PUBLICADO EM 04 de abr de 2022
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Será que temos esse tempo pra perder?

Valdete Souto Severo, (Arquivo Pessoal)

A música do Lenine, de quem tomo emprestado o título desse artigo, refere-se ao tempo que “acelera e pede pressa”. Na verdade, não é o tempo, somos nós. Em vez de utilizar a tecnologia para a preservação ambiental e para o aumento da qualidade do nosso tempo de vida, segue-se apostando na insanidade. As novas tecnologias têm sido utilizadas para aprofundar o esgotamento dos recursos naturais e justificar, na voz de quem detém poder para instituir as “regras do jogo”, mais e mais exploração da força de trabalho.

A vida é tão rara, diz a música. Mesmo assim, construímos uma forma de convívio social pela qual é preciso passar a maior parte do tempo trabalhando em troca de salário, para poder viver fora do trabalho. A velha novidade é voltar a misturar o tempo de trabalho com o tempo em que vivemos fora dele, com prejuízo para a qualidade de vida.

O teletrabalho, que se apresenta como algo contemporâneo, é o antigo trabalho por peça ou tarefa, sem regulação de jornada, até a exaustão. Se alguém ainda tinha dúvida, as MPs 1108 e 1109 deixam isso claro. Alteram mais uma vez os dispositivos da CLT sobre teletrabalho. Há, inclusive, um dispositivo que, em leitura apressada, pode parecer protetivo. Confere prioridade, para realizar teletrabalho, às empregadas e aos empregados com deficiência ou com filhos ou crianças com necessidade de cuidados especiais. Acontece que nesses casos, o trabalho remoto, sem uma estrutura social e uma remuneração que garantam a oferta de atendimento especializado a essas pessoas, significará maior penosidade. Uma carga que recairá especialmente sobre as mulheres trabalhadoras e mães, pois bem sabemos que na maioria das vezes são elas, ainda, que assumem as tarefas de cuidado. Ora, se há condição diferenciada de existência a exigir maiores cuidados, o que precisamos é de redução da jornada. Restringir essas pessoas ao espaço doméstico, em uma realidade na qual não existem políticas públicas que confiram atendimento especializado, permitindo inclusive a extensão ainda maior do tempo de trabalho através do artifício da ausência de fiscalização e controle é, a um só tempo, jogá-las na invisibilidade e potencializar seu adoecimento físico e psíquico.

Mas não é disso que quero falar, e sim da alteração proposta ao artigo 62 da CLT. De acordo com a MP 1108, não são abrangidos pelo regime de duração do trabalho “os empregados em regime de teletrabalho que prestam serviço por produção ou tarefa”. Sob a perspectiva do ambiente de trabalho, a atividade laboral desenvolvida em casa desconstitui a ideia de local de trabalho. E se, com isso, evita os dissabores do deslocamento, especialmente nas grandes cidades, por outro lado impede o convívio com colegas, a formação dos laços afetivos que determinam, em larga medida, as possibilidades de realização pessoal e de crescimento social através do trabalho. Além disso, o teletrabalho produz o estranhamento do próprio ambiente doméstico, transfigurado em ambiente de trabalho, impedindo a eficaz distinção entre tempo de trabalho e tempo de lazer, gerando prejuízos ao convívio familiar e à saúde emocional e física. Em um tal contexto, a limitação do tempo de trabalho torna-se ainda mais fundamental e apresenta-se como elemento do direito à desconexão. Ora, se há tecnologia suficiente para que o trabalho seja prestado de forma remota, certamente há, também, para impor limitação à jornada.

O anacronismo da alteração proposta ao artigo 62 da CLT, que em nada atende necessidades decorrentes da emergência sanitária, nem tampouco guarda relação alguma com as características próprias do teletrabalho, é na verdade uma escolha política pela exploração sem medida. A ausência de limitação da jornada já foi uma realidade, experimentada e historicamente rejeitada, porque economicamente contraproducente, fisicamente adoecedora e socialmente lesiva. A magistratura trabalhista, na Primeira Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, já aprovou tese estabelecendo que “a proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, consagrada nos incisos XIII e XV do art. 7o da Constituição da República, confere, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direitos ao repouso semanal remunerado e a limitação da jornada de trabalho, tendo-se por inconstitucional o art. 62 da CLT”. O artigo 62 da CLT sequer poderia seguir sendo aplicado, portanto. Não há argumentação jurídica que consiga sustentar a aplicação de uma regra ordinária que estabelece a não observância de regras constitucionais para determinado conjunto de trabalhadores, como se a Constituição não lhes alcançasse. Ainda assim, em vez de eliminá-lo da lei trabalhista, sua redação é ampliada.

Como diz Lenine, na mesma música, “enquanto todo mundo espera a cura do mal e a loucura finge que isso tudo é normal, eu finjo ter paciência”. Não há mais como fingir. Essa violência contra a classe trabalhadora precisa parar. Não há mais paciência que dê conta de uma realidade de tamanho descompromisso com a ordem constitucional e, portanto, com a construção de uma sociedade em que seja possível viver com decência. Se não é viável abrir mão da tecnologia, é preciso exigir que ela seja utilizada de modo saudável. Utilizar os meios telemáticos para impor limitação da jornada, impedindo que trabalhadoras e trabalhadores permaneçam mais do que 8h por dia conectados, é o mínimo que se precisa exigir, para que a empresa possa comprar tempo de vida através do teletrabalho. A vida não para, por isso mesmo é preciso desconectar, para viver.

Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.

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