PUBLICADO EM 11 de ago de 2020
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O racismo estrutural sob o refúgio da esquizofrenia

Durante muitos anos e ainda hoje é recorrente no Brasil a noção de que não haveria racismo no país. O mito da democracia racial, cunhado em Casa-Grande e Senzala por Gilberto Freire é o ponto de partida disto no plano das ideias. Outra grande quantidade de tinta foi gasta para contrapor essa narrativa, de Florestan Fernandes e Roger Bastide já na década de 50, passando por Darcy Ribeiro, Clóvis Moura e mais recentemente Silvio Almeida. Foi possível teoricamente desconstruir a noção de democracia racial brasileira e escancarar um racismo estrutural fundado na idiossincrasia do desenvolvimento do capitalismo na terra brasílis, sob a égide da mão de obra escrava.

Manifestação antifascista, antirracista e pela saida do presidente Bolsonaro, na Esplanada dos Ministérios, 07 de junho de 2020. Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

Por Fernando Rosário e Ronaldo Quadrado

Racismo estrutural segundo essa tradição seria a formalização de um conjunto de práticas institucionais, históricas, culturais e interpessoais dentro de uma sociedade que frequentemente coloca um grupo social ou étnico em uma posição melhor para ter sucesso e ao mesmo tempo prejudica outros grupos de modo consistente e constante, causando disparidades que se desenvolvem entre os grupos ao longo de um período de tempo. Em Silvio Almeida, encontramos a ideia de que racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégios de sujeitos racializados são estruturalmente reproduzidas.

É à luz desse debate que nos colocamos na tentativa de compreender o episódio lamentável que ocorreu na semana passada no interior de São Paulo, onde Mateus Abreu Almeida Prado Couto insulta o entregador de aplicativo Matheus Pires, com uma postura incontestavelmente racista. O pai do agressor afirma que o filho tem transtornos psíquicos, mas isso não invalida ou atenua as agressões cometidas, ao contrário, isso revela os valores nefastos que circulam o cotidiano desse sujeito, ainda que se trate de uma pessoa doente. Não foi a esquizofrenia que inventou o racismo e a discriminação.

No máximo, no caso dele, pode ter sido a responsável por dizer sem rodeios o que, infelizmente, está lá escondida na cabeça de muitas pessoas que se acham grande coisa por ter “una preciosa entrada de autos esperando un Peugeot” como cantou Victor Jara em Las casitas del barrio alto.

Episódios lamentáveis e criminosos como este desvelam que a cultura racista está presente, mesmo que um perverso pacto de silêncio por vezes a mantenha velada ou naturalizada, empenhando-se em fazer aparentar conseqüência de uma situação isolada. A postura de outra pessoa que aparece no vídeo que viralizou nas redes sociais deixa isso muito claro. Um rapaz branco acompanhou toda discussão onde Matheus é ofendido, e em nenhum momento se rebelou ou sequer repreendeu o agressor, ao contrário, o que se pode perceber mesmo sendo difícil de identificar o que foi dito é que ele concorda com a atitude do racista.

O sociólogo Jessé de Souza afirma que o preconceito racial é organizado através de um pensamento que busca encontrar uma miserável solidariedade dentre os que compartilham do racismo, para que os privilégios oriundos desse histórico quadro se mantenham intactos. Eis aí o caráter de classe do racismo. E é assim, baseado em critérios fenotípicos, que a polícia se sente autorizada a matar, o Estado a negligenciar, os brancos a se omitir e, desse modo, toda uma cadeia perversa mantém as relações de discriminação naturalizadas.

A reação que houve contra as políticas afirmativas das cotas raciais nas universidades são a materialização de que as relações de privilégio são defendidas em campo aberto pelos seus beneficiários. Esses são caudatários da herança escravocrata e elitista que ainda assombra o Brasil e que não vai desaparecer sem luta, por geração espontânea ou por uma tomada de consciência natural.

Fernando Rosário é professor da rede pública e privada em Pelotas.

Ronaldo Quadrado é Conselheiro Tutelar em Pelotas.

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