PUBLICADO EM 10 de dez de 2021
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Como a história apagou o marinheiro negro que “abriu” o Pacífico

Na escola aprendemos sobre Cristóvão Colombo e sua viagem pioneira de 1492. Apenas duas décadas depois disso, contudo, os exploradores europeus tropeçaram no Pacífico, um oceano quase duas vezes maior do que o Atlântico e muito mais difícil para navegar.

Mapa do Pacífico desenhado pelo cartógrafo Abraham Ortelius em 1589. Imagem: Helmink Antique Maps

Andrés Reséndez (Time)

Navegadores polinésios foram os primeiros a cruzar o Pacífico, de oeste para leste, por ilhas da costa da China para as Américas. Ferdinando Magellan foi o primeiro europeu a ir na direção oposta de uma só vez, navegando do Novo Mundo para a Ásia, durante sua famosa circunavegação de 1519-1522. Ainda, o primeiro navegador a navegar das Américas para a Ásia e de volta – o homem que verdadeiramente “abriu” o Pacífico e realizou o que Colombo tinha feito pelo Atlântico – foi um extraordinário piloto, quase inteiramente esquecido nos anais da exploração. Foi Lope Martín, um marinheiro afro-português, que em 1564-1565 finalmente transformou o Pacífico em um espaço vital de contato e troca, entrelaçando todos os continentes e lançando nosso mundo global.

Os ancestrais de Martín tinham sido pegos como escravos para o Sul de Portugal. Embora ele fosse um homem livre, suas circunstâncias precárias o forçaram na severa vida do mar, carregando sacos de farinha a bordo de navios, ou escalando as cordas de um navio até o topo do mastro. Em uma era quando a maioria esmagadora dos oficiais navais eram brancos europeus, Martín subiu na hierarquia para se tornar um piloto licenciado, a ocupação mais alta a que ele podia aspirar como um homem negro. Na verdade, sua marinharia era tão extraordinária, que ele foi recrutado para um empreendimento secreto, sem economia de despesas, montado pela coroa espanhola, para abrir o comércio entre as colônias da América espanhola e o legendário “Oriente”, como era chamado na época.

A história de Martín é particularmente impressionante porque sua passagem revolucionária tinha menos a ver com coragem – embora uma boa dose disso também fosse necessária – do que com sua maestria das tecnologias náuticas de seu tempo. Em meados do Século XVI, a “arte da navegação”, como era chamada, tinha se tornado menos uma arte e mais uma ciência. Qualquer pessoa desejando se tornar um piloto tinha que fazer cursos, passar em exames e demonstrar proficiência em matemática, astronomia e cartografia. Martín passou em todos os testes e mostrou um talento raro. Pilotos qualificados daquela era podiam determinar latitude (distância Norte-Sul) no meio do oceano medindo a altitude do sol em respeito ao horizonte, usando “tabelas de declinação” e desempenhando alguns cálculos matemáticos. Estabelecer a longitude (distância Leste-Oeste) era muito mais difícil e não seria totalmente possível até o Século XVIII. Apesar disso, os primeiros pilotos da Era da Exploração, como Martín, eram capazes de aproximar a longitude, através de cuidadosa observação do oceano e medindo a diferença entre o Norte verdadeiro, conforme mostrado pela Estrela do Norte, e o Norte magnético, como indicado pela bússola. Esse conhecimento especializado fez Martín um dos pilotos mais talentosos e valiosos de seu tempo, em qualquer lugar do mundo.

Como historiador, é surpreendente que apenas especialistas do início do Pacífico saibam sobre a existência de Martín em absoluto. Isso provavelmente tem a ver com as circunstâncias incomuns de sua viagem. A coroa espanhola organizou a expedição de 1564-1565 em grande segredo. Ao invés de partir de Acapulco – de longe o porto mais estabelecido da costa ocidental das Américas naquela época – as quatro embarcações da frota se lançaram de Navidad, um porto dilapidado bem ao Norte de Acapulco, que mesmo hoje continua uma minúscula cidade turística mexicana. Além disso, apenas dez dias após a partida da frota, o menor e menos equipado dos quatro navios, pilotado por Martín, se separou dos outros. O comandante da expedição e outros líderes que continuaram nos três navios maiores imediatamente suspeitaram e acusaram o homem negro de deliberadamente “se ausentar quando o mar estava calmo e o tempo estava bom,” mesmo que tivesse havido uma tempestade no momento da separação.

Não sabendo que sua lealdade tinha sido questionada, Martín prosseguiu com a missão. No que equivalia a um barco com a velocidade aumentada, Martín e seus companheiros alcançaram as Filipinas, fizeram reparos e comércio com os habitantes da ilha por um mês. Depois de procurar por as outras embarcações de sua frota, eles finalmente tomaram a decisão fatídica de retornar por conta própria, através do poderoso Pacífico, uma façanha nunca realizada antes. Nessa passagem épica, Martín e seus companheiros tiveram que lutar contra uma praga de ratos, que roeram os barris de água e derramaram seu conteúdo. Eles também foram forçados a remendar as velas com cada último pedaço de roupa e cobertores e sobreviveram a um quase naufrágio.

Quando eles finalmente chegaram em Navidad, em 6 de agosto de 1565, virtualmente nus, carregando mercadorias asiáticas, Martín e sua tripulação foram saudados e celebrados como heróis. Mas esse momento doce de vitória durou apenas dois meses, quando a nau capitânia da frota – 14 vezes maior que a embarcação na qual Martín e seus companheiros tinham navegado – também realizou a evasiva vuelta, o retorno a América, guiada por um navegador não menos notável e frade chamado Andrés de Urdaneta. O comandante da expedição tinha continuado nas Filipinas para estabelecer uma base espanhola na Ásia, mas seus representantes a bordo da nau capitânia não perderam tempo em acusar Martín de ter fugido.

Os relatos dos subsequentes cronistas e historiadores, contaminados por essa controvérsia, retrataram o piloto afro-português como pirata e ao invés deram o crédito a Urdaneta. Tanto Martín, quanto Urdaneta tiveram sucesso independentemente, mas apenas um se deleitou na glória, enquanto o outro foi secretamente sentenciado a ser enforcado para recompensá-lo por seus consideráveis serviços. (Mais um capítulo notável na vida de Martín o faz ser mais esperto, por meio de um motim surpreendente, o capitão do navio transportando o homem negro para sua morte, e muito possivelmente passando seus anos finais como chefe de uma pequena banda europeia na Micronésia.)

Martín foi indiscutivelmente o primeiro a “abrir” o Pacífico, permitindo plantas, animais, produtos e ideias começarem a fluir através do grande oceano. Depois de sua viagem, e por dois séculos e meio, grandes galeões espanhóis velejaram todo ano através do Pacífico, levando prata para a Ásia e voltando com seda e cerâmicas chinesas, especiarias do Sudeste Asiático e escravos, de tão longe quanto o subcontinente indiano. No final do Século XVIII, comerciantes americanos começaram a construir sobre essas ligações transpacíficas anteriores, para lançar seus próprios empreendimentos. Quando o império espanhol nas Américas desmoronou, no começo do Século XIX, os navios americanos substituíram os velhos galeões espanhóis. Os Estados Unidos iriam assumir o controle de Guam e das Filipinas (primeiros centros espanhóis), abrir comércio direto com o Japão e a China e forjar uma vasta rede de interesses transpacíficos que remodelou o mundo. O centro de gravidade do mundo está constantemente se movendo em direção ao Pacífico, então é imperativo que nós compreendamos como isso tudo começou, não com as lendárias viagens do Capitão Cook, como muitas vezes presumido, mas séculos antes, com uma figura que foi completamente apagada do registro histórico.

Andrés Reséndez é professor de história na Universidade da Califórnia em Davis e autor do finalista do National Book Award, “The Other Slavery: The Uncovered Story of Indian Enslavement in America”.

Fonte: Time

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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