PUBLICADO EM 20 de abr de 2018
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Existe uma coisa no meio ou antes da criação artística: ideologia, diz pesquisador

Para o professor e pesquisador Cláudio Vieira qualquer personagem ficcional, criado para o cinema ou para desenhos animados, carrega alguma visão de mundo. Isso é inevitável uma vez, que segundo ele, “Quem cria um personagem não vai querê-lo sem vida e isolado e sim dar uma alma para ele e colocá-lo num mundo (real, semi-real ou de ficção) agindo”. Tal carga ideológica, transmitida direta ou indiretamente para os consumidores desse tipo de arte (ou produto) é justamente o objeto de estudo do pesquisador. Seu trabalho, que já resultou nos livros “Trabalho e Capitalismo Global – o mundo do trabalho através do cinema de animação, volumes 1 e 2” (publicado em 2011 pela Editora Canal 6), foi sintetizado em mais uma obra: “Desenhos animados – olhar além da tela”. Apesar de os desenhos carregarem a visão de mundo de seus criadores, Claudio defende que “os desenhos animados não foram criados pensando exatamente nesse objetivo” e que a dimensão ideológica faz parte, e é intrínseca ao processo de criação. Nesta entrevista ao site Rádio Peão Brasil ele expõe um panorama dos desenhos animados no mundo e na história.

 

Por Carolina Maria Ruy

Carol – No livro “Desenhos animados, olhar além da tela”, você buscou referências fora do eixo hollywoodiano ao analisar desenhos. Você poderia nos situar sobre como são os desenhos e qual seu alcance fora deste eixo?

Cláudio – Esse estudo sobre os desenhos animados foi o mais longo e cuidadoso a ser elaborado e tive a sorte e felicidade de contar com o apoio de especialistas da área do cinema que além de me ajudarem me lançaram várias vezes em novos desafios e descobertas. Nós sabemos que por mais tenhamos feito cursos e conquistado títulos acadêmicos teremos que inevitavelmente continuar a pesquisar e estudar e estudar… Esse pequeno livro me levou ainda mais a fazer isso.

A busca por referencias além do eixo hollywoodiano sempre foi um dos meus incômodos pois queria estar além: do senso comum, dos padrões, das regras, da erudição (ou mergulhado nela) e por aí vai… Essa busca nasceu quando eu lia e estudava as obras de Alessandra Meleiro que me reportaram para as idas ao cinema com meu pai, envolvido com filmes e que fez do cinema sua vida, e o fascínio pelos pensamentos dos roteiristas, desenhistas e produtores. Depois de estudar com afinco sobre o processo de produção fílmica das obras do eixo comercial – hollywoodianos e seus aliados comerciais, como está apresentado nos outros dois livros Trabalho e capitalismo – volumes 1 e 2 – resolvi buscar no contexto histórico outras criações da animação com a intenção de compreender seus conteúdos e suas realidades de quando foram produzidas. Aí foi inevitável identificar, mesmo que eu tentasse fragmentar, e encontrar elementos da filosofia, da ideologia, da politica, da economia e cultura, específicos, pois entrei em povos e estruturas sociais distintas como foi o caso do Leste Europeu e do Japão.

Descobri então que esses desenhos, como os do circuito hollywoodiano, foram marcados pelos momentos que seus países estavam vivendo, como o Leste Europeu com a União Soviética desde a sua criação na década de 1920 e países aliados após a 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e todas as mudanças e conflitos internos que atravessaram na luta pela construção autônoma de uma sociedade com autonomia e liberdade e emancipação. Então vi os embates internos nos estúdios envolvendo os criadores e os produtores que poderiam ser o Estado ou pessoas físicas. Situação similar consegui ver ao pesquisar sobre os desenhos japoneses e sentir a luta de resistência por parte dos envolvidos nas produções diante dos ataques do Ocidente após a década de 1950 e as seguintes. Assim, ora resistindo às agressões ocidentais com seus modelos de produção, divulgação e premiação, ou então, mergulhados numa luta infinda de desconstrução e reconstrução social, politica e econômica onde o cinema foi muito útil – como Sergei Eisenstein  percebeu e fez muito bem – esses cinemas ficaram restritos aos seus espaços geográficos e excluídos da grande competição internacional e longe das salas de cinema e da maioria dos  lares do Ocidente.  E por que isso acontecia? Motivos de ordem ideológica, num primeiro momento, e de ordem politica, econômica e viabilidade comercial. E isso não é recente, ou seja, de 1970 para cá mas antecede 1930…

Carol – Você acha que hoje as produções hollywoodianas ainda têm hegemonia ou existem concorrentes que possam disputar no mesmo nível? Em linhas gerais como esta relação se deu ao longo da história?

Cláudio – Eu ainda vejo um predomínio das produções hollywoodianas pois isso só acontece e se sustenta no panorama internacional porque estar nesse meio é o sonho de consumo de muitos desenhistas e/ou produtores do meio, como se fosse uma espécie de Meca da produção fílmica internacional. Assim, as associações e grupos e clubes que sugerem para agrupar profissionais servem para incentivar as produções locais e alimentar esse sonho do estrelato. O que poucas vezes se vê são profissionais que dediquem suas profissões e produções para irem além desse objetivo medíocre e pequeno de estar nas noites de tapetes vermelhos ou de simplesmente reproduzi-los em nossos quintais.

Quando você pergunta sobre concorrentes cabe olhar que tipo de concorrência e em qual campo, ou melhor, no campo dos roteiros, na diversidade de personagens, nos estilos e formas de criar personagens, nos traços artísticos, no alcance de público e por aí vai… Tenho certeza que não dá pra desvencilhar aqueles aspectos que citei anteriormente pois toda produção artística – estou vendo a animação como uma categoria da sétima arte – envolve elementos que cercam a mente, a vida e o ambiente das pessoas inseridas nesse meio.

No blog cinema de animação – olhar além da tela nós procuramos mostrar por país, década, ano ou tema quais são essas obras e suas mensagens. Acho impossível apresentar todas em nível mundial pois muitas são criadas diariamente com diversas finalidades – como por exemplo meus alunos que criaram na semana passada dez animações até o momento somente neste ano. No Japão, nas obras que separei para o livro existe uma preocupação de preservação cultural e moral e mantença da tradição ora familiar, ora regional, ora política, até ética e moral, mas muito além das obras criadas por artistas japoneses que foram apropriadas pela indústria hollywoodianas e transformadas em produções moralistas e simplistas com fim financeiro. Por exemplo a polêmica sobre o desenho “Rei Leão” produzido pela  Walt Disney Animation Studios e que ao ser lançado no Japão foi apontado como um plágio de uma obra deste país.

Carol – Para você quais produções hollywoodianas são as de melhor qualidade do ponto de vista técnico e do conteúdo?

Cláudio – Olha eu sou suspeito em indicar ou escolher uma ou umas produções como melhores (ou de preferencia) pois onde tem animação me animo todo em assistir. Mesmo assim eu vejo as animações nessa abordagem que você pergunta – técnica e conteúdo – dentro de cada época, pois de uma maneira ou de outra é isso que elas representam e nos falam. Por exemplo, nas décadas de 1920 e 1930 eu destaco “O que é a vida?” de Ub Iwerks que mostra de forma cômica, simples e clara as consequências sociais, morais e politicas de uma sociedade em crise, e além dessa obra outra importante é “Betty Boop para presidente” de Dave Fleischer que mostra de forma didática como os candidatos apresentam seus projetos de governo para a população e como esta reage sendo um homem e uma mulher. Vejo esta obra fílmica como uma ousadia porque nós sabemos como as mulheres são apresentadas quando os homens falam delas, ou seja, com parcialidade e juízo de valor suspeitos.

Vejo também as obras “Princess Knight” de Osamu Tezuka pelo seu conteúdo e representação de uma parte da tradição oriental ainda resistente na década de 1960. Outra obra que chama a atenção “Nausicaa do Vale dos Ventos” de Hayao Miyazaki, “O tumulo dos vagalumes” de Isao Takahata, “Meu vizinho Totoro” de Isao Miyazaki pela produção produção técnica, pelo esforço dos desenhistas e pelas belíssimas mensagens a humanidade em pé de guerra.

Na atualidade vejo duas animações muito interessantes como “O menino e o mundo”, do Alê Abreu, que concorreu no circuito comercial internacional do tapete vermelho, mas que seu conteúdo – excelente diga-se de passagem – denunciava alguns dos problemas do sistema atual e daí já sabemos o que aconteceu…  E a obra que considero interessantíssima é uma biografia desenhada de Fasia Jansen – cantora política alemã e ativista pela paz – que viveu toda a angustia de seu talento artístico e musical e os ataques contra uma mulher negra na Alemanha nazista dentre outras mazelas.

Carol – No livro você aborda o uso político dos desenhos durante e depois da segunda guerra mundial. Você poderia falar sobre isso. Como os desenhos foram criados e usados como manipulação ideológica?

Cláudio – Quero começar indicando a atualíssima obra “A mão” de Jirí Trnka que uma animação stop motion que critica o totalitarismo do regime que o artista vivia e prefiro que o usuário procure neste link para tirar sua conclusão.

Eu acredito e defendo que os desenhos animados não foram criados pensando exatamente nesse objetivo, embora o uso das imagens congeladas usados para ensinar, fazer pensar e fazer compreender remonte os intelectuais do renascimento cientifico na Europa como o físico Christiaan Huygens; e isso se repetiu nos séculos seguintes até chegar no século XX… Com o nascimento da animação como categoria da sétima arte e a releitura de fábulas e lendas e a expansão do cinema propriamente dito, somados à corrida por patentes – alguns nomes aparecendo como inventores do cinema – e o financiamento/auxílio de pessoas ou empresas com condições, acabou por ocorrer ‘involuntariamente’ o uso dessas produções para distrair e/ou mandar rápidas mensagens. Como o cinema é considerado uma arte síntese como toda arte/obra vai junto a visão de mundo do autor, o que é mais do que natural e inevitável, e rapidamente os primeiros desenhistas (artistas) – alguns – começaram a fazer essa transmissão de mensagem ao consumidor dos filmes (sujeito-receptor).

Fora os longas-metragens que eram extensos/longos e demorados na sua produção e com custo altíssimo, os curtas-metragens caíram como uma luva na transmissão de mensagens rápidas. Assim, na 2ª Guerra Mundial (1939-1945) alguns estúdios foram incentivados e financiados para serem “garotos propagandas” (com seus personagens) para transmissão de uma ideologia e criação ou reforço de uma visão de mundo. Assim estúdios como Walt Disney, Mostfilm (soviética) e alemão UFA (Universum Film Aktien Gesellschaft) tiveram esse papel e careceram ser protegidas por seus governos.

Carol – Você acha que esta manipulação perdura até hoje? Em que nível?

Cláudio – Com certeza que sim. Quem cria um personagem não vai querê-lo sem vida e isolado e sim dar uma alma para ele e colocá-lo num mundo (real, semi-real ou de ficção) agindo. O criador (e o roteirista) vai passar para ele suas concepções de mundo com um arcabouço assentado na filosofia, na economia, na psicologia, na história entre outras ciências – e muito do imaginário coletivo. Esse criador não é uma tábula rasa. Portanto, a manipulação ocorre em todos os níveis, seja para manutenção de um status quo ou para fomentar uma visão crítica sobre este ensinando o sujeito-receptor a olhar o seu entorno.

Carol – É possível separar a liberdade de criação artística e de conteúdo do compromisso comercial nas animações?

Cláudio – Depende… Existe uma coisa no meio ou antes do processo de criação artística: ideologia. Podemos até não enxergar, como acontece com muitas pessoas, mas ela está lá e é por isso que um olhar além da tela ajuda a desnudar e revelar se aquela produção tem um compromisso comercial ou está preocupado em colaborar com a emancipação do sujeito-receptor. E aí depende do artista que cria e sua escolha: ele quer o glamour e o mundo fashion dos holofotes da sétima arte ou esta arte como ferramenta de libertação??

Carol – Como você avalia o panorama das animações no Brasil? Temos um brasileiro que concorreu ao Oscar como filme “Touro Ferdinando”, o Carlos Saldanha, mas como é a nossa indústria da animação, se é que ela existe?

Cláudio – Na edição de 20 fevereiro 2018 da Revista de cinema Ricardo Rozzino, Andrés Lieban e Victor-Hugo Borges fizeram comentários interessantes sobre as animações no Brasil: Voltemos nossos olhos para o boom das animações no Brasil como já fizeram outros países que resolveram homenagear o Brasil no Festival de Annecy, na França. O fato de termos um brasileiro concorrendo ao Oscar na categoria melhor animação não significa nada se pensarmos na 1ª parte da pergunta: existe uma indústria de animação no Brasil? Não, não existe, se você pensar em grandes estúdios – aí penso no termo indústria – dos Estados Unidos (e alguns outros países) e aqui temos pequenas/micros empresas e pessoas jurídicas que dedicam suas vidas a uma paixão e tentam ardorosamente criar essa indústria.  Mas os festivais que acontecem são de renome internacional  que faz de nós  uma espécie de novo Vale do Silício da animação, uma vez que o  cinema brasileiro de animação vem vivendo um boom, que tem a ver com mentes criativas que alicerçam as criações aqui com esforços individuais e nada tem a ver com talentos de exportação.  São os abnegados… que ainda dependem, e muito, do fomento à produção audiovisual como apoio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) que é  administrado pelo Ministério da Cultura (MinC) por meio da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Os obstáculos que esses abnegados desenhistas enfrentam são muitos, principalmente, atualmente que o Ministério da Cultura está sendo colocado em cheque e eles tem que alimentar sua vocação de independência e com ganho crescente de personalidade. Outra situação interessante para se olhar de perto é o fato de algumas universidades  – públicas, inclusive – regimentaram o curso de cinema de animação como a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (BH) que oferece o curso Cinema de Animação e Artes Digitais, a Faculdade Melies de Tecnologia, em São Paulo, a Universidade Anhembi Morumbi também em São Paulo, o Instituto de Artes e Design Universidade Federal de Pelotas, em Pelotas (RG), na PUC do Rio de Janeiro, e o Infnet, também no Rio. Essa aproximação entre o mundo acadêmico e os desenhistas e os festivais tem que acontecer sem medo para que sejam debatidos não só a produção mas os custos – e a busca de recursos – e os conteúdos das obras, principalmente. E digo mais, olhar com atenção para projetos curriculares nas escolas que usam o cinema de animação em suas ações didáticas pode ser um caminho na contramão do desmonte das universidades públicas (que incentivam o cinema de animação). Que tal pensarmos nisso???

Os interessados podem adquirir o livro Desenhos Animados: Olhar Além da Tela no site da Editora Canal6

 

Veja aqui o desenho Betty Boop for President

 

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  • Mariane

    Além de um ótimo professor de história, tem excelentes livros, só tenho que te parabenizar professor pela entrevista, logo logo o senhor está conhecido no Brasil todo..

  • Letícia

    Parabéns professor pela ótima entrevista! Resultante de um primoroso trabalho que une amplo conhecimento, embasamento histórico e vivencia cultural aprimorada.

QUENTINHAS