PUBLICADO EM 04 de jun de 2020
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Sob os cuidados da patroa, menino de cinco anos morre em condomínio de luxo em Recife

Ao mesmo tempo em que o mundo assiste as imensas manifestações antirracistas nos Estados Unidos, no Brasil, uma criança de cinco anos morria vítima do descaso.

Por Marcos Aurélio Ruy

Foto: Pablo Valadares/Agência Senado

Enquanto uma mãe passeava com os cachorros da família moradora em um condomínio de luxo em Recife, capital de Pernambuco, o seu filho de apenas cinco anos era colocado sozinho no elevador do prédio pela sua patroa. A criança morreu após cair da sacada do edifício no nono andar, nesta terça-feira (2). Mãe e filho negros e pobres.

“A trágica notícia revela a morbidade do racismo no Brasil e o pouco caso com a vida dos mais pobres em meio à pandemia do coronavírus”, diz Mônica Custódio, secretária de Igualdade Racial da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

A morte dessa criança reforça a necessidade de se debater sobre os serviços essenciais durante o isolamento social para impedir uma maior disseminação da Covid-19 e a estrutura patriarcal e racista da sociedade brasileira.

A empregadora, Sari Gaspar Corte Real, esposa do prefeito de Tamandaré (PE), Sérgio Hacker (PSB), pagou uma fiança de R$ 20 mil e responde ao processo em liberdade. De acordo com o delegado Ramón Teixeira, a patroa foi parcialmente responsabilizada pelo crime por estar com a “guarda momentânea da criança”, informa o site Notícia Preta.

“Essa fatalidade desnuda as péssimas condições de trabalho do serviço doméstico no país”, afirma Lucileide Mafra Reis, vice-presidenta da CTB-PA. “Conquistamos a Lei das Domésticas, em 2013 e regulamentada em 2015, após anos de luta pelo reconhecimento do nosso trabalho”, aí vem “a reforma trabalhista (aprovada em 2017) e joga tudo por terra, fortalecendo novamente a informalidade e o desrespeito aos nossos direitos, entre eles, o de ter uma vida digna”, anuncia.

Para Lucileide essa tragédia mostra “o pouco respeito à vida de quem só tem a força de trabalho como meio de sobreviver e não tem apoio do Estado neste momento de crise sanitária tão grave”. Dessa forma, “trabalhadoras e trabalhadores, maioria de negros, estão morrendo vítimas da Covid-19 e o Estado faz pouco para evitar essas enormes perdas”.

Mas “a morte dessa criança será mais uma na estatística, sem ninguém fazer nada porque era filho de trabalhadora doméstica negra e pobre”, indigna-se.

como, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o país conta com quase 7 milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos, sendo 92% mulheres e mais de 70% negras ou negros, “o viés racial é um traço dessa categoria, considerada essencial num momento tão crucial para manter a vida, desprezando as necessidades dessas pessoas”, diz Mônica.

Foto: EBC

“Muitos classificarão de mimimi relacionar a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva ao racismo e ao pouco caso com a vida da maioria da população brasileira, negra e pobre”, reforça Mônica.

“Mas é incalculável a dor de Mirtes Renata, a mãe de Miguel, como é o sofrimento de milhares de mães que veem a vida de seus filhos se esvair em ações da Polícia Militar nos morros do Rio de Janeiro e na periferia de todas as grandes cidades do país”.

Mônica afirma a importância de se dar um basta ao pouco caso que se tem com a vida humana em pleno século 21. Nesse caso, “enquanto uma mãe cuidava dos cachorros da família, a madame deixava seu filho morrer”, porque “neste cenário que tem bases na velha estrutura escravocrata, uma vida vale mais que outra”.

A letalidade policial revela de maneira perversa o traço racista da sociedade brasileira. Como mostra o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado o ano passado. Somente em 2018, a polícia matou 6.220 pessoas, 99,3% delas eram do sexo masculino, 75,4% negros e 77,9% tinham entre 15 e 29 anos.

“Mas a história das sociedades não perdoa”, acentua Mônica. “Essa trabalhadora continua passando pelo que passávamos séculos atrás. A vida de seu filho, pela vida dos ‘filhos’ dos outros”, porque “em uma estrutura social racializada e de classe, quem vive do trabalho não passa de número para a elite no poder”.

Como afirmam as juízas do trabalho, Bárbara Ferrito e Patrícia Maeda, em artigo na revista Carta Capital, é necessário reduzir a sobrecarga de trabalho durante o isolamento “sem transferi-la para a parte mais fraca da relação doméstica” e “não apenas como uma questão ética, mas também sanitária”. Porque “se o gênero nos une como mulheres, a classe também deve nos unir como trabalhadoras”.

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