PUBLICADO EM 29 de nov de 2021
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Ômicron

Por muito tempo, os povos africanos vieram para a América Latina como mercadorias: algemados, maltratados, separados de suas famílias e comunidades. Foram violados de múltiplas formas, em um processo de escravização que atingiu não apenas seus corpos, mas também suas almas. Sob o signo da racialização, elas e eles foram identificados e tratados como não sujeitos, pessoas cuja morte não precisava ser evitada.

Essa racionalidade persiste, porque estrutura nossa forma de sociabilidade.

Quando a covid-19 chegou ao Brasil, foram esses corpos, quase todos pretos, ou “quase brancos quase pretos de tão pobres”, como diz a música de Caetano e Gilberto Gil, os primeiros atingidos. Corpos que seguiram circulando, enquanto muitos de nós podiam estar em casa, protegidos. Elas e eles receberam aplausos e até algumas matérias jornalísticas exaltando a importância de sua atuação. Nada além disso. Permaneceram expondo-se, sem garantia contra a despedida, sem redução da jornada ou aumento do salário. Ao contrário, foram vítimas de legislações e de decisões judiciais que permitiram sua despedida do emprego, a redução de seus salários e a precarização de suas condições de existência. Vítimas de construções jurídicas que justificam sua punição, caso não comprovem estar imunizadas. À pandemia, somou-se a explicitação do ódio à classe trabalhadora. Um ódio racista, que tornou a vida dessas pessoas ainda mais desafiadora.

É a partir da compreensão dessa racionalidade que devemos pensar sobre a aparente incompetência para lidar com a pandemia. Na semana passada, dois anos depois do início dessa tragédia humanitária, tivemos o anúncio de uma cepa diferente, potencialmente perigosa, porque mais transmissível e talvez mais letal. A Ômicron foi classificada como uma “variante de preocupação” internacional. A variante B.1.1.529 do coronavírus foi detectada pela primeira vez na África, continente com a menor taxa de vacinação. Segundo o Our World in Data apenas 0,6% da população africana está completamente imunizada. Os motivos são múltiplos, mas o principal deles é a racionalidade capitalista e, portanto, estruturalmente racista. Empresas multinacionais sediadas em países ricos produziram e venderam vacinas que deveriam ter sido disponibilizadas gratuitamente a todas as pessoas. Estados compraram e ainda armazenam doses para além da quantidade populacional que possuem. Enquanto isso, vários países africanos não as receberam e nem têm condições de comprá-las.

O Brasil, apesar do que a gestão pública quer fazer crer, ainda vive uma situação dramática: mais de 300 óbitos a cada 24h; mais de 614 mil mortes declaradas por covid-19 e de 22 milhões de pessoas infectadas, em menos de dois anos. Sabemos que esses resultados também estão diretamente relacionados ao racismo. A covid-19 não atinge do mesmo modo os diferentes corpos. Um corpo bem alimentado, agasalhado, descansado, não enfrentará o ataque do vírus da mesma forma que um corpo afamado, com frio e exausto. A pandemia aprofunda a gestão violenta que escolhe quem deve viver e quem pode morrer.

De acordo com a ONU, um décimo da população mundial, ou seja, cerca de 811 milhões de pessoas passaram fome em 2020, embora houvesse produção de alimento suficiente para todos. Sem alterar essa realidade, dificilmente será possível vencer a pandemia. Alimentos não podem depender de dinheiro para serem adquiridos e consumidos. Ter casa e roupa adequada é também condição para resistir ao vírus e a todo o ataque que ele imprime sobre o organismo humano. Países ricos poderão fechar novamente suas fronteiras, mas não evitarão a circulação da doença. Depois de dois anos e tantas novas cepas, não é razoável, nem minimamente racional, negligenciar essa lição. Se esse é o caminho ainda trilhado, é porque a crise não é apenas sanitária, é uma crise de civilidade.

Confesso que quando ouvi a notícia da variante Ômicron, meu primeiro impulso foi o de desligar a TV, não ler a reportagem, ignorar. Estou exausta, não sei como suportar uma nova onda letal. Temo não ser a única. O pensamento de uma vez mais ver interditada a circulação de abraços e sorrisos, apavora. Logo agora, que começamos a relaxar.

A questão é que a ausência de vacinas nos países mais pobres revela que o problema da pandemia segue sendo gerido de modo egoísta. Essa é uma forma de não enfrentar a realidade, afinal a imunização é coletiva ou não funciona. Não se trata, portanto, de incompetência. Tampouco de ignorância em relação às possibilidades eficazes de combater a doença. Trata-se de escolhas políticas determinadas pelo racismo estrutural, pela falta de solidariedade.

Estamos flertando com a inviabilidade de vida humana na terra e parece que poucos percebem isso. Ao contrário, por aqui seguimos ouvindo discursos sobre a necessidade de suprimir direitos sociais, quando o caminho urgente é inverso: é preciso garantir emprego seguro, aumentar a renda, reduzir o abismo entre ricos e pobres e promover a vacinação coletiva. Essa imunização depende de informação e, ao mesmo tempo, de combate às notícias falsas. Depende de incentivo público e, sobretudo, de diálogo. Depende de acolhimento e não de exclusão.

Para além das medidas necessárias de combate direto ao vírus, é urgente enfrentar o fetiche da propriedade privada. Sem exigir uma divisão equitativa de renda, terra e riquezas, não vamos avançar. Esse não é um discurso vazio. Revela-se em práticas que sequer são difíceis de serem adotadas. No plano mundial, é urgente exigir a quebra das patentes e a distribuição gratuita das vacinas e de alimentos, financiada pelos Estados, segundo suas riquezas. Ou imunizamos o maior número possível de pessoas ou ninguém estará a salvo. E a imunização não será obtida com ameaça de despedida ou punição, mas sim com campanhas públicas de conscientização e com a distribuição das vacinas de modo que cheguem, em número suficiente, a todas as comunidades.

É uma vergonha mundial o déficit de vacinas no continente africano. Uma vergonha que poderá custar a possibilidade de seguirmos existindo. Fazer valer a racionalidade solidária é um passo pequeno, mas bem importante para que seja possível seguir para algum lugar.

Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.

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