PUBLICADO EM 24 de mar de 2019
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Como um hospital italiano salvou pacientes dos nazistas inventando uma doença falsa

Por trás das portas fechadas do Hospital Fatebenefratelli, em Roma, estava uma enfermaria com pacientes sendo tratados da Síndrome K. Essa doença nova e não familiar – cujo nome evocava a Síndrome de Koch (tuberculose) – era um forte impedimento para os soldados nazistas ocupantes que cumpriam buscas de rotina pelo hospital por judeus, partidários e antifascistas. Temendo infecção, os nazistas não se atreviam entrar na enfermaria, voltando sua atenção para outro lugar.

Pacientes nessa enfermaria foram hospitalizados e classificados como sofrendo de Síndrome K, no final do ano de 1943. Em 16 de outubro daquele ano, os nazistas passaram um pente fino no gueto Judeu e outras áreas de Roma, deportando cerca de 1.200 judeus. Apenas 15 sobreviveram aos campos. Depois disso, os médicos e frades do hospital acolheram números cada vez maiores de pacientes. Esses pacientes eram, no entanto, refugiados. A Síndrome K era uma doença inventada.

Ela foi criada por Giovanni Borromeo, o principal médico do hospital, com a ajuda de seus outros médicos, com a intenção de salvar os judeus e antifascistas que buscavam refúgio lá. Nascido em 1898, Borromeo era um declarado antifascista. Antes de ocupar seu posto no Fatebenefratelli, ofereceram a ele a posição de médico principal em dois outros hospitais, mas ele rejeitou ambos, porque eles requeriam que ele se tornasse um membro do Partido Fascista. Ele aceitou o emprego no Fatebenefratelli, porque ele era dirigido por frades católicos e, de acordo com um acordo entre a Igreja Católica e o regime fascista, era então considerado um hospital privado, desanexado de regulamentos do Estado. Ele não requeria de seus funcionários que pertencessem a um partido político.

No hospital, Borromeo contratou muitos médicos que haviam sido discriminados pelo regime. Entre eles estava o médico judeu Vittorio Emanuele Sacerdoti, que escondeu alguns dos sobreviventes dos eventos de 16 de outubro. Nos meses seguintes, o hospital se tornou um centro de resistência política.

Mas a resistência antifascista no Fatebenefratelli não estava apenas confinada na Síndrome K. Em colaboração com os frades, Borromeo e seus aliados instalaram uma estação de rádio dentro do hospital, e a usaram para comunicar com partidários de modo a organizar sua luta. Quando Borromeo e os frades perceberam que os nazistas tinham identificado a posição da rádio, eles jogaram tudo no Tibre.

A posição do Fetebenefratelli na Ilha Tibre e sua proximidade com o gueto criaram suspeitas entre os oficiais nazistas. Borromeo e seus colegas se prepararam para sua inevitável visita. Judeus hospitalizados (e outros pacientes “políticos”) foram listados em documentos oficiais como sofrendo de Síndrome K. O nome, no entanto, também era uma piada arriscada. Borromeo batizou a doença fictícia de K por causa de Albert Kesselring ou Herbert Kappler. Kesselring era o comandante em chefe nazista do Sul, e ordenou Kappler, que era chefe de polícia nazista de Roma, a encarregar-se do massacre nas Cavernas de Ardeatine, onde 335 pessoas (soldados e civis) foram mortas. Ambos Kesselring e Kappler foram julgados por crimes de guerra e condenados depois do seu fim.

“Síndrome K” logo se tornou um código que se referia a pessoas escondidas no hospital. Adriano Ossicini (que mais tarde se tornou Ministro da Saúde da Itália, nos anos de 1990), entre outros, escreveu mensagens para Borromeo, pedindo um número preciso de leitos para serem reservados para pacientes com K, que chegariam no hospital nos dias seguintes. O hospital aceitou refugiados até o dia em que os aliados entraram e libertaram Roma.

Pietro Borromeo, filho de Giovanni, revelou que, como esperado, no final de outubro, os nazistas realizaram uma busca por judeus e antifascistas no Fatebenefratelli. Borromeo levou-os ao redor do hospital e descreveu, em detalhes, os terríveis efeitos que a Síndrome K tinha em suas vítimas. Tendo feito isso, ele os convidou para procurar nas enfermarias. Os nazistas, que Pietro Borromeo disse que estavam acompanhados por um médico, rejeitaram o convite e saíram sem mais investigações.

Há diferentes versões sobre como os nazistas buscaram pelos judeus no hospital, relatos diferentes de como Borromeo os despistou, e estimativas variadas do número de vidas salvas. Cada versão confirma a invenção da Síndrome K. Pietro Borromeo sugeriu que todo o empreendimento foi uma planejada e sistematizada campanha na luta contra o fascismo, enquanto os médicos Ossicini e Sacerdoti, por outro lado, sugeriram que era principalmente improvisado, uma das muitas espontâneas e desorganizadas formas de resistência à ditadura.

Qualquer que seja a realidade da história, nós sabemos que a Síndrome K manteve os nazistas longe dos “pacientes”, e que a doença inventada salvou muitas vidas. A coragem de Borromeo foi reconhecida tanto na Itália, como internacionalmente. Em 2004, anos após sua morte em 1961, Yad Vashem, o memorial oficial de Israel para as vítimas do Holocausto, o reconheceu como um dos Justos entre as Nações, uma honra concedida a gentios que arriscaram suas vidas para salvar judeus durante o Holocausto.

Como outros homens e mulheres que esconderam os judeus em suas casas, em espaços públicos, ou que mentiram para salvá-los, os médicos e frades no Fatebenefratelli puseram suas próprias vidas e liberdade em sério risco. Mas a história também mostra o papel ambivalente da Igreja Católica sob o fascismo: era uma instituição que às vezes fingia não ver o que estava acontecendo na Itália de Mussolini, mas outras vezes apoiava a luta contra a tirania.

Os oficiais nazistas em Roma nunca se tornaram conscientes de que a Síndrome K não existia. Isso foi um caso onde desinformação, medo e ignorância trabalharam como uma força para o bem.

Fonte: Francesco Buscemi Francesco Buscemi/History Today

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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