PUBLICADO EM 03 de dez de 2017
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A greve de 1917 nos comentários do ativista político José Luiz Del Roio

Por André Cintra

Em julho de 1917, com a Primeira Guerra Mundial em curso na Europa, a paralisação das fábricas em São Paulo e, posteriormente, no Brasil, foi motivo de grande preocupação para os patrões: “Eles estavam preocupados porque a guerra dava muito dinheiro e a produção estava parando”. As principais reivindicações dos operários eram a redução de horário de trabalho e salário que desse, pelo menos, para a sobrevivência. Com um Brasil em formação, recém-saído do império, que ainda sentia pulsar a escravidão recém-abolida, a greve geral de 1917 projetou o trabalhador como sujeito político e expôs os limites e as possibilidades de suas linhas ideológicas. 

O jornalista José Luiz Del Roio, nesta entrevista ao Centro de Memória Sindical, fala sobre o perfil do operariado brasileiro e o contexto econômico e social na época. Segundo ele houve conquistas naquela greve, mas “o que os trabalhadores conquistaram, eles nunca podem considerar conquistas definitivas. E se o Estado for oligárquico, escravocrata, eles estarão sempre disponíveis a fazer voltar para trás as conquistas operárias. Sempre! A história está marcada por isso, sobretudo num país como o Brasil, com uma elite escravocrata de origem e de mentalidade”.

 

 

Radio Peão Brasil: Bom dia. Estamos aqui no Cedem para entrevistar José Luiz Del Roio. Como podemos te qualificar? Como ativista ou historiador? Como você prefere?

 

Del Roio: Como um ativista político. É muito mais bonito.

 

1ª Guerra

 

RPB: Vamos começar então. O ano de 1917 é marcado pela Revolução Russa e tem o curso da I Guerra Mundial. Como esses fatos têm alguma conexão com o Brasil?

 

Del Roio: Você acenou a 1ª Guerra Mundial. A guerra influi no Brasil e o transforma rapidamente. O Brasil era um país que recebia muitos imigrantes, que vinham, sobretudo, da Itália, mas também da Alemanha, Portugal. E, como esses países entraram no conflito, não exportavam mais mão de obra. A mão de obra foi morrer nas trincheiras. Então, tivemos, no Brasil, um bloqueio de mão de obra. Isto facilitou para o trabalhador brasileiro porque tirou a pressão de nova mão de obra chegando.

Segundo, aumentou muito a exportação brasileira. Pense no campo têxtil, os soldados, dezenas de milhões, precisavam de uniformes. E os operários na Europa diminuíam, porque eles tinham de sair das fábricas para morrer na guerra. Então, em todo o setor têxtil aumentou muito a produção.

Mas não só no setor têxtil. Aumentou a produção em todos os setores, por exemplo, alimentar; tudo que era possível enviar, em termos de alimentos, era enviado para lá. Moinhos foram criados. Por sinal, houve uma grande carestia aqui, faltava pão porque exportávamos toda a farinha.

Em alguns setores a exportação aumentou muito e alargou a base de trabalhadores, inclusive industriais. Diminuiu a chegada de gente de fora e aumentou a exportação, todo mundo a trabalhar. Então, vamos dizer, nós chegamos a uma desocupação muito baixa, e isto reforçou necessariamente a classe operária. Este é um dos aspectos.

O outro aspecto da guerra foi certa radicalização na sociedade, particularmente entre os trabalhadores. A guerra foi o apogeu da loucura, do nacionalismo, do chauvinismo. Aqui no Brasil, a nossa classe operária – estou falando mais das cidades – era composta por imigrantes, que chegavam de diversos países. E, basicamente, se as lideranças europeias, socialistas e anarquistas na maioria, traíram e apoiaram as suas burguesias para ir para o grande matadouro, no Brasil teve uma coisa excepcional, as lideranças anarquistas, sobretudo, mas também socialistas, sempre se contrapuseram totalmente à guerra. Tanto que foi feito em 1915, no Brasil, um congresso mundial contra a guerra. A classe operária, os trabalhadores no geral, os brasileiros eram contra a guerra.

 

Rússia 1917

 

Depois, claro, em março, começaram a chegar as notícias de que a ditadura mais feroz que se conhecia, o Czarismo russo, caía por uma sublevação de mulheres operárias em Petrogrado. Foi incrível! Como aquele monstro, aquela coisa inamovível cai em consequência de uma manifestação de mulheres operárias que pediam pão? Isto deu muita esperança e começou a abrir um momento confuso, mas de grande esperança. Então, o ano de 1917 foi um ano muito importante também para o Brasil.

 

O Brasil na época

 

RPB: No caso do Brasil, fazia uns 25, 30 anos que havia essa república socialmente oligárquica, da mão de obra. Em que pé estava isso em 1917? Como a política-econômica estava configurada?

 

Del Roio: Nós estávamos na Velha República, era uma república oligárquica, sem dúvida nenhuma, controle do voto, a maioria da população brasileira camponesa, mergulhada na mais infame miséria e ignorância. Claro, o camponês sempre teve sua cultura, mas vivia afastado do mundo, sem meios de comunicação, não conhecia o país, nem seu estado, quanto mais o mundo. Então a dominação oligárquica foi praticamente total.

E a classe dominante industrial estava nascendo, a república tentava modernizar o país. As cidades estavam crescendo porque o capital, que estava ligado ao escravismo, se transferiu ao café.

Esses cafeicultores ficaram riquíssimos, seus filhos foram estudar na Europa e não queriam viver na fazenda. Queriam viver em uma cidade decente. Se não toda decente, pelo menos uma parte decente, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.

Isso gerou um crescimento urbanístico, com o surgimento de cafés, teatros, obras de arte, música clássica, e criou um setor de classe da oligarquia que se transformou em burguesia industrial.

Essa burguesia industrial tinha duas características: primeiro ela era ligada ao feudalismo do campo, aquela concepção escravocrata, nem feudal, escravocrata do campo. O mesmo capital que tinha o escravocrata do campo, com o seu café, tinha a indústria com os seus operários.

Tanto é que os primeiros italianos que vieram para cá chamavam esses trabalhadores de squiave bianque, os escravos brancos.

Essa burguesia industrial era feroz, não concedia nada, só queria explorar o território, o suor, o sangue, a matéria prima. Não lhe interessava o país e a nação. E depois havia os setores da classe dominante, essa classe industrial dominante, que era estrangeira mesmo, italiana, o Matarazzo, Scarpa, Crespi, Gamba, uma parte alemã, com capitais ingleses, como na famosa Light, que controlava os bondes, a luz, a energia e a água. Ou seja, tudo. Na verdade, os caras eram britânicos, mas a companhia era canadense. Estávamos mal-arranjados com a política e isso gerou, posteriormente, algumas cisões, não dos operários, não do proletariado, mas da classe média em ascensão, que se exprimirá de várias formas, e uma delas é o tenentismo.

 

Principais reivindicações do proletariado

 

RPB: Antes de 1917 houve registros de grandes protestos. Quais eram as principais reivindicações?

 

Del Roio: Quase sempre a mesma, não mudava muito. Redução de horário de trabalho, era a primeira, porque, se deixasse, aqueles homens matavam o pessoal de tanto trabalhar na fábrica. E tinha mais mão de obra chegando. Então, era necessário reduzir o horário de trabalho. Você trabalhava 14 horas, inclusive aos sábados, e, às vezes, se tivesse necessidade, também no domingo de manhã. Claro, o ser humano não resiste a isto. Então, redução no horário de trabalho era a principal. A outra era muito simples: salário que dê para não morrer de fome. E, depois, podia variar de categoria, mas o básico sempre foi isso. As reivindicações não eram políticas, eram estritamente econômicas. Mais do que isto, eram de sobrevivência, não econômica, de sobrevivência.

 

RPB: E aos poucos também explodiram mais demandas sociais, não é?

 

Del Roio: Isso foi um pouco mais tarde. Quando as cidades começaram a se consolidar, os bairros mais ricos e o terreno começou a ficar caro.

Numa primeira fase era possível adquirir terrenos muito baratos, sempre na beira de rio e de brejo, cheio de ratos e baratas e com inundação, mas era possível. Depois, com esse crescimento, abertura de avenidas, a modernização da cidade, qualquer terreno começou a ficar caro para o bolso do trabalhador, que passou a viver de aluguel em cortiços.

E como a população crescia muito os aluguéis eram muito altos. Então começou também a pressão para os aluguéis. Não era bem uma luta pela casa, mas para baixar os aluguéis.

 

Anarquistas

 

Quando o anarquismo começou a ter força nós não tínhamos indústrias. Nossos núcleos trabalhadores eram núcleos baseados, sobretudo, em artesãos. E os trabalhadores eram estrangeiros. Nossa imigração foi basicamente procedente de países latinos, das zonas mais pobres e exploradas de países pobres, onde o anarquismo era muito forte e não era suplantado pelo socialismo, como tinha sido nos países com maior industrialização, como França, Alemanha, Bélgica, Inglaterra. Você pode dizer que havia um “trabalhador nacional”. Ele era pouco nacional. Ou porque chegava do campo e não entendia nada de nação, ou porque era negro e não tinha nada a ver com essa nação brasileira a não ser paulada, mau tratamento, discriminação e racismo. É difícil.

 

RPB: Houve uma originalidade do anarquismo aqui no Brasil?

 

Del Roio: Sem dúvida nenhuma. Eles encontravam uma grande dificuldade, é claro que com o tempo se adaptavam. Imagina um daqueles anarquistas aqui, em um país com esta extensão, com a luta de classes e a luta social no campo, que se expressava muito por meio do messianismo, como em Canudos, Contestado. Aquilo para um anarquista era um horror. Então os pobres anarquistas brasileiros anticlericais, antirreligiosos, “antitudo”, tiveram de fazer um esforço infernal para entender essa cultura com formação colonial e imperial do Brasil. Se o combate com a Igreja Católica era muito áspero, era porque a Igreja Católica era ligada à oligarquia opressiva. Mas eles se metiam até a discutir essas questões, às vezes timidamente para não chamar a atenção na Europa.

 

Mulheres

 

RPB: As mulheres tinham condições mais severas de trabalho. Como elas participavam? Qual era o peso?

 

Del Roio: Esse é um problema sério. Vivíamos o mais profundo e arraigado patriarcalismo, que veio do império e continuou na república. É verdade que começava a aparecer mulheres interessantes e importantes, mas todas das classes dominantes, algumas de famílias mais ricas que viajavam, estudavam, chegavam até a universidade. No proletariado esse patriarcalismo era total. É curioso porque a mulher trabalhava muito. Nas fábricas têxteis, a maioria era mulher, com seus filhos pequenos trabalhando junto 10 a 12 horas por dia. Uma coisa brutal!

Então pense na situação dessa mulher que trabalhava 12 horas por dia, ou 13, inclusive, metade do sábado, e ainda cuidava da casa, fazia compras. Era uma vida terrível!

E como ter duplo trabalho para quem trabalha 12 horas em uma fábrica? Era um inferno aquela vida. Você vê essas mulheres fazendo greve, mas nunca vê o nome de uma líder. São todos homens, sacrificados, grandes companheiros e tal, mas não se vê o nome das mulheres. E quando começaram as manifestações, eram elas que estavam na primeira fila. Então elas sofreram duramente com a repressão do capitalismo embutido no patriarcalismo.

 

Tensão no Cotonifício Crespi

 

RPB: Vamos entrar em mais um conflito agora. Por que ocorreram as primeiras tensões no Cotonifício Crespi?

 

Del Roio: O Cotonifício Crespi tinha cerca de 2.000 operários, operárias e crianças. Era do Rodolfo Crespi, de uma antiga família italiana de industriais, totalmente favorável à guerra. O Crespi fazia parte dos industriais, vamos assim dizer, duros e paternalistas. A maioria de seus trabalhadores eram italianos, porque havia uma ideia de que era mais fácil quando o trabalhador fosse de uma mesma área.

O Cotonifício trabalhava a toda, inclusive porque tinha muita relação com a Itália. Eles exportavam muito, havia muitas encomendas, o que aumentava os horários de trabalho. O pessoal se arrebentava de tanto trabalhar e não tinha aumento. Ainda havia a carestia, o custo de vida, que aumentava por causa da guerra, só isto já bastaria.

Mas o Sr. Crespi, para ficar bonito com o governo real italiano, queria que seus operários dessem uma grande contribuição para a pátria, ou seja, um dinheirinho de seu salário, que quase não existia, para ajudar o esforço de guerra italiano. A maioria desses italianos era da região de Vêneto. Odiavam a guerra e ainda tinham de dar dinheiro.

Mais ou menos foi esta confluência de fatores que levou os trabalhadores da fábrica do Crespi a serem os primeiros a se movimentarem.

 

RPB: Como foi a adesão naquele momento?

 

Del Roio: Os operários fizeram uma reunião na liga da Mooca, curiosamente antianárquica. Foi uma reunião a portas fechadas e, depois, eles não comunicaram as decisões. Quer dizer, muito pouco democrático. Passados cinco dias apresentam ao Sr. Rodolfo Crespi consistentes reivindicações de aumento salarial e redução da jornada de trabalho. O homem quase morreu do coração.

Talvez ele tenha dito com convicção: “Prefiro fechar a fábrica!”. E aí eles pararam. Por incrível que pareça parou primeiro 400, e nos próximos dias pararam todos. A fábrica fechou. Chamou-se a polícia e se tentou manter o que os italianos chamavam de “crumiri”, que é o fura greve.

Aí começou a luta. Não existia Previdência Social, não existia caderneta de poupança, não existia geladeira. Quer dizer, se você não recebia, morria de fome.

Mas esses operários e operárias conseguiram criar uma rede de solidariedade que lhe davam alimentos. Também os jornais fizeram campanhas de arrecadação de fundos, o que deu oportunidade para a greve se arrastar.

Eles passaram mais ou menos um mês aguentando sozinhos. A primeira adesão veio lá do Jafet, fábrica de tecido também, do Ipiranga. Eles pararam. Amém, eram duas.

O Sr. Rodolfo queria matar os seus operários de fome, mas ele tinha outro problema: já tinha toda a sua produção vendida, e, se não mandasse a produção, pagaria multa, além de não ganhar nada. Para resolver, ele tentou distribuir a sua produção em outras fábricas de tecidos.

Então os grevistas, uns 300 ou 400, saíam do seu local de moradia, dali do núcleo da Mooca, e iam a outras fábricas pedindo que, em solidariedade, não produzissem para a fábrica Crespi, “senão eles morreriam de fome”.

Isto significa que faziam marchas, inicialmente na própria Mooca, avançando para o Brás. Fizeram um trabalho de divulgação muito bom, através de panfletos, discursos, mulheres chorando, crianças com fome. A discussão chegou a outros trabalhadores, afinal de contas muitos deles vinham das mesmas cidadezinhas da Itália ou da Espanha. E a coisa estava ficando grave. Só que sair significava bagunçar a ordem pública e a polícia começou a ficar meio feroz.

Melhorou para os grevistas quando parou outra fábrica, a Antártica. Como era de outro ramo, o movimento começou a ficar mais importante.

 

Fábrica Mariângela

 

Para encurtar a história, porque é longa, a chave de tudo chama-se Fábrica Mariângela, que estava cobrindo a maior parte da produção têxtil para o sr. Crespi. Enquanto a Mariângela continuasse produzindo, o Crespi resistiria.

Então eles decidiram ir até a Mariângela fechar a fábrica. Aí o jogo ficou pesado, primeiro porque os industriais entenderam a jogada. O Matarazzo era o homem mais rico do Brasil, tinha acabado de ser feito conde pelo rei da Itália.

E a polícia disse: “Por aqui não passa!”. “Na Mariângela, não!”. Foi o estopim para a repressão, que passou de cavalaria e sabre na cabeça para tiro com arma de fogo. Era essa a ordem. Caíram várias pessoas mortas e feridas. Posso discutir depois a questão dos mortos nessa greve, que é muito complexa.

 

José Ignez Martinez

 

Seguramente um jovem foi ferido, o jovem José Ignez Martinez, espanhol, 21 anos, que morreu dois dias depois. O caso dele foi muito chocante, porque a família tinha chegado da Espanha no dia 3 de janeiro. Era muito recente.

Quando chegaram o pai ficou muito doente, ele tinha um irmão de 15 anos e a mãe. Só ele conseguiu um trabalho. Ora, se ele morre os outros três morrem de fome, e isso chocou demais.

O conflito da Mariângela se espraiou, começaram outras greves e os choques começaram a ser muito grandes. Fizeram até uma marcha na Praça da Sé, para sair da Mooca e do Brás e foram recebidos com um ataque duro da polícia. A catedral estava sendo construída. Quando os cavalos atacaram, eles entraram no prédio da catedral, que estava cheio de tijolos, pedras, madeiras. Foi um conflito muito forte, com mortos dos dois lados. O Estadão disse que só de policiais morreram 13. As ligas operárias e as reuniões começaram a ser invadidas pela polícia. As fábricas começaram a parar por toda a cidade. Vinte, trinta, cinquenta fábricas. Precisava de uma coordenação, coisa que o anarquismo não tinha. O sindicalismo “revolucionário” não tinha essa coordenação.

 

 

Comitê de Defesa Proletária e o funeral de Martinez

 

Então nasceu uma coisa genial: o Comitê de Defesa Proletária, um grupo de homens muito experientes, três italianos, um português e um brasileiro, filho de alemão. Foi pesado para as costas desses pobrezinhos, que ficaram com todo esse ‘abacaxi’ na mão. E eles se comportaram muito bem. Corajosos, valentes, inteligentes.

A primeira coisa que o Comitê fez foi convocar o funeral do jovem Martinez. Eles sabiam que seria mais complicado para a polícia reprimir em um funeral. Acho que dia 12 o funeral saiu lá da Rua Caetano Pinto, no Brás, passou pela Rangel Pestana, São Bento, Anhangabaú, subiu a Consolação e até o Cemitério do Araçá. Foi até cerca de uma hora da tarde. Lá discursaram o Edgard Leuenroth, grande líder anarquista, que era do Comitê, o Monichelli, grande sindicalista na Itália, era socialista, e o Candeias, que era português, tipógrafo. Depois falou uma mulher, não consigo saber o nome dela, mas foi a mais comovente segundo os jornalistas presentes. Foi muito grande esse funeral. Causou grande comoção.

Ao fim alguns voltaram à Praça da Sé, outros para seus bairros. No Brás e na Mooca a polícia atacou novamente em um conflito muito agudo que envolveu toda a população, fechou o comércio, as fábricas, tudo. Alguns bondes foram depredados.

Então se chegou naquela noite do dia 12 com grandes conflitos na cidade. A polícia, que já não estava aguentando mais, começou a vacilar, levando o governo estadual a pedir ajuda ao governo federal, que mobilizou as tropas do exército no Vale do Paraíba para tentar atacar a cidade.

A greve continuou se espalhando pelo interior de São Paulo, Campinas, Sorocaba, São Roque. O Porto de Santos parou, algo que não podia acontecer em tempo de guerra.

Houve um belíssimo apelo feito pelas mulheres operárias aos soldados, que surtiu algum efeito. Na verdade, era uma cópia do documento feito em Petrogrado pelas grevistas de março, para os cossacos não atacarem. Lá surtiu efeito porque os cossacos pararam, e aqui provavelmente surtiu efeito também.

 

Greve Geral

 

RPB: Dá para qualificar como uma greve geral?

 

Del Roio: Foi uma greve geral. Podia ter uma coisa ou outra fábrica funcionando. Mas foi greve geral. Parou comércio, transporte, vidraceiros, sapateiros, moinhos. Parou geral! Grande parte dos tipógrafos parou, embora alguns tivessem autorização de não paralisar porque precisavam fazer jornal, que era a única forma de comunicação.

 

RPB: A primeira do Brasil?

 

Del Roio: Greve geral, sim. Que se espraiou de São Paulo para o Rio de Janeiro, e precisava ser massacrada. Não era possível continuar.

 

RPB: Fale sobre o impasse em que os trabalhadores não quiseram dialogar diretamente com os patrões. Surgiu daí uma tal de comissão de imprensa. Como foi isso?

 

Del Roio: A coisa é muito simples. Os patrões, que tinham sido muito duros, agora estavam vacilando. Primeiro porque os lucros estavam caindo, segundo porque os seus santuários estavam em perigo, os grevistas começaram a invadir Higienópolis e a Av. Paulista, e eles tinham de ir embora. Eles estavam preocupados porque a guerra dava muito dinheiro, e a produção estava parando.

Os grevistas e o Comitê de Defesa Proletária não aceitavam negociar. Primeiro porque eles não tinham nenhuma confiança na conversa. Tem aí uma questão ideológica: eles eram sindicalistas revolucionários, não conversavam com patrão, e isso era uma das limitações do sindicalismo revolucionário. Se você não fala com o patrão, então tem de matar o patrão. Quer dizer: não tem meio termo. O governo do estado também tentou conversar.

Eles estavam pensando em fugir, levar o capital para outra cidade, não estavam mais controlando.

A situação era grave. Os sindicalistas se recusavam a conversar, o governo federal começou a mobilizar tropas de outros Estados.

 

Comitê de Defesa Proletária

 

É aí que surge a figura, já conhecida na época, de Nereu Pestana, jornalista do Jornal Combate e grande defensor da greve. Naquele momento boa parte da imprensa já estava vendo com simpatia os grevistas, até mesmo o jornal O Estado de S.Paulo.

E o Pestana, que era um democrata radical, criou um comitê de imprensa com os nove maiores jornais de São Paulo, liderado pelo Estadão, para intermediar.

E o comitê de defesa proletária revelou uma grandeza e uma flexibilidade incríveis. Eles fizeram as listas de reivindicações possíveis. Não pediam a lua. Pediam coisas muito sensatas: redução de horário de trabalho, aumento salarial, o trabalho não noturno para mulheres, para menores de 15 anos, anistia absoluta para os grevistas, liberdade aos presos políticos.

Depois eles reivindicam coisas muitos interessantes: o controle de preços de gêneros alimentícios e baratear os aluguéis, e frisam que não é só para o trabalhador que está em greve, o que querem é muito mais amplo.

Os patrões aceitaram a negociação e isto se deu rapidamente, aqui perto, onde era a sede do Estadão, em um dia se chegou a um acordo.

O Comitê de Defesa Proletária convocou as massas para discutir o acordo no Largo da Concórdia, na Lapa e no Ipiranga. Entre os três locais, o mais concorrido foi no Largo da Concórdia, sem dúvida nenhuma. Os jornais mais conservadores da época disseram dez mil pessoas, outros dizem vinte mil, as testemunhas oculares disseram mais, é sempre muito difícil calcular essas coisas. Mas era muita gente, era uma assembleia imponente. Note bem que São Paulo tinha 500 mil habitantes.

 

A Internacional

 

Então teoricamente a greve acabou lá, com o pessoal cantando a Internacional. Isto é muito importante porque terminou cantando a Internacional em italiano, espanhol, alemão, português. O anarquista sabia cantar a Internacional, mas a Internacional em português era muito recente, a tradução tinha sido feita somente em 1909 pelo anarquista português Neno Vasco, e é uma música com a letra muito complicada, então se cantava em lugares fechadinhos e tal. Que eu saiba foi a primeira grande manifestação de massa em que se cantou a Internacional no Brasil, e isto se repetiu também na Lapa e no Ipiranga.

Interessante que, naquele mesmo momento em que eles cantavam a Internacional, felizes da vida, a polícia matava quatro grevistas em Campinas. Porque a greve ainda estava comendo solta por aí. Ela foi terminando aos poucos porque os diversos setores foram negociando.

 

Patrões

 

RPB: Como se deu a unidade dos patrões para fazer a negociação?

 

Del Roio: Eles eram poucos, era bem mais fácil, bastavam uns dez se reunirem. E o Crespi tinha de obedecer ao Matarazzo, o que foi um problema muito sério. Dez ou doze industriais tinham força para pressionar todos. À direita estava o Matarazzo e o Crespi, e à esquerda estava o Jorge Street, que tinha cotonifício na Maria Zélia.

 

RPB: Ele foi o primeiro…

 

Del Roio: Ele foi o primeiro porque gostava disso, só que ele era esquerda, se comparava ao Roberto, embora fosse radicalmente contrário à redução do horário de trabalho – dizia que o perfeito horário de trabalho eram 56 horas por semana. E ele era também contrário a reduzir a presença de crianças na fábrica, dizia que o melhor lugar para a criança era dentro da fábrica, para não ficarem na rua, sem os pais, que tinham de trabalhar. Esse era o homem de esquerda, o socialista utópico da Federação Brasileira das Indústrias de São Paulo e do Rio.

 

RPB: Se isso era esquerda….

 

Del Roio: Imagine como era o Crespi. O proletariado brasileiro sofreu muito, passou por choques violentos. Isso acontece até hoje praticamente. Então aquilo virou realmente um marco. Claro, posteriormente as fábricas foram fechando, se mudou o eixo, a própria população foi se modificando, os estrangeiros tendo filhos, que por sua vez foram se abrasileirando. O contexto se modificou.

 

Apogeu e queda do anarquismo no Brasil

 

RPB: Qual foi o saldo político da greve de 1917?

 

Del Roio: A greve representou o ponto mais alto e o declínio da história do sindicalismo revolucionário. Porque ali se demonstrou coragem, inteligência, mas também a limitação da sua estrutura organizativa e a estreiteza da visão política. Eles não discutiam liberdades democráticas, não discutiam se precisa ter partido ou não. Eles não queriam saber de discutir que o voto tem de ser para os homens e mulheres, analfabetos e estrangeiros. Então chegou um momento em que eles notaram que estava faltando alguma coisa no mundo político.

Isto criou a crise, se não fosse o Nereu ter formado o Comitê, como iria acabar aquilo? Seria uma derrota terrível. Eles não tinham forças para decretar insurreição nacional. Não tinham minimamente essa força. Não conheciam o proletariado, o campesinato, não sabiam nada da estrutura do Estado.

Então a partir daí houve a inflexão. Após quatro, cinco anos de dura luta, o sindicalismo revolucionário rachou definitivamente. Essa greve catalisou o grande racha.

Nasceram novos sindicatos com base industrial, com disciplina, com escritos, com eleições internas, com burocracia. Nasceu o sindicato moderno e nasceu o Partido Comunista do Brasil, em 1922, criado por sindicalistas revolucionários. Aí há a influência decisiva da Revolução Soviética, sem dúvida nenhuma.

Então o racha do sindicalismo revolucionário foi total, inapelável, e isto está ligado à greve geral.

O anarquismo chegou ao máximo e não podia ir mais longe, não tinha instrumental. Sofreu uma derrocada. O Astrogildo Pereira foi muito cruel nisto. Eu considero que, indubitavelmente, Astrogildo era o maior sindicalista revolucionário do Brasil e era o maior teórico anarquista. Ele abriu uma discussão dura contra outro grande anarquista, o Edgard Leuenroth, líder da greve de 1917. Eram amigos, escreviam nos mesmos jornais, um estava no Rio e o outro em São Paulo, mas deviam se escrever todos os dias. O racha dos dois foi violento. E o Leuenroth, com toda a sua capacidade, inteligência, decaiu como referência, continuando a ser sempre uma pessoa maravilhosa, correta, honesta, combativa, mas sem influência.  E o aparato da repressão passou de antianarquista para anticomunista.

 

Greve 100 anos depois

 

RPB: Por que lembrar da greve após100 anos. O que dá para aprender desse histórico?

 

Del Roio: A primeira coisa que se tem a aprender é que, aquilo que a classe operária, aquilo que os trabalhadores conquistaram, eles nunca podem considerar conquistas definitivas. E se o Estado for oligárquico, escravocrata, eles estarão sempre disponíveis a fazer voltar para trás as conquistas operárias. Sempre! A história brasileira está marcada nisso, sobretudo num país como o Brasil, com uma elite escravocrata de origem, de mentalidade. Isto é bom de se aprender.

Nós estamos num momento de refluxo, estamos num momento absurdo, um momento em que, se puderem, eles destroem praticamente todas as conquistas de 100 anos.

É isto o que nós temos de mostrar dessa greve.

Você imagina aqueles italianos, espanhóis, portugueses, o que eles iam fazer? Mas fizeram, porque um falou com o outro, um conversou com o outro.

Hoje a burguesia tem armas melhores, eles conseguem controlar a televisão, coisa que naquele tempo não havia. Antes o cara saía para a rua, sentava à porta de casa e conversava com o outro. Hoje o cara fica assistindo televisão com programações particularmente perniciosas. E sozinho!

 

Mortos na greve

 

Eu só quero acrescentar algo que acho importante, mas não quero discutir porque seria longo: quantos mortos houve nessa greve? Este é o grande mistério.

Oficiais são três, e um soldado. Mas os jornais falaram em muito mais. Jornais como A Razão, do Rio de Janeiro, descrevem detalhadamente como se enterravam os corpos à noite no Cemitério do Araçá. Mas tem uma coisa, eu posso me enganar, que me deixa com suspeita porque ninguém me respondeu ainda. Se você vai ao mausoléu da Polícia Militar no Araçá, de 1970, lá estão os mortos caídos em serviço, depois de 70, porque o mausoléu é de 1970.

Tem uma série de estátuas que homenageiam os mortos do passado, os que morreram em 1842, os que morreram na guerra do Paraguai, na repressão a Canudos, 1932, Revolução Constitucionalista, 1924, a grande rebelião em São Paulo, ou seja, locais com conflitos e mortes consistentes. Se vocês forem lá e olharem tem uma estátua chamada Greve de 17. Por que lá tem uma estátua, em tamanho natural, da Greve de 17? Como está lá da guerra do Paraguai, de 32, e a greve de 17? Não tem sentido se não houve muito mortos.

Isto é uma coisa curiosa, a polícia disse que não morreu ninguém, mas tem um monumento aos mortos da polícia de 17. Esse é um caso que nós temos de resolver, não só dos policiais, mas dos mortos no geral. Quantos foram os mortos?

Note bem que o Comitê de Defesa Proletária, até se dissolver dias depois do fim da greve, fazia apelo para que os familiares denunciassem ao Comitê os seus desaparecidos. E este é um ponto de interrogação que fica.

 

André Cintra é jornalista

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