PUBLICADO EM 10 de set de 2020
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Nomear evangélico para cuidar de indígenas isolados “é proposital”, diz historiador

Para especialista, política de Bolsonaro contraria direitos constitucionais e expressa ignorância sobre cultura indígena

“A evangelização é um movimento autoritário, intolerante e inconstitucional, já que a constituição garante aos índios suas próprias crenças, seus sistemas religiosos próprios”, explica Márcio Couto Henrique – Funai

No dia 2 de fevereiro deste ano, o pastor evangélico Ricardo Lopes Dias foi nomeado para o cargo de Coordenação das Políticas de Isolados, órgão da Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável por garantir o direito dos povos isolados de permanecerem em isolamento.

Para o historiador Márcio Couto Henrique, em entrevista ao Brasil de Fato, a escolha de Ricardo Lopes Dias é “proposital”.

“[Bolsonaro] é um homem que não sabe dialogar com as diferenças e que se utiliza de uma interpretação particular do que é o cristianismo para propor a evangelização dos índios”, analisa o professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Durante a entrevista, o professor explicou os impactos da evangelização de indígenas ao longo da história do Brasil, desde a invasão da América pelos europeus. Segundo Henrique, a escolha de um evangélico para Coordenação de Isolados da Funai tem a ver com um pensamento colonial de que é necessário “civilizar” os indígenas.

“O discurso do Bolsonaro é um discurso extremamente atrasado, preconceituoso e é um discurso de violência contra as populações indígenas”, resume.

O pastor Ricardo Lopes Dias, escolhido por Bolsonaro, é ligado ao movimento Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), que atua na evangelização de indígenas desde 1950, e está com a nomeação em análise.

Confira abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato: Professor, qual a origem do movimento de evangelização dos indígenas?

Márcio Couto Henrique: Desde a descoberta da América ou desde a invasão da América, os indígenas eram considerados povos pagãos, porque se pressupunha que eles não conheciam o Deus verdadeiro, que seria o Deus cristão. Então, no período colonial o grande objetivo era cristianizar e catequizar os índios, retirá-los da condição de pagãos, ou seja, eles deveriam deixar de ser índios.

No período imperial da história do Brasil, os índios passaram a ser considerados, mais do que pagãos, eles passaram a ser vistos como selvagens, primitivos. No século 19, mais do que cristianizar, do que evangelizar os índios, a ideia era civilizar o índio e isso implicava basicamente na ideia de que os índios eram preguiçosos, de que não trabalhavam ou de que não sabiam trabalhar.

Essa civilização deveria, necessariamente, transformar o índio em um trabalhador produtivo no sentido do ocidente, de gerar lucro, de gerar mais-valia.

A Constituição Brasileira, no seu artigo 231 reconhece aos índios o direito às suas crenças, suas tradições, aos seus costumes tradicionais.

Ao longo do século 20 permaneceu essa ideia de que o índio deveria deixar de ser índio, para ser civilizado, para ser um trabalhador nacional e foi assim com o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e foi assim também com a Fundação Nacional do Índio (Funai).

A grande mudança – quanto aos indígenas – ocorre em 1988, porque a Constituição Brasileira, no seu artigo 231 reconhece aos índios o direito às suas crenças, suas tradições, aos seus costumes tradicionais. Essa é a primeira vez, na história do Brasil, em que os índios têm garantido, na legislação brasileira, o direito de permanecer sendo índio.

O artigo diz: “são reconhecidos aos índios: sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre suas terras, que tradicionalmente ocupam”. Na letra, é assim que consta, mas. na prática. sabemos que não é assim que ocorre.

De que forma a evangelização dos indígenas pode ser entendida nos tempos atuais?

A continuidade nesse projeto de evangelização dos indígenas tem a ver, primeiro, com o desrespeito aos direitos indígenas, que são garantidos pela Constituição Brasileira.

Em segundo lugar, tem a ver com o crescimento de igrejas pentecostais e neopentecostais, que traduzem ao pé da letra um dos versículos bíblicos que diz: “Ide e pregai a todos os povos da terra”.

Assim, essas igrejas com cunho fundamentalista acreditam que, enquanto houver um ser humano que não conheça aquilo que eles acreditam ser a verdade, que seria o cristianismo, devem estar lá: divulgando, evangelizando, anunciando o que seria a verdade do cristianismo.

Isso explica esse movimento, que na verdade, é um movimento autoritário, intolerante e um movimento inconstitucional.

A continuidade dessa prática tem a ver com o Estado, que se diz laico, mas que sempre teve muita influência das religiões cristãs, antes o catolicismo e, agora, um pouco mais voltado para as religiões pentecostais e neopentecostais.

Podemos dizer que existe um interesse comercial, para além da evangelização?

“Nunca foi possível separar interesses comerciais dos interesses religiosos desde a descoberta da América, digo, a invasão da América. Esses interesses comerciais e religiosos sempre estiveram atrelados.”

Não é só uma questão comercial. Não dá para dizer que as questões de interesses religiosos, escondem o verdadeiro interesse que é o interesse comercial, porque, tanto na colônia quanto hoje, grande parte dessas igrejas que defendem a evangelização dos indígenas têm pessoas que acreditam, de fato, que isso é melhor para os indígenas, que eles precisam conhecer Jesus, conhecer a verdade bíblica, a verdade cristã.

Assim, tanto no passado quanto hoje, esses interesses estão relacionados diretamente. Acho importante destacar que o fato de os índios serem batizados, serem evangelizados, não significa dizer que eles se tornam exatamente cristãos.

“Nunca foi possível separar interesses comerciais dos interesses religiosos desde a descoberta da América, digo, a invasão da América.”

Temos vários exemplos na história do Brasil, desde a colônia, de índios que se batizaram, que se crismaram nas igrejas, que adotam nomes cristãos, mas que permanecem numa prática que muitas vezes agrega elementos do cristianismo às suas práticas tradicionais.

Logo, temos que ter muito cuidado antes de definir um índio como a “aculturado”, dizer que ele “perdeu a cultura”, porque na realidade essas questões são muito mais complexas. Os índios são capazes de absorver novas crenças e manter o diálogo com as suas crenças tradicionais assim como todos nós.

A evangelização facilita o genocídio de uma população indígena?

Depende muito do caráter da evangelização. Se for uma evangelização que não respeita os direitos indígenas, que não respeita as tradições indígenas, sim. Se for um tipo de evangelização que não tem cuidado com o contato com grupos considerados isolados, que doa roupa para índios, essa evangelização certamente pode levar a um genocídio.

Contudo, o que é mais comum é o modelo de evangelização que nós temos no Brasil, na América e no mundo, que pode conduzir ao chamado etnocídio, que seria a destruição, a desarticulação de uma cultura, ou das culturas dos povos indígenas.

Assim, a relação da evangelização com o genocídio tem mais a ver com as formas de violências utilizadas, muito mais a ver com a transmissão de doenças, do que propriamente uma guerra aberta contra populações indígenas.

“O modelo de evangelização que nós temos no Brasil, na América e no mundo, pode conduzir ao chamado etnocídio.”

De fato, diversas culturas indígenas desapareceram ao longo da história sendo contaminadas por evangelizadores, sejam católicos ou protestantes.

Tu consideras proposital o governo Bolsonaro colocar um pastor evangélico na Coordenação de Isolados da Funai ?

Certamente que sim. Bolsonaro já manifestou abertamente e diversas vezes a compreensão que tem acerca das populações indígenas. Ele é um político, uma autoridade completamente ignorante com relação às culturas indígenas. É um homem que não sabe dialogar com as diferenças e que se utiliza de uma interpretação particular do que é o cristianismo para propor a evangelização dos índios.

Logo, a escolha que ele fez de um evangélico para a Coordenação de Isolados tem a ver com esse pensamento dele de que é necessário civilizar o índio.

O discurso do Bolsonaro é extremamente atrasado, preconceituoso. É um discurso de violência contra as populações indígenas.

E eu queria destacar que quando se fala isolados, não significa necessariamente que esses índios nunca tiveram contato com a população brasileira. É possível que seja um grupo remanescente de um grupo maior que já manteve contato, mas que determinada parcela desse grupo maior optou pelo autoisolamento.

De todo modo, a própria Constituição, mais uma vez, garante a esses grupos que chamamos de isolados o direito de não manter contato e o papel do Estado deveria ser de garantir a proteção e o direito que esses índios têm, legalmente, de fazer contato, ou não. De fazer contato quando for conveniente para eles.

Mas quando o Bolsonaro escolhe um evangélico para esse cargo tão importante, ele está sinalizando que esse cidadão vai colocar em prática essa perspectiva da evangelização, o que vai ser uma verdadeira tragédia para os povos indígenas que ficam isolados do Brasil.

É um problema, então, os indígenas serem evangelizados?

Não existe problema algum dos povos indígenas conhecerem o cristianismo ou qualquer outra religião que seja. O único problema tem sido a forma como eles têm tido acesso ao cristianismo.

O problema é que o cristianismo tem chegado a eles desde o início da colonização como obrigação, não como escolha. Tem sido sempre uma imposição do mundo ocidental desde 1492 até hoje. Esse é o grande problema.

 

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