Por Marcos Aurélio Ruy
Grandes nomes da música popular brasileira de todo o país definem São Paulo, que neste sábado completa 466 anos. Em Sampa, Caetano Veloso dá a mais completa tradução da maior metrópole do país citando Ronda, de Paulo Vanzolini (1924-2013).
Sampa (1978), de Caetano Veloso
Caetano tornou a esquina da “Ipiranga e a avenida São João” a mais famosa do Brasil, que só tem como rival o Clube da Esquina, de Milton Nascimento e vários outros, mas aí já é outra história. “É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/Da dura poesia concreta de tuas esquinas/Da deselegância discreta de tuas meninas”, canta Caetano.
Sampa
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim, Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes
E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa
Saudosa Maloca (1961), de Adoniran Barbosa
https://youtu.be/801MQjNJvrg
Um dos principais tradutores desta intraduzível megalópole foi Adoniran Barbosa (1910-1982) com diversas canções contando o cotidiano paulistano. “Trem das Onze” (1964) mostra a vida de um trabalhador comum e, talvez seja a canção mais emblemática sobre São Paulo, mas “Saudosa Maloca” (1961) mostra que o problema habitacional de Sampa vem de longe e a cada ano que passa a classe trabalhadora perde mais tempo no transporte público para chegar ao trabalho e voltar para casa.
Saudosa Maloca
Se o senhor não está lembrado
Dá licença de contá
Que aqui onde agora está
Esse adifício arto
Era uma casa velha
Um palacete assobradado
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mas um dia, eu nem quero me alembrá
Veio os homis c’oas ferramenta
Que o dono mandô derrubá
Peguemos tudo as nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciar a demolição
Que tristeza que eu sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração
Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei
Os homis tão cá razão
Nós arranja outro lugar
Só se conformemos quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor
E hoje nós pega páia nas gramas do jardim
E pra esquecê, nós cantemos assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossa vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas
Não Existe Amor Em SP (2011), de Criolo
Um dos grandes nomes da música popular brasileira atual, Criolo canta que “São Paulo é um buquê”, mas “buquês são flores mortas”. Denunciando o excesso de concreto, asfalto, edifícios e automóveis que dificultam a vida tão corrida de São Paulo.
Ao negar a existência de amor em SP, Criolo dialeticamente diz que o amor existe e está nas periferias, nos grafites que gritam contra a opressão, nas manifestações por mais espaços para a juventude, por mais espaços para a cultura e mais para a cidade poder respirar e a população viver de um modo mais digno.
“Encontro duas nuvens
Em cada escombro, em cada esquina
Me dê um gole de vida”
Não Existe Amor Em SP
Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo, feito pra você
Não existe amor em SP
Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra
Afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu
Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você
Encontro duas nuvens
Em cada escombro, em cada esquina
Me dê um gole de vida
Não precisa morrer pra ver Deus
Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você
Não existe amor em SP
Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra
Afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu
Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você
Encontro duas nuvens
Em cada escombro, em cada esquina
Me dê um gole de vida
Não precisa morrer pra ver Deus
Ronda (1953), de Paulo Vanzolini; interpretação: Inezita Barroso
Paulo Vanzolini canta a vida noturna da capital paulista e “bebendo com outras mulheres”, pode acabar em “cena de sangue num bar da avenida São João. Uma descrição da cidade quando ainda não era tão gigantesca sem esse trânsito caótico e a depreciação que a crise traz para a vida da cidade.
Ronda
De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar.
No meio de olhares espio,
Em todos os bares
Você não está…
Volto pra casa abatida,
Desencantada da vida.
O sonho alegria me dá:
Nele você está.
Ah, se eu tivesse
Quem bem me quisesse,
Esse alguém me diria:
“Desiste, esta busca é inútil”.
Eu não desistia,
Porém, com perfeita paciência
Volto a te buscar.
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres,
Rolando um dadinho,
Jogando bilhar
E neste dia, então,
Vai dar na primeira edição:
Cena de sangue num bar
Da Avenida São João.
Augusta, Angélica e Consolação (1973), Tom Zé
Tom Zé canta o inimaginável e utiliza do nome de três avenidas nos Jardins de São Paulo para mostrar o seu amor pela cidade. Amor que ele dedicou em 1968, em “São São Paulo Meu Amor”, vencendo o Festival da Record daquele ano. “São oito milhões de habitantes (já são mais de 11 milhões)/De todo canto em ação/Que se agridem cortesmente/Morrendo a todo vapor/E amando com todo ódio/Se odeiam com todo amor/São oito milhões de habitantes/Aglomerada solidão/Por mil chaminés e carros/Caseados à prestação/Porém com todo defeito/Te carrego no meu peito”, espantou uma plateia atônita no famoso festival.
Augusta, Angélica e Consolação
Augusta, graças a deus,
Graças a deus,
Entre você e a angélica
Eu encontrei a consolação
Que veio olhar por mim
E me deu a mão.
Augusta, que saudade,
Você era vaidosa,
Que saudade,
E gastava o meu dinheiro,
Que saudade,
Com roupas importadas
E outras bobagens.
Angélica, que maldade,
Você sempre me deu bolo,
Que maldade,
E até andava com a roupa,
Que maldade,
Cheirando a consultório médico,
Angélica.
Augusta, graças a deus,
Entre você e a angélica
Eu encontrei a consolação
Que veio olhar por mim
E me deu a mão.
Quando eu vi
Que o largo dos aflitos
Não era bastante largo
Pra caber minha aflição,
Eu fui morar na estação da luz,
Porque estava tudo escuro
Dentro do meu coração.
Às Vezes (2010), de Luiz Chagas; interpretação: Tulipa Ruiz
Mais uma vez a rua Augusta, que tem uma vida noturna para todos os gostos e muitos bares destinados à população LGBT, é cantada nesta bela canção para mostrar que há vida em São Paulo, apesar o céu cinzento e prefeitos mau-humorados, que chegaram a pintar de cinza muros da cidade, apagando grandes obras de arte de grafite na avenida 23 de maio, como fez João Doria, quando estava na prefeitura. Doria foi obrigado a recuar pela reação da sociedade para defender a arte como parte da vida da cidade.
Às Vezes
Às vezes quando eu vou à Augusta
O que mais me assusta é o teu jeito de olhar
De me ignorar
Toda em tons de azul
Teu ar displicente invade meu espaço
E eu caio no laço exatamente do jeito
Um crime perfeito
It’s all right, baby blue
Garupa de moto, a quina da loto saiu pra você
Sem nome e o endereço é de hotel, eu mereço
Até outra vez
Às vezes quando eu chego em casa
O silêncio me arrasa e eu ligo logo a TV
Só então eu ligo pr’ocê, descubro que já sumiu
Não sei em qual festa que eu te garimpei
Cantanto “lay mister lay”, será que foi no meu tio?
Ou em algum bar do Brasil…
Sei lá, eu fui mais de mil
Cheguei bem tarde, o vinho estava no fim
E alguém passou o chapéu pra mim e gritou
É grana pra mais bebum e eu não paguei
Às vezes quando eu vou ao shopping
Escuto “Money for Nothing” e então começo a lembrar
Que eu tocava num bar e que uma corda quebrou
Foi um deus-nos-acuda, eu apelei pro meu Buda
Te peguei pelo braço e nós fomos embora
Eu disse: Baby, não chora, amor de primeira hora
A vida é chata, mas ser platéia é pior
E que papel o meu
Chá quente na cama, sorvete, torta, banana, lua de mel
Às vezes quando eu vou ao centro da cidade
Evito, mas entro no mesmo bar que você
Nem imagino o porquê, se eu nem queria beber
Reparo em sua roupa, na loira ao seu lado
No seu ar cansado que nem mesmo me vê
Olhando pr’ocê, pedindo outro “fernet”
Será que não chega, já estou me repetindo
Eu vivo mentindo pra mim
Outro sim, outra “trip”, outro tchau
Outro caso banal, tão normal, tão chinfrim
Às vezes eu até pego uma estrada
E a cada belo horizonte eu diviso o seu rosto
A face oculta da lua soprando ainda sou sua
Persigo São Paulo (1998), de Itamar Assumpção
Itamar Assunção (1949-2003) foi uma das grandes revelações do Teatro Lira Paulistana nos anos 1980. Muitos artistas independentes usaram esse espaço para dar o seu recado aos paulistanos, ao Brasil e ao mundo.
“Não, não/São paulo é outra coisa/Não é exatamente amor/É identificação absoluta/Sou eu”, com estes versos Itamar cantou o seu amor à Sampa sempre com a mesma desenvoltura que cantou as dificuldades e a vida mundana da cidade ingrata por vezes, maltratada quase sempre, mas viva.
Persigo São Paulo
Não, não
São paulo é outra coisa
Não é exatamente amor
É identificação absoluta
Sou eu
Eu não me amo
Mas me persigo
Bonita palavra, perseguir
Eu persigo são paulo
Eu persigo são paulo
Não, não, não, não, não.
São paulo é outra coisa
Não é exatamente amor
É identificação absoluta
Sou eu
Eu não me amo
Me persigo
Me persigo
Bonita palavra, perseguir
Em tudo que a sua etimologia sugere e confessa
Eu persigo são paulo
Não, não, não, não, não.
São paulo é outra coisa
Não é exatamente amor
É identificação absoluta
Sou eu
Eu não me amo
Mas me persigo
Bonita palavra, perseguir
Eu persigo são paulo
Eu persigo são paulo
Eu persigo são paulo
Eu persigo são paulo
Eu, eu persigo são paulo
São paulo sou eu
Pronto
Sampa No Walkman (1991), de Humberto Gessinger; interpretação: Engenheiros do Hawaii
Gessinger tenta mostrar as contradições da maior cidade do país, com todos os problemas que esse gigantismo acarreta e o capitalismo trata de provocar destruição e mais problemas. As contradições da cidade estão nos patrões opressores e na resistência de quem trabalha e enfrenta as dificuldades impostas pela ausência de políticas que valorizem as necessidades e os anseios de quem produz a riqueza da cidade e do país.
Sampa No Walkman
Este sou eu
Parado na esquina
A mesma esquina em outra canção
(o barulho termina, começa a canção)
É a verdade
A-ver-a-cidade
Alguma coisa acontece no meu coração
Estas são elas
Tuas meninas
(nordestinas, erundinas)
tua mais completa contradição
Esta São Paulo
São tantas cidades
Nunca tantas quantas gostaria de ser
Ouvindo Sampa no walkman
(vidro, concreto e metal)
Ouvindo Sampa no walkman
Duvido de qualquer cartão postal
Este sou eu
Parado na esquina
A-ver-a-cidade, ouvindo a canção
Deuses da chuva
Demônios da garoa
Garotas propaganda além dos outdoors
FIESP, favelas
Ouro & ferro velho
Surfista ferroviário
(o contrário do contrário do contrário do…)
Esta São Paulo
São tantas cidades
Nessas cidades eu vejo a canção
Ouvindo Sampa no walkman
Samples de sons audiovisuais
Ouvindo Sampa no walkman
A ponte aérea, no metrô
Ouvindo Sampa no walkman (vidro, concreto & metal)
Ouvindo Sampa no walkman Duvido de qualquer cartão postal
Ouvindo Sampa no walkman Samples de sons audiovisuais
Ouvindo Sampa no walkman na Ponte aérea, no metrô
Ouvindo Sampa no walkman a walk on the wild side
Este sou eu
Na esquina, de novo
Tudo é tão novo quanto esta canção
Será que alguém presta atenção?
Amanhecendo (1974), de Billy Blanco
O tom um tanto ufanista de Billy Blanco (1924-2011) exalta a capital paulista, mas, talvez sem perceber mostra que São Paulo não teria a grandeza que tem sem as trabalhadoras e trabalhadores que vieram de muitos cantos do país, principalmente do Nordeste, e construíram esta cidade com seu trabalho imprescindível.
Então “vam bora” porque a região metropolitana de São Paulo é uma correria só e precisa rever se há necessidade de tanta correria.
Amanhecendo
De metrô chego primeiro
Se tempo é dinheiro
Melhor vou faturar
Sempre ligeiro na rua
Como quem sabe o que quer
Vai o paulista na sua
Para o que der e vier
A cidade não desperta
Apenas acerta
A sua posição
Porque tudo se repete
São sete, e às sete
Explode em multidão
Portas de aço levantam!
Todos parecem correr!
Não correm de, correm para
Para São Paulo crescer!
Vam bora, vam bora
Olha a hora
Vam bora, vam bora
Vam bora, vam bora
Olha a hora
Vam bora, vam bora
Vam bora!
Vam bora, vam bora
Olha a hora
Vam bora, vam bora
Vam bora, vam bora
Olha a hora
Vam bora, vam bora
Vam bora!