A reforma da legislação tributária, a começar pela Constituição Federal, figura entre as prioridades do Governo e do Congresso nesse começo de ano. Um assunto de difícil compreensão, mas que influencia a renda disponível para consumo, o financiamento de serviços públicos, os benefícios sociais, as regras da aposentadoria e pensão, o crescimento da economia e a geração de empregos, entre tantas outras coisas.
Numa estratégia de fatiar a reforma, o governo e o congresso pretendem alterar primeiramente as leis que tratam dos impostos sobre bens e serviços comercializados, incluindo o ICMS, ISS, PIS, COFINS, IPI etc. A justificativa é de que a complexidade e irracionalidade desse tipo de tributação geram custos desnecessários, reduzem a produtividade das empresas e tolhem o crescimento econômico. Os tributos sobre o consumo responderam, em 2021, por 44% da arrecadação anual, sendo os de maior peso na carga tributária. Dependendo de como ficar essa parte principal, numa segunda etapa seria mais fácil ajustar os impostos sobre a renda (24% da arrecadação total), a folha de salários (26%), sobre a propriedade (5%) etc.
Essa estratégia gera críticas por não priorizar a correção da injustiça no sistema de impostos. Estudo recente mostra que enquanto os 10% mais pobres gastam 24,2% da sua renda em tributos, os 10% mais ricos recolhem apenas 18,7% do que recebem. A conta considera tanto os impostos embutidos nas mercadorias quanto os impostos sobre a renda e propriedade . Isso ocorre porque é baixa a tributação das altas rendas, que em parte escapam das garras do “Leão”, das grandes heranças e da renda da propriedade, mas também pelo excessivo peso dos impostos sobre o consumo que não distinguem as pessoas conforme sua renda.
Teme-se que a segunda etapa da reforma alterando os impostos sobre a renda e a propriedade seja abandonada pela provável oposição das classes altas. Por isso, defende-se que as duas partes da reforma tramitem simultaneamente, inclusive porque medidas como o fim da isenção dos lucros distribuídos e o aumento dos impostos sobre herança não dependem de mudanças na Constituição.
As propostas principais hoje em discussão no Congresso, as PECs 45 e 110, basicamente unificam impostos federais, estaduais e municipais sobre bens e serviços em novo imposto sobre o valor adicionado, o Imposto sobre Bens e Serviço (IBS). No IBS, o vendedor de um bem vai recolher o imposto sobre o valor da venda deduzido do que ele pagou de imposto na compra da matéria prima e dos insumos para seu negócio. Essa solução visa eliminar a cumulatividade, a tributação de um valor que embute impostos cobrados nas etapas do ciclo de produção. Além disso, haveria um imposto seletivo para uma lista de produtos, de tributação única na venda ao consumidor, para desestimular o consumo, por exemplo, de itens que causem mal à saúde.
Essas mudanças têm efeitos desiguais sobre setores, empresas e regiões. Por exemplo, os representantes do setor serviços dizem que as propostas irão aumentar os impostos desse setor, o que geraria perda de empregos em atividades que são grandes empregadoras. Ao invés, seria beneficiada a indústria, que hoje reclama pagar tributos muito além do que deveria. Nesse embate, o setor de serviços pede uma alíquota diferenciada, mais baixa, o que significaria que os outros setores teriam que arcar com alíquotas mais elevadas. Esse é o tipo de questão que precisa ser avaliada pois, se é verdade que os serviços são hoje os maiores empregadores da economia, a indústria é considerada uma atividade de maior potência para induzir o progresso tecnológico, desenvolver a economia e expandir o emprego de melhor.
Outra questão importante refere-se ao local de tributação do consumo. Hoje, os principais tributos do consumo revertem para o local de origem do produto ou serviço, onde ele é produzido e não para o local onde ele é comprado, consumido. Assim, muitas vezes quem adquire um determinado produto gera arrecadação para um município ou estado distante de onde reside e, assim, não se beneficia do retorno desses impostos. Com isso, prosperam os estados e municípios produtores e ficam carentes os locais de residência da população que paga impostos. Corrigir esse ponto parece fundamental para que desigualdades regionais possam ser reduzidas, mas os estados e municípios produtores reagem negativamente.
Enfim, a reforma tributária é mais do que necessária por um conjunto variado de motivos, inclusive o de simplificar e retirar distorções na tributação sobre o consumo. Porém, nosso país se destaca como um dos mais injustos do planeta, o que prejudica não só a vida em sociedade como o desempenho econômico. Atualmente, a tributação alimenta as desigualdades ao invés de reduzi-las. Por isso, ainda que o fatiamento da reforma possa ser a forma que viabilize sua realização, deve haver o firme propósito de se avançar na mudança na tributação da renda e da propriedade no sentido de corrigir iniquidades que todos os dias nos agridem.
Clóvis Scherer, Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)