A americana Rosa Parks ficou conhecida como a mulher que desafiou as leis segregacionistas dos anos 1950 ao recusar-se a ceder seu assento de ônibus a uma pessoa branca. Mas ela não foi a primeira a se rebelar.
Nove meses antes, em março de 1955, uma menina de 15 anos chamada Claudette Colvin fez exatamente o mesmo, na mesma cidade – Montgomery, Alabama.
Colvin, hoje com 78 anos, não costuma contar sua história, mas decidiu se abrir à BBC.
“Havia segregação em todos os lugares – as igrejas, os ônibus, as escolas estavam divididas (entre negros e brancos). Sequer podíamos ir aos mesmos restaurantes”, diz ela.
“Lembro que, em uma Páscoa, tinha que comprar um sapato de couro preto, mas só era possível comprá-lo nas lojas de pessoas brancas, então a minha mãe desenhou a forma do meu pé em um papel marrom para ter o tamanho aproximado, porque não estávamos autorizados a entrar na loja para provar os modelos.”
Ir a uma escola segregada tinha uma vantagem, ela descobriu: os professores davam aulas bastante aprofundadas em história negra.
“Aprendíamos sobre rituais negros e recitávamos poemas, mas eram os professores de estudos sociais os que ensinavam em mais detalhes. Havia aulas sobre (as ícones abolicionistas) Harriet Tubman e Sojourner Truth e sobre uma cantora de ópera chamada Marian Anderson, que era impedida de cantar na (sala de concertos de Washington) Constitutional Hall por ser negra, então ela cantava no Memorial Lincoln.”
Em 2 de março de 1955, Colvin e suas amigas foram liberadas da escola um pouco mais cedo. Caminharam até avistarem o ônibus na rua e decidirem subir.
“As pessoas brancas sempre se sentavam nos assentos da frente, e os negros, atrás. O motorista do ônibus tinha autoridade para designar quem sentava onde, e quando mais brancos entravam no ônibus, ele pedia os assentos (dos negros).”
O problema é que, em determinado momento daquele dia, todos os assentos ficaram ocupados no ônibus de Colvin. Ela e suas amigas estavam sentadas em uma fileira um pouco atrás da metade do veículo – duas delas à esquerda, duas à direita -, e uma passageira branca estava de pé no corredor, entre as meninas.
O motorista queria que todas as garotas se movessem para a traseira do ônibus, para que a mulher branca pudesse se sentar.
“Ele queria que eu saísse do meu assento por conta de uma mulher branca, e eu teria concordado se fosse uma idosa, mas no caso era uma mulher jovem. Minhas amigas levantaram relutantemente, mas eu fiquei sentada no assento da janela”, conta.
Sob a disfuncional lógica da segregação, a mulher branca ainda não poderia se sentar – uma vez que brancos e negros não podiam compartilhar a mesma fileira de assentos.
Mas Colvin disse ao motorista que, tendo pago sua passagem, era seu direito constitucional permanecer onde estava.
“Sempre que me perguntam por que não levantei quando o motorista me pediu, digo que senti como se as mãos Harriet Tubman estivessem me empurrando em um ombro e as mãos de Sojourner Truth, no outro. Me senti inspirada por essas mulheres, porque havia aprendido sobre elas em detalhes”, conta.
“Não estava com medo, mas chateada e com raiva porque sabia que eu estava sentada no assento correto.”
Prisão
O motorista continuou dirigindo, mas parou ao avistar um carro de polícia. Dois policiais subiram no ônibus e perguntaram a Colvin por que ela não levantara.
“Eu fiquei ainda mais desafiadora, e então eles empurraram os livros que estavam no meu colo e um deles me segurou pelo braço e me colocou na viatura. Lembro que eles pediram que eu esticasse os meus braços para me algemar.”
Em vez de ser levada para um centro de detenção juvenil, Colvin foi detida em uma prisão de adultos, colocada em pequena cela com apenas uma pia quebrada e uma cama sem colchão.
“Eu estava muito, muito assustada. Era como aqueles filmes de faroeste em que eles prendem o bandido na cela e você ouve o barulho das chaves. Eu ainda lembro vividamente do clique daquelas chaves.”
Três horas depois, a mãe de Colvin e um pastor de sua igreja chegaram à prisão para obter sua soltura.
“Minha mãe sabia que eu estava chateada com o sistema e com a injustiça que havia sofrido e me disse, ‘bem, Claudette, você finalmente agiu’.”
Depois de Colvin sair da prisão, vieram os temores de que sua casa fosse atacada. Seus vizinhos ajudaram na vigilância, enquanto o pai dela passou noites em claro empunhando sua espingarda, para o caso de haver alguma retaliação de membros do grupo supremacista branco Klu Klux Klan.
Símbolos da resistência
Colvin foi a primeira pessoa a ser presa por desafiar as leis segregacionistas dos ônibus de Montgomery, então o caso foi parar nas páginas dos jornais locais. Até que, nove meses depois, o mesmo ato desafiador foi repetido por Rosa Parks e noticiado em todo o mundo.
Assim como Colvin, Parks estava no ônibus a caminho de casa e sentada na “seção de pessoas de cor”. Quando não sobrou mais lugar, o motorista, J Fred Black, pediu a Parks e a três outros que levantassem. Parks se recusou, foi presa e multada.
Na época, Parks era costureira em uma loja de departamento mas também secretária da filial de Montgomery da entidade de defesa de direitos civis NAACP, a Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor.
Colvin a conhecia bem
“Eu era muito ativa no grupo jovem dela e nós nos encontrávamos todas as tardes de domingo na igreja luterana”, relembra. “A senhora Parks era muito quieta e gentil, de fala suave, mas sempre dizia que devíamos lutar por nossa liberdade.”
Colvin diz que Parks tinha a imagem ideal para se tornar a face da resistência à segregação, justamente por sua experiência na NAACP. A organização não queria uma adolescente como Colvin nesse papel, diz ela.
Outra questão é que, pouco tempo depois, Colvin engravidou, o que reforçou a posição da NAACP de afastá-la dos holofotes e dar preferência a Parks.
Na noite da detenção de Parks, o Conselho Político de Mulheres (WPC na sigla em inglês), grupo feminino de defesa dos direitos civis, começou a distribuir panfletos pedindo o boicote do sistema de ônibus – poucos meses depois, haveria um grande boicote, encabeçado por 40 mil afro-americanos, no mesmo dia em que um jovem pastor, Martin Luther King, era eleito presidente da Associação por Melhorias em Montgomery (MIA).
O boicote chamou a atenção, mas a cidade ainda resistia a ceder às exigências dos manifestantes – de extinguir a norma que impedia a contratação de motoristas de ônibus negros e de implementar a regra de que o assento pertenceria a quem sentasse primeiro.
Um ano depois, em 20 de dezembro de 1956, a Suprema Corte dos EUA decidiu pela extinção da segregação racial em ônibus. O processo legal contou com o depoimento de quatro requerentes, sendo um deles Claudette Colvin.
“A NAACP havia entrado em contato comigo, e minha mãe me disse: ‘Claudette, eles devem estar precisando muito de você, já que eles tinham te rejeitado quando você engravidou sem estar casada'”, relembra.
“Então eu fui (à Suprema Corte) e dei meu depoimento sobre o sistema, dizendo que ele nos tratava injustamente.”
Colvin conta que, após a decisão do tribunal, as coisas começaram a mudar lentamente. No entanto, alguns passageiros brancos ainda se recusavam a se sentar ao lado de negros.
Vida em Nova York
Muitos anos depois, Colvin se mudou para Nova York para trabalhar como enfermeira e passou a evitar mencionar seu papel no movimento de direitos civis.
“Nova York tem uma cultura completamente diferente de Montgomery (localizada no Sul dos EUA). A maioria das pessoas não se importava que nos sentássemos no ônibus; os nova-iorquinos estavam mais preocupados com problemas econômicos. Eu não queria ficar discutindo isso com eles”, explica.
Em 2009, o escritor Phillip Hoose publicou um livro contando, pela primeira vez, a história de Colvin em detalhes.
“Ele disse que queria que as pessoas soubessem a respeito daquela menina de 15 anos porque, realmente, se eu não tivesse dado aquele primeiro grito por liberdade, não teria havido uma Rosa Parks e, depois, não teria havido um (Martin Luther) King. E eu vivi para ver isso tudo mudar.”
Fonte: BBC Brasil