PUBLICADO EM 09 de abr de 2018
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O fotógrafo que mostrou para o mundo o que realmente aconteceu em My Lai

Quando o fotógrafo Ron Haerbele desembarcou perto da aldeia de My Lai, no Vietnam, na manhã de 16 de março de 1968, junto com a unidade do Exército com a qual estava – Companhia Charlie, Primeiro Batalhão, Vigésimo Regimento da Infantaria, os moradores não ficaram abalados. Isso porque os americanos já haviam visitado a região perto da costa vietnamita central antes, sem incidentes. Mas naquele dia, dentro de minutos, conforme um relatório oficial do exército informou depois, as tropas abriram fogo. Nas horas que se seguiram, as forças americanas arrasaram o vilarejo. Eles estupraram, torturaram e mataram centenas de homens velhos, mulheres e crianças. Mais de um ano depois, quando as chocantes fotografias de Haerbele daquelas atrocidades foram publicadas, elas desnudaram uma verdade aterradora: os “garotos” americanos eram tão capazes de selvageria descontrolada como qualquer soldado, em qualquer lugar.

As fotos de Haerbele tornaram My Lai exemplo do massacre

Encontrei Ron Haerbele pela primeira vez em 2009, quando era um repórter no Cleveland Plain Dealer – o jornal que, em novembro de 1969, publicou pela primeira vez as fotos de My Lai. No quadragésimo aniversário desse marco ele deu sua primeira grande entrevista. Perguntei se ele toparia revisitar a história e assim retornamos para um dos capítulos mais negros da América.

Ron Haerbele foi alistado em 1966, depois de frequentar a Universidade de Ohio, onde ele era um fotógrafo no jornal da escola. Ele acabou no Havaí com o Escritório de Informação Pública do Exército. No final de 1967 pediu uma transferência e foi mandado para o Vietnam.

Aos vinte e seis anos de idade, ele era mais velho que a maioria dos membros da Companhia Charlie, onde a média de idade era apenas vinte. A Companhia já existia há cerca de um ano antes de Haerbele se juntar a ela, em março de 1968.

Quando eles aterrissaram em My Lai foram preparados para ação; as tropas vietcongs foram reportadas para se esconder na aldeia. O fotógrafo disse que ouviu muito tiroteio e pensou que estavam em uma zona quente, mas que depois de alguns minutos percebeu que não estavam levando nenhum fogo, e começaram a andar através do vilarejo.

Suas fotografias em preto e branco de camponeses em My Lai apareceram na primeira página do jornal Plain Dealer, em 20 novembro de 1969 (Haerbele tirou as fotos não com sua câmera Leica emitida pelo Exército, mas com sua própria câmera, uma Nikon; isso significou que eles não estavam sujeitos à mesma superintendência). Elas registraram as atrocidades em My Lai, onde vítimas foram baleadas, mulheres e garotas foram estupradas e depois assassinadas. Pelo menos um soldado mais tarde confessou que cortou fora a língua dos camponeses e escalpelou outros.

Embora aquele não fosse o único caso desse tipo no Vietnam My Lai, tornou-se o maior exemplo do massacre justamente por causa das fotos de Haerbele.

Imagens de mulheres e crianças mortas e mutiladas preenchiam a tela

Hoje, Ron Haerbele vive cerca de quarenta milhas do centro de Cleveland, numa bela casa em uma rua sem saída. Em sua casa trabalhos originais de artistas vietnamitas, a maioria abstratos, adornam as paredes. Um deles é um delicado retrato bordado de uma mulher, graciosamente esticando o braço em direção ao céu.

A violência em My Lai foi especificamente aterrorizante. Haerbele me contou que viu um homem velho com duas crianças pequenas andando na direção das tropas americanas, com seus pertences numa cesta. “O homem velho gritava ‘Não V.C.! Não V.C.!’, para os soldados saberem que ele não era vietcong”, Haerbele relembra. Para seu horror, o homem e as crianças foram derrubados na sua frente. “Um soldado atirou em todos os três”, ele disse.

Foi mais de um ano depois do massacre antes de Haerbele abordar o Plain Dealer com suas fotos, mas ele havia começado a compartilhar suas fotos de My Lai em conversas com shows de slides para grupos civis e até mesmo colégios locais, depois que voltou para casa no norte de Ohio na primavera de 1968. Os primeiros slides que ele mostrou eram inócuos: tropas com sorridentes crianças vietnamitas; médicos ajudando camponeses. Depois, então, imagens de mulheres e crianças mortas e mutiladas preenchiam a tela. “As pessoas não acreditavam” disse Haerbele. “Elas diziam: não, não isso não pode ter acontecido”.

Em um ponto na matança, Haerbele relembra, ele e o repórter do Exército Jay Roberts encontraram um grupo de camponeses amontoados com medo, depois que as tropas atacaram um número de jovens mulheres. Haerbele tirou uma foto de uma mãe em lágrimas – e enquanto ele e Roberts saiam da cena um rifle disparou atrás deles. “Eu pensei que os soldados os estavam interrogando”, Haerbele me disse. “Então eu ouvi o tiroteio. Eu não podia virar para olhar. Mas do canto do meu olho, eu os vi cair”.

As fotos de Haerbele, que mostraram terror e angústia em rostos, jovens e velhos, no meio da matança, permanecem como as fotografias mais poderosas do século 20. Quando o Plain Dealer (e depois a revista LIFE) as publicou, junto com meia dúzia de outras imagens, desmentiam muito do que os Estados Unidos afirmou por anos sobre a conduta e os objetivos do conflito. Pessoas que protestavam contra a guerra não precisavam de persuasão, mas os americanos “médios” de repente começaram a se perguntar: “o que nós estamos fazendo no Vietnam?”. Imagens terríveis, não todas capturadas pela câmera, continuam na cabeça Haerbele nos dias de hoje: um soldado indiferentemente atirando num jovem rapaz; outro cavalgando um búfalo marinho, repetidamente o esfaqueando com sua baioneta.

Seymour Hersh

O massacre e a tentativa de encobri-lo foi primeiramente reportado pelo jornalista Seymour Hersh e distribuído por uma agência de telégrafos, Dispatch News Service, na segunda semana de novembro de 1969 (Hersh ganhou em 1970 o prêmio Pulitzer de Reportagem Internacional por seu trabalho). Uma semana depois que o artigo de Hersh apareceu em dúzias de jornais através dos Estados Unidos, o Plain Dealer correu sua própria história – junto com as fotos de Haerbele para reforçar as reportagens do massacre.

Haerbele disse que foi uma reação automática continuar a tirar fotos, mesmo quando a brutalidade se intensificou. “Como fotógrafo, meu papel era capturar o que estava acontecendo durante a operação”, ele me disse. “Eu realmente sentia que estava fotografando algo histórico, especialmente a carnificina. Mas sabia que aquilo não estava certo. Era incompreensível”.

A vida não tem significado para essas pessoas

Hoje Haerbele relembra a mensagem comunicada para muitos soldados antes de sua chegada no Vietnam. “Nos diziam: ‘A vida não tem significado para essas pessoas’: o inimigo não é como nós. Eles não são humanos”.

No final da manhã de 16 de março, corpos estavam dispersos por toda a aldeia de My Lai. Em outro lugar, soldados tinham arrebanhado dúzias de camponeses na vala na beira da estrada e atirado neles. Poucas crianças sobreviveram, se escondendo sob os cadáveres. Haerbele disse que ele e Roberts tentaram contar ao Capitão da Companhia Charlie, Ernest Medina, o que eles haviam visto. Quando Medina encarou uma corte marcial em 1971, ele foi absolvido (O piloto de helicóptero americano Hugh Thompson, o atirador Lawrence Colburn e o chefe da tripulação Glenn Andreotta, que chegaram no meio do massacre, foram cada um premiado com a Medalha dos Soldados por heroísmo, no trigésimo aniversário de My Lai, em reconhecimento de suas tentativas de intervir e salvar as vidas dos camponeses, enquanto arriscando suas próprias).

Entre os oficiais e outros na Companhia Charlie que eventualmente encararam a corte marcial, apenas o coronel William Calley foi condenado. Na primavera de 1971, ele foi considerado culpado de assassinato e sentenciado a prisão perpétua. O presidente Richard Nixon reduziu a sentença para prisão domiciliar; Calley serviu três anos e meio em seus aposentos em Fort Benning, Ga. Ele é a única pessoa considerada culpada em cortes militares ou criminais pelas atrocidades em My Lai; em 2009, ele pediu desculpas. Mas as fotos quentes de Haerbele, junto com histórias do Plain Dealer e outros canais no outono de 1969, provocaram indignação e abalaram a alma da América.

E elas ficaram com Haerbele por meio século. Ele voltou a My Lai em 2011, onde se encontrou com Duc Tran Van, um sobrevivente do massacre. Duc tinha oito anos de idade em março de 1968, e enquanto Haerbele falava com ele, através de um intérprete, ele percebeu chocado que a mulher que ele havia fotografado morta atrás de uma pedra 43 anos atrás, era a mãe de Duc, Nguyen Thi Tau.

Duc contou a Haerbele que sua mãe lhe pediu para correr, com sua irmã de vinte meses de idade, para a casa de sua avó. Quando ele ouviu um helicóptero acima deles, Duc se jogou no chão para proteger sua irmã, que já estava ferida. Haerbele havia capturado esse momento, também.

Duc e Haerbele viraram amigos, e o veterano do Exército visitou Duc na Alemanha, onde ele vive agora. “Duc tem um pequeno santuário para sua família em sua casa”, disse Haerbele. “Eu tirei a última foto de sua mãe. Então eu dei a ele a minha câmera, a Nikon que eu usei em My Lai, para o santuário”. Haerbele retornou para My Lai muitas vezes, e ele estará lá de novo no quinquagésimo aniversário do massacre.

Haerbele é um homem cheio de ideias, franco. Ele nunca buscou os holofotes, mas obtém algum consolo sabendo que suas fotos fizeram diferença.

Adaptado do texto de Evelyn Theiss para time.com

Fotografias: Ronald L. Haeberle

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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