PUBLICADO EM 23 de nov de 2020
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Com racismo, não há democracia; opinião do senador Paulo Paim

Com quase 56% da sua população sendo negra, o Brasil ainda é um dos países mais racistas do mundo, onde, estatisticamente, as mulheres negras estão na base da pirâmide social.

Os ventos democráticos parecem avançar pelo continente americano, trazendo novos ares, respeito às diversidades e aos direitos humanos. É preciso que não esqueçamos, no entanto, do genocídio orquestrado contra o povo negro

Com quase 56% da sua população sendo negra, o Brasil ainda é um dos países mais racistas do mundo, onde, estatisticamente, as mulheres negras estão na base da pirâmide social. No dia 20 de novembro, celebramos a Consciência Negra, data de resistência e de conscientização para a população brasileira sobre o processo de colonização do país, da escravidão e dos seus reflexos.

O marco foi incluído no calendário escolar nacional em 2003 e, em 2011, foi instituído oficialmente pela lei federal de nº 12.519. A regulamentação, no entanto, não transformou a data em feriado e fica a critério de cada estado e cidade optar por adotá-la como tal. Dos 5.570 municípios brasileiros, menos de 15% consideram a data como feriado, de acordo com levantamento elaborado pelo jornal O Estado de S. Paulo, com base em dados apresentados em 2019 pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ainda assim, o dia é marcado por atividades culturais, debates e manifestações organizadas pelos movimentos negros em diferentes regiões do país.

A data foi fomentada, em meados da década de 1970 no meu estado, o Rio Grande do Sul, por militantes universitários negros como o poeta Oliveira Silveira, Vilmar Nunes, Ilmo da Silva e Antônio Carlos Côrtes, que questionavam o dia 13 de maio. Para eles, a abolição da escravatura não representava a liberdade dos negros escravizados, pois, depois da assinatura da Lei Áurea, a população negra não recebeu nenhum tipo de indenização ou reparação do Estado Brasileiro.

Assim, o dia 20 de novembro, em homenagem a Zumbi e sua luta histórica, seria mais apropriado para o movimento negro brasileiro. A data veio para fortalecer em nossas memórias esse período secular tão nefasto, que não podemos esquecer e jamais repetir.

Indígenas escravizados, povos africanos sequestrados e escravizados, crianças, mulheres e homens. Foram mais de 12,5 milhões de africanos sequestrados, em que 10,7 milhões conseguiram sobreviver a essa desumanidade e 1,8 milhão morreram na travessia do Atlântico. Corpos jogados ao mar alteravam os trajetos dos cardumes de tubarões, que começaram a seguir os navios negreiros.

O Brasil foi o último país das Américas a “abolir” a escravidão, e só o fez devido à forte pressão da Inglaterra. Em 1888, a falsa abolição da escravatura jogou a população negra às margens da sociedade, sem nenhum tipo de política pública.

Nessa época, os negros já eram maioria no país. O primeiro censo realizado no Brasil, em 1872, apontava que 80% da população brasileira era negra. No ano de 1911, decreta-se o Regulamento do Serviço de Povoamento, também chamado como decreto de clareamento. Nele, o Estado Brasileiro oferecia desde as passagens de vinda e terras até bolsa de estudos para os filhos dos imigrantes, sobretudo europeus.

O racismo estrutural é secular. É necessário conhecermos a nossa história e trabalharmos para que o presente seja diferente. E, infelizmente, os números nos mostram que há ainda muito a ser feito: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país; em 24 horas, 13 mulheres são mortas e a maioria delas são negras. Os sequestrados do passado são os encarcerados de hoje. No Brasil, 60% das prisões são provisórias e são os negros que estão lá. Mesmo com 56% da população brasileira sendo negra, quase não temos representação no parlamento. Quem estão nos subempregos e ainda no trabalho escravo? As religiões de matriz africana são alvos de 59% dos crimes de intolerância religiosa. Um trabalhador que ganha um salário mínimo paga o mesmo tributo que um milionário.

Muito foi feito para combater o crime de racismo, mas a sua capacidade de se fortalecer como um vírus letal ainda nos atinge incessantemente.

Conquistamos o Estatuto da Igualdade Racial, a maior norma orientativa para Promoção da Igualdade Racial, que, em 2020, celebrou os seus 10 anos. O estatuto é a bússola indicativa para várias políticas públicas como a Proposta de Emenda à Constituição de nº 33/2016, que cria o Fundo Nacional de Combate ao Racismo; o projeto de lei nº 2179/2020, que dispõe sobre a obrigação dos órgãos e instituições de saúde em promover o registro e cadastramento de dados relativos a marcadores étnico-raciais, idade, gênero, condição de deficiência e localização dos pacientes por eles atendidos em decorrência de infecção da covid-19. Ele foi aprovado no Senado e tramita na Câmara dos Deputados.

Fui indicado pela Coalização Negra por Direitos – frente composta por mais de 150 entidades dos movimentos negros do Brasil – relator da sugestão legislativa nº 23 de 2020, que veda a conduta de agente público, fundada em preconceito de qualquer natureza, de raça, origem étnica, gênero, orientação sexual ou culto. Estamos dialogando com todos para tentar barrar o genocídio cometido pelo Estado aos corpos negros.

Neste ano de 2020, também conquistamos uma grande vitória junto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e ao STF (Supremo Tribunal Federal), com a aprovação da distribuição isonômica dos recursos do fundo eleitoral e do tempo de rádio e TV para as candidaturas negras. O tema só foi decidido após provocação da ONG Educafro, da participação de parlamentares do PT, como eu e a deputada federal Benedita da Silva, e do PSOL, que provocaram os dois tribunais.

Oxalá que essa distribuição igualitária realmente aconteça, pois muitas candidaturas estão denunciando irregularidades no cumprimento da nova regra pelos partidos. Que o TSE estimule a plena fiscalização dessas conquistas.

E gostaria de compartilhar com vocês uma grande alegria que tive por esses dias: o reconhecimento por ter sido agraciado com o Prêmio Mipad (Most Influential People of African Descent) e estar entre os 100 afrodescendentes mais influentes do mundo. O Mipad sempre ocorre após a abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas e o objetivo é homenagear artistas e cidadãos que se posicionam contra o racismo e lutam a favor do direito dos negros. Viva o nosso povo preto!

É incontestável que o mundo está mudando. Olhamos o passado recente onde Barack Obama foi eleito o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Depois dele, com a derrota de Hillary Clinton, tivemos uma onda negativa, mais à direita, em relação às políticas humanitárias. Agora, com a vitória de Joe Biden, uma nova perspectiva se avizinha, com ele assumindo a implementação de políticas de combate ao racismo e ao preconceito. Segundo Biden, a política de abordagem policial vai ser mudada. Isso demonstra que a garantia dos direitos humanos serão prioridade no seu governo. Importante destacar que a sua vice é Kamala Harris, a primeira mulher negra eleita a chegar a vice-presidência daquele país.

Os atos de violência contra o povo negro que aconteceram durante o governo Trump fez com que o voto afro-americano fosse decisivo na vitória de Biden e Kamala. Além do envolvimento de Obama nesta eleição, buscando a unidade das forças progressistas e humanistas.

Assim, percebemos que os ventos da democracia avançam pelo continente americano, trazendo novos ares, respeito às diversidades e aos direitos humanos. Com a democracia, se corrigem os rumos, caminhos são reconstruídos e os olhos da esperança se alegram.

Digo mais uma vez: enquanto houver racismo, não haverá democracia. Sigamos todos juntos por um mundo de plena igualdade. Negros, brancos e indígenas podem e devem viver em harmonia, em fraternidade, solidariedade, terem oportunidades iguais e caminhar juntos com politicas humanitárias e libertárias. Essa é a verdadeira democracia que eu creio, sem ela é a barbárie.

Senador Paulo Paim (PT/RS), presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado

 

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