PUBLICADO EM 13 de jul de 2022
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32 anos do ECA: a história mostra uma evolução radical desse tema, mas ainda precisamos melhorar muito

Foto: Pixabay

Por Carolina Maria Ruy

Nos 32 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente constatamos que o abuso, a exploração de toda ordem e o trabalho infantil ainda são problemas graves e que tem aumentado nos últimos anos, principalmente no contexto da pandemia, mas mesmo antes.

Isso é marca da nossa sociedade capitalista, que privilegia o mercado em detrimento do indivíduo. Marca da nossa sociedade brasileira com sua situação crônica de pobreza e desigualdade.

Mas, por mais que ainda tenhamos que evoluir muito, por mais que a situação da criança e do adolescente de baixa renda, da população carente, seja realmente muito dura, houve uma evolução radical desse tema ao longo da história. E percebendo como isso se deu podemos ter pistas sobre como evoluir mais e superar as dificuldades.

Primeiro é importante registrar que o conceito de criança e adolescente foi construído historicamente. Na antiguidade, na idade média ele não existia essa noção.

Um estudo do professor de Direito, Antônio José Loureiro que diz que “exemplos históricos de desproteção à criança são encontrados desde a Antiguidade, entre os povos egípcios e mesopotâmios, romanos, gregos, medievais e europeus. Para esses povos as crianças não mereciam nenhum tipo de proteção, na verdade, era como se não existissem”.

Não se falava em trabalho infantil ou em abuso de qualquer tipo. Os filhos eram propriedades dos pais. Nas famílias pobres as crianças trabalhavam desde cedo na roça, nas lavouras ou serviços domésticos.

Só com a Revolução Industrial, no século XVIII (1700), a escolarização, na Europa, se estendeu a todas as camadas sociais, e isso aconteceu para preparar as crianças e adolescentes para o trabalho nas fábricas.

O avanço da industrialização e o crescimento das cidades, exigiu um aprofundamento dos estudos e pesquisas cientificas que definiam melhor as fases da vida de uma pessoa. Isso vem também com a necessidade de formar cidadãos para trabalhar, viver e consumir nessas cidades. Já se reforça aí a ideia de cidadania.

Nesse processo foi se formando o conceito moderno de infância e adolescência. E existir esse conceito difundido e consolidado no senso comum é um grande avanço porque é a partir daí que se pode pensar em políticas públicas específicas.

Então, com as cidades modernas se formando surge a necessidade de formar cidadãos e isso demanda que a ciência se volte ao indivíduo. Esse cidadão precisa se educar e se especializar para fazer o capitalismo, a industrialização, ou seja, esse mundo urbano avançar.

Em um ambiente mais rural ou onde o trabalho é mais manual ou artesanal, que era hegemônico no mundo anterior às revoluções modernas, a concepção era diferente. Naquele ambiente era comum, que os filhos ajudassem os pais no trabalho. Não só não se falava em trabalho infantil, como muitas vezes os filhos eram desejados justamente para a ajuda no trabalho.

O ambiente urbano, entretanto, passou a demandar outro tipo de cuidado. Há aí uma evolução radical na concepção do desenvolvimento humano e é neste contexto que se desenvolve o conceito de infância e adolescência.

No Brasil essa história se reproduz, ainda que tardiamente. Nossa primeira Constituição é de 1824. Não havia Constituição antes e as leis estavam totalmente subordinadas à coroa portuguesa. Então dá para imaginar como eram as coisas por aqui. Terra de ninguém no que diz respeito aos direitos sociais.

Havia a escravidão, que durou até 1888. As crianças escravas não tinham direito nenhum, mesmo porque eram consideradas mercadorias. Haviam muitos filhos de patrões brancos com escravas negras ou indígenas, isso inclusive está na base da nossa identidade genética. Essas crianças ficavam à mercê da sorte.

A primeira Constituição não é resultado de um processo de emancipação popular, mas de interesses da própria coroa, o que ainda é um problema para o país uma vez que não houve ruptura com a elite colonial.

Essa Constituição de 1824 não falava em criança e adolescente. Isso só vai aparecer depois da Revolução de 30, que foi um processo de inserção do país no mundo capitalista. Até então a lógica era ainda, mesmo na República Velha, colonial e escravista.

As primeiras pressões de trabalhadores também no início do século 20, deliberaram sobre o trabalho do menor, que era super explorado porque custava mais barato.

O histórico das nossas constituições e das leis trabalhistas mostram que, assim como ocorreu no mundo, o Brasil foi passando de um país predominantemente rural para um país industrializado e urbanizado.

Então as leis que regem o trabalho infantil se tornaram mais sofisticadas, mais duras e as que dispõe sobre a educação também se aprimoraram. Observamos nesse processo uma maior inserção no processo educativo, desde a alfabetização até o curso superior.

O fim da segunda guerra mundial, em 1945, iniciou uma nova fase global. Frente aos horrores da guerra (da 1ª e da 2ª) foram criados tratados internacionais que hoje são grandes referencias e que geraram derivados importantes.

Foi criada a ONU em 1945, por exemplo, e a UNICEF, em 1946, que é subsidiária específica para a criança da ONU. Em 1948 foi criada a declaração universal dos direitos humanos. Essas entidades instituíram um debate a partir do qual diversos conceitos foram sendo trabalhados e incorporados na mentalidade social. Elas serviram de referências para muitas leis que temos hoje.

A nossa Constituição de 1988, que é a atual, dispõe fartamente sobre a criança e o adolescente no que diz respeito à educação, saúde e proteção social. Ela se distancia muito da nossa primeira Constituição de 1824, o que revela todo o desenvolvimento do nosso país. O artigo 227 traz a inovação de estabelecer que crianças e adolescentes possuem direitos específicos, e foi com base neste artigo que se desenvolveu o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Desde 1988 tivemos ainda muitos outros avanços do ponto de vista legal. A Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1989 e entrou em vigor setembro de 1990, ratificada por 196 países, inclusive o Brasil. Somente os Estados Unidos não ratificaram a Convenção. Mas pouco antes disso, em 13 de julho, foi criado aqui o Estatuto da Criança e do Adolescente, que completa 31 anos.

Uma matéria da Agência Brasil sobre os 30 anos do ECA afirma que “No Brasil de 1990, uma em cada cinco crianças e adolescentes estava fora da escola, e uma em cada dez, entre 10 e 18 anos, não estava alfabetizada. A cada mil bebês nascidos vivos no país naquele ano, quase 50 não chegavam a completar um ano, e quase 8 milhões de crianças e adolescentes de até 15 anos eram submetidas ao trabalho infantil” e que “Em 2020 o percentual de crianças e adolescentes fora da escola caiu de 20% para 4,2%, a mortalidade infantil chegou a 12,4 por mil, e o trabalho infantil deixou de ser uma realidade para 5,7 milhões de crianças e adolescentes”.

Isso tudo representou um grande avanço que expressa a evolução social. Mas, a realidade do conjunto do país hoje é preocupante.

Alguns dados mostram a gravidade da situação: O Unicef apontou que houve crescimento de 26% da exploração do trabalho infantil durante a pandemia. O relatório Trabalho Infantil: Estimativas Globais 2020, do Unicef, em parceria com a OIT, revela que a exploração do trabalho infantil voltou a crescer no mundo depois de 20 anos de quedas sucessivas. Os dados apontam para a existência de pelo menos 160 milhões de crianças e adolescentes forçados ao trabalho no mundo. Eram 152 milhões em 2016.

Além disso, um levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria mostrou que entre 2010 e 2020, pelo menos 103.149 crianças e adolescentes com idades de até 19 anos morreram no Brasil, vítimas de agressão. Segundo a entidade, o estresse causado pela pandemia aumentou a probabilidade de as crianças serem vítimas de violência, além de causar prejuízos do ponto de vista da saúde física e mental.

Eles concluem que o isolamento social, embora necessário para contenção da pandemia, aumentou a exposição das crianças a uma “maior incidência de violência doméstica”, o que elevou também os casos letais. Além do drama de tantas crianças que não tiveram condições de acompanhar as aulas durante a pandemia.

Depreende-se disso que, embora tenha havido na história um avanço incontestável, é também incontestável o fato de que milhões de crianças e os adolescentes no Brasil e no mundo vivem em uma situação de risco, de desproteção, de vulnerabilidade e de ausência de perspectivas.

Mas não se pode concluir deste fato que todo aquele histórico, desde a revolução industrial até o ECA, sejam apenas documentos frios e protocolares que não influem na vida real de quem realmente precisa.

O que se deve compreender é que a história não é uma linha reta, objetiva e matemática. Uma sociedade funciona, ou caminha, através de um conflito de interesses. Interesses dos trabalhadores e trabalhadoras e do povo mais pobre em ter mais direitos, mais dignidade, melhores condições e, do outro lado, interesses da classe que se beneficia das desigualdades e quer manter a situação como está. Esses avanços que tivemos são processos civilizatórios que servem como freios e contrapesos para a hegemonia do mercado que tem o lucro como objetivo final.

Então temos avanços e recuos. Hoje vivemos um período de grave recuo, agravado neste governo, que não investe em causas sociais, mas que vem desde antes, com a reforma trabalhista (retirada de direitos) e a PEC do teto de gastos (retirada da proteção social) que estão na raiz dessa crise social que torna a população mais vulnerável. A pobreza, o desemprego, a má condução da pandemia, que é a realidade do Brasil na atualidade, afeta diretamente os menores de idade porque afeta a capacidade das famílias em cuidar, proteger e instruir.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical

Texto adaptado de palestra no seminário do 31 anos do ECA, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Osasco, realizado virtualmente em 13 de julho de 2021.

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