

Mito da educação

Então, a maneira que nós pensamos sobre a educação pública está mais uma vez mudando. Embora o processo seja devagar, estou esperançoso que o mito da educação está caindo. A maioria dos americanos – mesmo aqueles que votaram em populistas reacionários como Walker ou Trump – continuam a ver a educação como importante. Mas se isso é tão simples quanto uma política comercial para priorizar os empregos de classe não profissionais americanos, ou tão transformador quanto a noção de uma garantia federal de empregos, a crescente proeminência de outras ideias políticas mostra que menos políticos, através do espectro político, veem a educação como capaz, como se por mágica, de assegurar amplas oportunidades econômicas. Mais, políticos experientes em ambos os partidos parecem estar reconhecendo a perniciosidade de tomar como certo eleitores sem curso superior.

Se nós podemos desmantelar totalmente o mito da educação, a grande questão daqui para a frente é o que vai substitui-la no centro de nossas políticas? Nós vamos transcende-la assegurando a ampla seguridade econômica, respeito social, e capacidade civil que todos os trabalhadores americanos merecem? O futuro de nossa democracia depende dessa pergunta, e a resposta é muito incerta.

Uma direção é falsa preocupação por aqueles prejudicados pelo mito, enquanto avançando políticas reacionárias e poder corporativo. Assumindo a presidência em janeiro de 2017, por exemplo, Trump agiu simbolicamente nos interesses dos americanos deixados fora da suposta classe criativa, mas ele amplamente os negligenciou em favor da direita corporativa. A única política mais consequente de seu mandato foi o Corte de Impostos e Lei de Empregos de 2017, a qual, enquanto minimamente reduzindo impostos para muitos trabalhadores americanos, dramaticamente reduziu as taxas mais altas para os americanos ricos e as corporações. Para aqueles americanos deixados de fora do conhecimento econômico, o corte de impostos fez pouco para ajuda-los.

Trump também diminuiu profundamente as capacidades civis e democráticas dos americanos em uma surpreendente quantidade de tempo. As invenções repetidas de Trump sobre fraude eleitoral falsamente lançaram dúvidas sobre a própria integridade da democracia americana, e culminaram em um assombroso esforço de alguns de seus apoiadores, em 6 de janeiro de 2021, para dar um golpe de estado e fazer uma reviravolta nos resultados da eleição presidencial de 2020.

Em contraste ao populismo reacionário, a outra alternativa é uma robusta social democracia, que finalmente inclua todos os trabalhadores americanos através das linhas de raça, identidade de gênero, sexualidade e status migratório.

A derrota de Sanders, em 2016, para um candidato que então perdeu para Trump apenas encorajou a reemergência da social democracia na esquerda. Massivas revoltas de professores ocorreram em lugares surpreendentes, em 2018: primeiro, em West Virginia, depois Kentucky, Oklahoma, Arizona, e Carolina do Norte. Muitos desses ativistas, em West Virginia e Arizona, especialmente, foram inspirados pela campanha de Sanders. Os candidatos social democratas insurgentes Alexandria Ocasio-Cortez, Ayanna Pressley, Rashida Tlaib, e Ilhan Omar também ganharam assentos no Congresso, depois de fazer campanha com ideias como eliminar o débito estudantil e tendo então apoiado ideias visionárias como o New Deal Verde e garantias de empregos federais.

Sindicato dos Professores

Em 2019, mais sindicatos de professores insurgentes seguiram o modelo do Sindicato dos Professores de Chicago (CTU, na sigla em inglês) e pressionaram por amplas mudanças sociais democratas, como mais trabalhadores sociais e serviços de saúde mental para estudantes, e limites em escolas charter, em greves que chamaram a atenção em Los Angeles e outros lugares. O CTU aumentou as apostas ainda mais no outono de 2019, fazendo greve novamente por um trabalhador social e enfermeira em cada escola, reduzir o tamanho das classes, proteções para estudantes sem documentos, e recursos para estudantes sem teto. Como os professores em LA, o CTU também lutou, amplamente sem sucesso, para forçar a cidade a fornecer habitações a preços acessíveis.

Embora Sanders no final perdeu, suas amplas margens entre os eleitores Democratas jovens falaram para uma crescente resistência para o mito da educação entre jovens deixados de fora de uma economia marcada por desigualdade ainda maior.

A administração Biden se moveu além das suposições do mito da educação de maneiras importantes, priorizando a infraestrutura por sua significância em criar empregos e expandindo créditos fiscais para crianças, para incluir pagamentos em dinheiro que vão reduzir a pobreza, por exemplo. Ainda, amplas e transformadoras mudanças sociais democratas – garantia de empregos, reforma trabalhista, creche universal – continuaram fora da agenda.

Parece que realmente há um crescente número de Democratas que compreendem que uma promessa social democrata mais ampla tem que estar no centro de qualquer movimento político de longo prazo capaz de derrotar o trumpismo. O futuro da democracia nos Estados Unidos depende do sucesso desse caminho, e ele é estreito. Se os Democratas (ou alguém mais, para essa questão) vão evitar uma versão ainda mais mentirosa do populismo reacionário no futuro, como eles abordam a conexão entre educação e seguridade econômica é vital.

Nós não podemos mais privilegiar aqueles com diplomas de faculdades. Nós devemos assegurar que nossas políticas tenham como centro a vida, a liberdade, e a procura da felicidade para todos, através de uma visão capacitante da economia e dos direitos sociais, incluindo o direito ao emprego, aos cuidados de saúde de alta qualidade, à boa habitação, a um ambiente habitável, e, sim, a educação. Quem pode fazer isso pode realinhar a política americana por um longo tempo, e para melhor.

Jon Shelton é professor associado e presidente dos estudos de democracia e justiça na Universidade de Wisconsin-Green Bay e autor de “Teacher Strike! Public Education and the Making of a New American Political Order” e “The Education Myth: How Human Capital Trumped Social Democracy.”

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  • Rita de Cássia Vianna

    Além da educação formal que é importante ou até militares mas vom outros saberes

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