PUBLICADO EM 06 de jul de 2021
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Carta ao governador

Valdete Souto Severo, presidenta da AJD (Arquivo Pessoal)

“Governador Eduardo Leite, manifesto publicamente meu desejo de que seu ato de coragem se reverta em uma nova postura política, pois a militância contra o preconceito não se separa da luta pela água, pelo trabalho decente, pela preservação ambiental, pela proteção das vidas” – Reprodução

Assumir a própria sexualidade em um contexto de LGBTfobia é sem dúvida um ato de coragem. Marielle Franco talvez seja o exemplo recente mais radical de alguém que compreendeu a impossibilidade de tratar como algo exclusivamente privado a própria sexualidade, em um país no qual a expectativa de vida de uma pessoa transgênero é de 35 anos. E pagou com a própria vida.

Então, parabéns governador, pelo seu gesto.

Demonstra sua compreensão de que somos corpos-território, como nos ensina a cultura indígena latinoamericana. Isso implica compromisso e coerência na luta. Sim, porque tratar publicamente da própria sexualidade é fazer luta política, reconhecendo que essa questão aparentemente privada em realidade atravessa e condiciona praticamente todas as formas de opressão que hoje convivem e que atingem, de modo muito diverso, determinados corpos.

Uma luta, governador, que já estava nas ruas em 2018, implorando para que não elegêssemos um sujeito, cuja história é atravessada por declarações públicas de machismo e homofobia. Uma luta que se confunde com aquela pela preservação do ambiente e das condições de vida digna para todas as pessoas. Reconhecer o corpo como um território político é compreender que essas demandas não se separam.

Por isso, governador, é preciso refletir com seriedade sobre uma verdade incômoda: o Senhor apoiou Bolsonaro. Declarou seu voto e ao fazer isso influenciou conscientemente suas eleitoras e seus eleitores. Não há como dourar a pílula: o Senhor votou e apoiou um sujeito que em 2002 disse que se visse “dois homens se beijando na rua, iria bater”. Alguém que em 2010 sugeriu que a melhor forma de corrigir a homossexualidade é a violência e que seus filhos não são gays porque “foram bem educados”. Em 2011, declarou que “seria incapaz de amar um filho homossexual”, que preferia a sua morte “num acidente”, do que ele aparecer “com um bigodudo por aí”” E arrematou: “para mim ele vai ter morrido mesmo”.

A simples reprodução dessas frases já dói.

Será que só o Senhor não sabia?

Será que realmente descobriu apenas agora a imbecilidade da violência preconceituosa?

O Senhor diz que se arrependeu, governador, mas assusta pensar que o Senhor também se arrependeu de haver prometido não privatizar a água e proteger nossas vidas. Ainda assim, liberou atividades enquanto a pandemia ainda mata e adoece, quer vender a CORSAN e deu forma ao texto do PL 260, que libera o uso de veneno em nossos alimentos.

Agrotóxicos são venenos, governador. Entram nos corpos de quem trabalha, mas também de quem consome o que é produzido. Causam câncer, matam. 241 entidades se mobilizaram e encaminharam pedido para que a urgência do projeto fosse retirada e se permitisse a ampla discussão sobre um tema que nos atinge tão direta e violentamente.

O Senhor silenciou.

A Assembleia aprovou o texto.

Será que se arrependerá depois, governador?

Quantas pessoas terão sido contaminadas?

Quantas terão adoecido e morrido pelo uso de produtos envenenados?

Não temos o direito de ser ingênuos, governador. Mobilizar o afeto de quem sofre na carne a violência cotidiana do preconceito para auferir vantagem eleitoral é perverso. A violência em razão do preconceito contra a sexualidade, dessa necessidade nojenta de controle dos corpos, tem aumentado significativamente. Segundo o Relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia, 329 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais tiveram morte violenta no Brasil em 2019, o que equivale a uma morte a cada 26 horas. Em 2020, o aumento de mortes entre mulheres trans subiu 41% em relação ao ano anterior; 78% das vítimas fatais eram negras. Isso não ocorre por acaso, governador. É resultado do aprofundamento de práticas históricas, que a eleição de alguém homofóbico e machista acentua.

Então, governador Eduardo Leite, manifesto publicamente meu desejo de que seu ato de coragem se reverta em uma nova postura política, pois a militância contra o preconceito não se separa da luta pela água, pelo trabalho decente, pela preservação ambiental, pela proteção das vidas. O exato contrário do que tem feito o governo federal, que o Senhor apoiou. Um governo que se omite e atua para aprofundar a desigualdade, produzir miséria, desmatar, liberar o uso de agrotóxicos banidos no resto do mundo. Um governo que insiste em precarizar condições de trabalho, privatizar empresas estratégicas e resistir contra medidas de preservação da vida em razão da pandemia. Muito do que sua gestão, governador, também tem feito.

Não há arrependimento eficaz, com manutenção de uma política liberal predatória. Até porque o resultado prático dessas escolhas não poderá ser revertido posteriormente. De nada servirá sua declaração, daqui há alguns anos, dizendo-nos que se arrependeu de ter vendido a CEEE D, de ter privatizado a CORSAN, de ter liberado o uso de agrotóxicos. As vidas perdidas, o adoecimento, as árvores derrubadas, as queimadas, as lideranças insurgentes assassinadas, a população LGBTQIA+ marcada pela violência, nada disso é reversível.

Por isso, em coerência com sua coragem de tornar-se corpo-território, peço-lhe governador Eduardo Leite que o Senhor assuma compromisso com pautas sociais, e que, de forma concreta e imediata, VETE o projeto que libera uso de veneno em nossa comida e extinga o processo de privatização da CORSAN.

Ainda há tempo de mostrar ao povo gaúcho que o seu arrependimento em relação ao silêncio e à aposta representada por sua declaração de voto em 2018 tem efeitos profundos na forma como se materializará, daqui para frente, através de seus atos de gestão, a proteção efetiva à vida, à intimidade e à saúde de todos nós.

Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.

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