PUBLICADO EM 11 de jan de 2020
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EUA – uma autópsia de classe do impeachment

Os procedimentos de impeachment são chatos e resultam em nada – mas poderiam parecer muito diferentes se os membros do Partido Democrata buscassem um impeachment focado na flagrante corrupção de Donald Trump. O problema é que muitos democratas da Câmara são incrivelmente ricos e não querem irritar seus doadores ricos.

Por Christian Parenti

A presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, em 9 de janeiro de 2020, em Washington.

O impeachment nunca iria desalojar o presidente Donald Trump do cargo porque o Senado não o condenaria. Assim vale lembrar o alerta feito por Bernie Sanders, de que o impeachment pode levar Trump a dominar a atenção política em detrimento das questões de pão e manteiga que realmente importam.

Poderia ter havido uma versão de esquerda do impeachment? É improvável. Mas, tecnicamente falando, isso poderia ter acontecido se uma crítica do poder de classe tivesse sido a questão central. Para que isso acontecesse as violações da cláusula de emolumento e, especificamente, as violações da cláusula de emolumento doméstico, dentro do país, precisariam ser o foco central.
As duas cláusulas de emolumento na Constituição dos EUA impedem presentes de potências estrangeiras ao presidente da República e limitam sua remuneração ao salário presidencial.

As violações da cláusula de emolumentos cometidas por Trump, na medida em que podemos determinar sem uma investigação legalmente autorizada, parecem envolver pagamentos feitos a ele por meio de grandes reservas de aposentos não usados em seus hotéis e, talvez, a compra de condomínios em suas propriedades.

Mas, em vez de explorar essas questões – ou seja, como as grandes empresas fazem suborno político -, recebemos um maçante noticiário a respeito da segurança nacional ameaçada por um país pequeno e distante.

O que aconteceu com o ângulo de classe? Evidências circunstanciais indicam que a liderança democrata na Câmara evitou questões de emolumentos, porque as audiências focadas no tráfico de influência empresarial soariam algo como um comício do socialista Bernie Sanders. Os principais democratas não estão ansiosos para submeter as empresas e os ricos a um escrutínio público severo. Esse preconceito ideológico parece ainda mais forte agora que um socialista se aproxima da conquista da candidatura democrática à presidência da República.

Afinal, muitos dos principais deputados democratas não estão apenas do lado dos ricos – eles são os ricos. Por exemplo, a deputada Nancy Pelosi – democrata, presidenta da Câmara – valia US$ 58 milhões em 2016, mas já valeu mais de US$ 100 milhões por vários anos antes disso.

Um congressista me contou, em off, que alguns democratas estavam desconfortáveis ​​investigando violações dos emolumentos domésticos de Trump, porque isso abriria inevitavelmente uma discussão sobre os políticos e seu dinheiro, em geral. Para muitos deles, isso parece chegar muito próximo de casa…

Mas desde o início, as questões das cláusulas dos emolumentos estavam em pauta. A deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, que é socialista, disse, por exemplo: “sempre foram emolumentos. Sempre foi isso para mim.” O deputado Jamie Raskin (de Maryland, EUA), estudioso do direito constitucional abordou agressivamente as questões de emolumentos em seus discursos. Muitos outros deputados que pediram o impeachment também fizeram das violações dos emolumentos uma preocupação central, , enquanto Pelosi ainda advertia contra.

As violações da cláusula de emolumentos domésticos – que significa suborno empresarial do presidente – eram um ponto de partida lógico, visceral e óbvio. Portanto, questões sobre violações das cláusulas de emolumentos – precisamente porque são convincentes – tiveram que morrer.

A deputada Pelosi, em seu inimitável estilo de gangster, se certificou da morte desse tema – sob sua influência as violações da cláusula emolument simplesmente desapareceram.

Adam Schiff, do Comitê de Inteligência, e Gerald Nadler, do Comitê Judiciário, ajudaram nesse desaparecimento ao levantar e reforçar preocupações de segurança nacional envolvendo a Ucrânia. Quando Raskin tentou reunir apoio para investigar questões de emolumentos depois que Trump sugeriu que o G-7 se reunisse em seu resort em Doral, na Flórida, Pelosi teria dito para ele desistir.

Quais poderiam ter sido os problemas? Sem uma investigação legalmente autorizada que possa examinar registros e intimar funcionários corporativos, temos apenas vislumbres do que poderia ter sido. Mas esses vislumbres são reveladores.

A ONG Public Citizen e o jornalista independente Zach Everson conduziram algumas das melhores pesquisas sobre os crimes econômicos cometidos por Trump na presidência. O Public Citizen, confiando em parte no trabalho de Everson, encontrou “51 empresas ou grupos de negócios dos EUA” que parecem ter usado as propriedades de Trump.

Everson merece uma menção especial pela criatividade de baixa tecnologia de seus métodos de pesquisa, focados essencialmente no Trump International, em Washington – vasculhando no lixo do bar do hotel as contas de executivos. Sendo esta a era de confissões on-line compulsórias, muitos gerentes, que nunca responderiam às perguntas de um jornalista, se gabam online de suas visitas a propriedades de Trump.

Depois de um ano, Everson concluiu que “deputados, lobistas e possíveis agentes do poder estavam aproveitando ao máximo a chance de melhorar sua situação, jogando alguns dólares no caminho do presidente”.

O Public Citizen constatou que “os grupos de negócios que realizam eventos nas propriedades da Organização Trump incluem o Institute of International Bankers, que realizou sua conferência anual de 2018 no Trump International Hotel em Washington, DC., a Associação de Serviços Financeiros da Comunidade, que representa os agiotas de dia de pagamento, realizou duas vezes (em 2018 e 2019) sua conferência anual no clube de golfe Trump National Doral, perto de Miami.” Os agiotas do dia de pagamento receberam reversões regulatórias do governo Trump.

A Conferência da Indústria de Opções foi realizada no Trump National Doral Resort. Como outras partes do setor financeiro, elas apóiam a desregulamentação financeira.

Outros convidados empresariais realizaram conferências e reuniões do conselho nas propriedades de Trump incluem a Sprint e a T-Mobile, que mais tarde tiveram uma fusão aprovada pelo governo Trump; a Seasonal Employment Alliance, representando empresas que usam trabalhadores estrangeiros; e a Associação Nacional de Mineração, que pressionou por mais acesso a terras públicas.

Uma importante conferência de importação/exportação de armas de fogo foi realizada no hotel de Trump em Washington e, mais tarde, o governo Trump afrouxou as regras sobre as exportações de armas de fogo.

Dizem que uma longa lista de lobistas do setor de energia ficou no hotel de Trump em Washington. Pelo menos duas empresas de carvão negociaram diretamente com o Trump Hotel durante o verão de 2019. Como o Public Citizen relatou, “o CEO da Murray Energy Corp. Bob Murray e Heath Lovell, principal porta-voz do LP de Alliance Craft Partners do magnata Joe Craft, eram“hóspedes VIPs”para estadias de uma noite em 20 de junho de 2018, de acordo com uma lista obtida pelo “Washington Post.” De maneira sugestiva, a equipe do Trump Hotel escreveu “High Rate” sob o nome de cada executivo.

Há rumores de que até o Facebook, que muitos pensariam ser uma empresa inclinada aos democratas, alugou blocos de aposentos não utilizados no Trump International Hotel em Washington, em uma possível tentativa de agradar o governo Trump. Como o Intercept relatou em outubro, a deputada Madeleine Dean (Democrata, Pensilvânia) perguntou a Mark Zuckerberg: “Existe alguma chance do Facebook reservar blocos de quartos no Trump International Hotel e não usá-los?” Zuckerberg se fez de bobo e prometeu investigar.

Há também a questão das visitas oficiais de presidentes estrangeiros, que Trump recebe em suas propriedades, e são pagas pelo governo – isto é, os contribuintes. De acordo com um relatório da Citizens for Responsability and Ethics em Washington, em agosto de 2019, Trump fez 362 ações desse tipo. Junto com cerca de 250 empregados do governo – funcionários da Casa Branca, membros do Gabinete e funcionários de agências – o governo Trump fez 630 visitas às suas propriedades. A partir desses fragmentos, temos uma noção das intimações que podem ter sido evitadas…

Em meados do verão de 2019, mais de duzentos deputados democratas pediram formalmente o impeachment, e Pelosi continuou contra.

Então veio setembro, com a notícia do telefonema de Trump ao presidente da Ucrânia, Zelynsky, em 25 de julho -, com o relato de um denunciante, indicando que a ligação seria possivelmente ilegal porque Trump havia instado ao presidente ucraniano a investigar o papel de Hunter Biden no conselho da maior e mais notoriamente corrupta empresa de gás da Ucrânia.

Em 9 de setembro, o inspetor geral da comunidade de inteligência notificou ao Congresso que o denunciante (que se diz membro da CIA) havia feito uma denúncia “acreditável” e “urgente”.

Então, sete deputados democratas, todos ex-oficiais da inteligência, publicaram uma carta no “Washington Post” expressando suas graves preocupações. Eles chamaram as alegações do denunciante de “uma ameaça a todos que juramos proteger”. Com isso o talismã legitimador da segurança nacional estava chocalhando, e os tagarelas liberais, como possuídos, estavam espumando. E os emolumentos ficaram longe.

Então, em 24 de setembro, Pelosi avançou e o impeachment estava ativo, e ela no comando. E as questões de classe associadas aos emolumentos afundaram no pântano.

Ao anunciar o processo de impeachment, Pelosi encarregou o Comitê de Inteligência, do qual fez parte há mais de vinte anos, de fazer um relatório que formaria a base do processo de investigação. Com isso, tudo acabou para qualquer política de classe emergir do impeachment. Conforme informou a CNN, Pelosi disse aos membros da Câmara: “que o Comitê de Inteligência seria o painel de pontos na investigação sobre a Ucrânia, dada a sua jurisdição e o foco restrito de sua investigação”. Pelosi supostamente “deixou claro que o Comitê de Inteligência estava no comando”.

O relatório do Comitê de Inteligência foi enviado ao Comitê Judiciário. Quando o relatório chegou, as questões relacionadas a suborno empresarial desapareceram. Em 3 de outubro, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) chamava o impeachment de “chato”, mesmo afirmando sua importância.

Pelosi, sempre do lado da capital, sem dúvida percebeu que se o poder de intimação do Congresso fosse usado para investigar os emolumentos, as relações com – e os interesses dos – ricos e principais doadores do Partido Democrata poderiam ser prejudicadas.

O “Federalist”, uma publicação de direita, foi um dos poucos veículos a reconhecer o que acontecia. “É sobre Pelosi perder o controle de seu caucus [referência ao sistema usado em eleições primárias em alguns estados dos EUA – nota da redação] caso ela continue a resistir ao impeachment, e Pelosi sentindo um desastre eleitoral iminente de proporções monumentais [uma vitória de Sanders?], o impeachment foi lançado fora dos parâmetros que ela define.…” Sem referências a nenhum hotel Trump, nem emolumentos… Apenas a Ucrânia.

Em outras palavras, à margem da disputa de Bernie Sanders, sem Facebook, sem T-Mobile, sem agiotas do dia de pagamento, sem executivos de petroleiras e carvão. Apenas um teatro Kabuki sagaz e envolto na bandeira sobre segurança nacional e Ucrânia – um país que poucos americanos conhecem ou com o qual se importam.

Christian Parenti é professor de economia na John Jay College, Universidade da Cidade de Nova York.

Fonte: Jacobin.

Tradução: José Carlos Ruy

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