PUBLICADO EM 07 de fev de 2023
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Cotas são necessárias para avançar na luta por igualdade de direitos e oportunidades

Estudantes na UNB. Foto: Marcelo Casal/Agência Brasil

Com a volta do presidente Lula ao poder retorna com mais força as discussões sobre os direitos de todas as pessoas terem uma vida digna no país. Justamente porque nos últimos quatro anos, esses temas foram tratados como “mimimi” de esquerdista, prevalecendo apenas os direitos dos ricos e muito ricos, essencialmente brancos e ditos héteros.

Mas não só nesse período. Quando o presidente Lula assumiu em 2003 e trouxe à tona o debate sobre cotas sociais e raciais nas universidades federais, a gritaria foi geral. Porque a elite branca e racista não aceita perder os seus privilégios de sempre.

Agora as discussões retornam porque a Lei de Cotas – Lei 12.711/2012 – completou dez anos no ano passado e está em fase de revisão. A luta promete ser dura porque a elite não se dá por vencida e através de seus porta-vozes da mídia não aceitam ver pobres, pretos, pardos e indígenas nos bancos universitários, assim como nunca quis ver a empregada doméstica ao seu lado no avião.

As questões de raça e de gênero são tão fundamentais para o país se tornar mais justo e igual. Como disse o historiador, jornalista e escritor José Carlos Ruy (1950-2021) as cotas são essenciais para tratar desigualmente os desiguais e atingir a igualdade no futuro.

Os resultados dessa lei são contundentes, de acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2019, 50,3% dos estudantes de universidades federais se reconheciam como pretos ou pardos, ultrapassando pela primeira vez o número de brancos.

Como disse a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco à BBC News, em janeiro, “A gente precisa fortalecê-la (Lei de Cotas), primeiramente, conversando sobre ela, trazendo para dentro do ministério, por exemplo, uma secretaria que vai falar de política e das ações afirmativas”, portanto, “vamos ter diálogo com pessoas que pesquisam o assunto, que debatem e que tratam disso” e “no Congresso, a gente vai precisar dialogar com todos. Não tem jeito. As cotas não vão ser um assunto que vai somente contemplar pessoas que votaram no atual presidente”.

Portal CTB ouviu Lucimara da Silva Cruz, secretária de Igualdade Racial da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e coordenadora de Comunicação da Assufba – Sindicato dos Trabalhadores Técnico-administrativos em Educação das Universidades Públicas Federais no Estado da Bahia.

Para ela, as cotas precisam significar “inclusão plena”, para ter “a participação de negras, negros e indígenas na produção de conhecimento a partir de suas próprias matrizes“ e “não somente de matrizes europeias”, portanto é “o estudante, o corpo físico e o corpo teórico produzindo novos conhecimentos com base no conhecimento de seus ancestrais”, traduzindo tudo isso em “modificação estrutural e estruturante” e dessa forma “modificar a estrutura de nossa sociedade”.

Leia a entrevista completa:

No ano passado, a Lei de Cotas completou dez anos e está em processo de revisão. Por que elas devem continuar?

Porque especificamente nas universidades, as cotas oferecem oportunidades à juventude negra, assim como a algumas trabalhadoras e trabalhadores mais velhos de se qualificarem para ingressar no mercado de trabalho em outras posições.

Outra possibilidade de intervenção das cotas, se elas forem cotas plenas, se forem de inclusão plena, é que sejam também incorporados ao currículo aportes teóricos de outras origens, com a participação de negras, negros e indígenas na produção de conhecimento a partir de suas próprias matrizes e não somente de matrizes europeias.

Eu chamo de inclusão plena, o estudante, o corpo físico e o corpo teórico produzindo novos conhecimentos com base no conhecimento de seus ancestrais e, com isso, promover uma modificação estrutural e estruturante da universidade. E modificar a mentalidade da estrutura de nossa sociedade.

É importante também levar as cotas para o mercado de trabalho?

As cotas estabelecidas no serviço público têm modificado a cultura das pessoas. De se enxergarem e enxergar os outros. Uns passam a se ver como protagonistas e outros passam a respeitar essas negras, negros e indígenas em postos de comando.

Na medida em que se incorpora negras, negros e indígenas em posições de mando nos serviços, as pessoas aprendem a enxergá-las nessas posições. E com isso, as crianças negras e indígenas passam a se enxergar em outros lugares, veem outras perspectivas de futuro.

Porque na realidade, temos poucas negras e negros em postos de chefia e isso faz com que essa parcela, que é maioria da população, não se sinta capaz de estar em postos de comando. Certamente uma imposição do racismo estrutural.

Há medo de negras e negros em cargos mais elevados?

As brancas e brancos não nos veem naquelas posições porque elas e eles ocupam essas posições, praticamente como uma reserva de mercado, e querem que isso seja mantido a todo o custo, não aceitam mudanças.

Na medida em que nós somos incorporados nesses espaços, essa visão materializada influencia na mentalidade geral da sociedade. O que faz aumentar em parte os conflitos com o aumento de assédio vertical – que é quando os subordinados boicotam a autoridade dos superiores por acreditar que elas e eles não merecem estar nessa determinada posição.

A criação do Ministério da Igualdade Racial pelo governo Lula contribui para o combate ao racismo?

Sem dúvida, o Ministério da Igualdade Racial vai ajudar a combater o racismo estrutural e institucional, assim como o genocídio dos povos indígenas e da população negra porque a criação de um ministério com esse teor significa o reconhecimento de que existe um problema e que ele precisa ser tratado com seriedade para a sociedade evoluir.

Porém, para que isso funcione esse ministério precisa ter relações com todos os outros ministérios. Precisa ter poder material e político para influenciar as políticas públicas emanadas de outros ministérios também. O Ministério da Igualdade Racial precisa ser ouvido e acatado.

Dentro dessa perspectiva, como acabar com o genocídio dos povos indígenas e da população negra?

Para terminar com o genocídio, é necessário que sejamos reconhecidos como seres humanos. E isso é um longo caminho, principalmente em uma sociedade forjada no sistema de produção escravista por séculos.

Imediatamente necessitamos de uma mudança em relação às negras, negros e indígenas. Uma mudança radical, na raiz. Uma mudança radical na segurança pública com a criação de um Sistema Nacional de Segurança controlado pela sociedade e calcado nos valores dos direitos humanos.

Isso porque desde a ditadura (1964-1985) está preservada a mesma estrutura de segurança pública, baseada no sistema de punição e vingança. E esse sistema ignora as tensões sociais e a degradação da vida da maioria da população, vivendo na pobreza ou pobreza extrema.

Não teve nenhuma mudança importante de conteúdo, de matriz teórica, ideológica. Continuamos com uma segurança punitiva, coercitiva e não corretiva. Uma ideia de segurança de defesa do patrimônio dos ricos e nunca em defesa da vida, essencialmente da vida dos mais pobres, invariavelmente pretos e jovens.

A Polícia Militar tem papel preponderante nisso?

A PM necessita ser desmilitarizada. É uma anomalia, uma aberração termos uma PM em governos civis. Porque a PM mantém o foco na opressão do mais pobre, do preto, da população vulnerável. Mantém o mesmo foco de violência contra as populações marginalizadas por causa do conflito de classes.

Porque a elite branca tem a polícia como seu braço armado para conservar as outras populações na situação de marginalidade e é nesse contexto que o Estado deve agir e garantir a sua presença com políticas públicas de respeito à vida e aos direitos sociais e individuais. Isso é uma das coisas que é possível em relação à população negra.

Em relação aos povos indígenas, é necessário garantir a posse de seus territórios com a demarcação de suas terras, além de respeitarmos as culturas desses povos. Precisamos acabar com essa ideia de “democracia racial” e com o mito do homem cordial brasileiro. Precisamos reconhecer que nada disso é real.

Para isso, o governo deve promover campanhas para conhecermos o país plural que somos. Porque não sabemos da existência de centenas de línguas diferentes faladas pelos povos indígenas. Não sabemos a história dos povos originários.

A Lei 10.639/2003, que incluiu oficialmente nos currículos escolares o ensino de história e cultura das negras e negros brasileiros e da história do continente africano contribui para isso?

Nem a população negra conhece a  sua história. A história dos nossos heróis. Dos heróis da classe trabalhadora. E esse fato dificulta a melhoria da autoestima e de se reconhecer como pertencente a esse povo, a essa nação. As nossas crianças podem se identificar com o país ao se reconhecer como parte integrante da formação do povo e da nação brasileira.

Então, são necessárias campanhas para além dos muros das escolas. Campanhas e programas do governo federal que ratifiquem a característica plural do nosso povo, da nossa cultura, da nossa sociedade. Porque senão somos plurais somente da boca pra fora.

Porque não somos plurais nos cargos de comando tanto no serviço público quanto no privado. Nos cargos de comando somos brancos. Não somos plurais nos presídios, onde a maioria é constituída de pobres e negros. Não somos plurais no lugar de passar fome, onde a maioria é gritante de negros no Nordeste e Sudeste e de indígenas no Norte.

Não somos plurais entre os mortos pela polícia, onde temos uma imensa maioria de jovens pretos e pobres. Então, que pluralidade é essa, que em determinados espaços é tão homogênea?

O que fazer?

Para modificar tudo isso, precisamos de mudanças estruturais também na política, na economia e estruturantes na sociedade. As políticas afirmativas contribuem para avançarmos rumo a essa mudança necessária para a nossa civilização.

Precisamos de uma mudança de mentalidade, mas enquanto isso não acontece, precisamos de lutar para oportunidades iguais para todas as pessoas. E isso passa pelas cotas neste momento.

Precisamos de mais negras, negros e indígenas nas estruturas de poder com a retomada dos conselhos participativos e termos mais representantes em cargos de decisão. Porque na medida em que reconhecemos nossas vozes representadas nas políticas públicas, muitas coisas podem acontecer e isso é essencial para o combate ao racismo estrutural.

Qual o papel do movimento sindical nas lutas contra as desigualdades e os preconceitos?

O movimento sindical tem esse grande desafio em suas perspectivas.

Eu sou uma mulher negra, sindicalista, no Nordeste, numa categoria altamente elitista, que funciona num espaço historicamente ocupado pelas elites brancas, que são as universidades. Sou técnica administrativa em educação em um cargo de segundo grau, apesar de eu ter curso superior e mestrado.

Percebe-se um processo de exclusão de negras e negros e os sindicatos têm um papel formativo e um papel de promotor de direitos.

Papel formativo porque cabe aos sindicatos tratar da história do nosso povo com a completude que ela tem. É importante dar espaço e destaque à discussão de formação da economia do nosso país, forjada sob a égide da escravidão e do genocídio dos povos indígenas e dos africanos escravizados.

Então combater o racismo e o machismo faz parte da luta sindical?

Combater o racismo, o machismo, a LGBTfobia e outras formas de discriminação são fundamentais para os sindicatos classistas. Porque estabelecer as diferenças e hierarquizá-las para justificar a exploração é especialidade do capitalismo.

E se nós somos sindicalistas classistas, como é o caso da CTB, e acreditamos que as trabalhadoras e trabalhadores constituem uma classe social e, portanto, somos as produtoras e produtores de toda a riqueza produzida no país, temos de lutar para que tenhamos o direito de usufruir dessa riqueza e não amargar a miséria e a fome.

Devemos, então, combater essas discriminações, utilizadas como forma de hierarquizar o mercado de trabalho, permitindo discursos como o do fascista que era nosso presidente, de que não contrataria uma mulher com o mesmo salário de um homem porque ela engravida e tem que cuidar dos filhos.

Isso não é uma diretriz do patriarcado?

Esse tipo de argumentação acontece porque vivemos numa sociedade patriarcal, na qual todos os afazeres domésticos e os cuidados com a família ficam sobre os ombros das mulheres. Porque a mulher engravida e o homem não pode substituí-la na gestação, mas se as licenças médicas das crianças fossem compartilhadas, a situação seria diferente e os homens ficariam tanto tempo com os filhos quanto as mulheres. Porque não há mudança no Brasil sem levar em conta as questões de raça, gênero e classe.

Marcos Aurélio Ruy é jornalista

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