PUBLICADO EM 07 de jun de 2018
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Harvey Weinstein e a feia história do teste do sofá em Hollywood

Depois de revelações em que o produtor cinematográfico Harvey Weinstein foi acusado de décadas de má conduta sexual e abuso, a atriz Emma Thompson disse à BBC que ela acredita que o abuso de mulheres por homens poderosos é “endêmico ao sistema” em Hollywood, devido em parte ao desequilíbrio de gênero na indústria.

Harvey Weinstein no Festival de Cannes, 2015.

Esse sistema é produto de cerca de um século de história de economia e de negócios da mídia. E, enquanto Hollywood não é certamente a única indústria em que essas dinâmicas estiveram em jogo durante o século XX, ela provê uma janela austera sobre como esses elementos podem criar uma cultura tóxica.

Segundo Cari Beauchamp, autora de Without Lying Down: Frances Marion and the Powerful Women of Early Hollywood (Nota do tradutor: Sem deitar: Frances Marion e as Mulheres Poderosas do Início de Hollywood) e muitos outros livros sobre a história de Hollywood “A ideia de prometer um papel ou promover você por favores sexuais é tão velha quanto a trama mais velha de Hollywood”. No entanto, Beauchamps adicionou que as poderosas dinâmicas que permitem alguém se envolver com esse tipo de “quid pro quo” são produtos de um momento específico.

Hollywood, nos seus muito primeiros dias, não era o tipo de lugar em que a infame cultura do “teste do sofá” podia florescer da maneira que mais tarde pôde. Mulheres (como Frances Marion) prosperaram no início de Hollywood e frequentemente tinham posições de grande influência, no que era então uma indústria heterogênea, altamente difusa. Com centenas de pequenas empresas testando um novo meio, havia muito espaço para pessoas que não poderiam avançar em negócios mais tradicionais – como mulheres.

Nos anos de 1920 e 1930, no entanto, as coisas começaram a mudar.

Com a invenção dos “filmes falados” e os primeiros sintomas da “Grande Depressão”, o negócio dos filmes mudou. Quanto mais caros os filmes se tornavam, financiados por banqueiros, mulheres fazedoras de filmes tinham problemas em assegurar os fundos que precisavam para competir. Pequenas companhias saíram dos negócios e as que continuaram, cresceram. Os estúdios principais começavam a consolidar poder e lucros. E, assim como aconteceu em diversos campos (por exemplo, programação de computadores) dinheiro e respeito faziam empregos mais atrativos para os homens. Muito cedo os bastidores do mundo de Hollywood se tornaram regidos por homens que tinham uma sem precedentes oscilação sobre as carreiras de todos.

“Os cabeças dos estúdios vieram nos anos de 1920 e se concentraram em construir suas companhias”, disse Beauchamp. “Pelos anos de 1930 eles haviam construído seus reinos. Eles eram os reis dos castelos e com a coroa vinha o direito, pensavam eles”.

E os estúdios eram de fato um tipo de reino, com o cabeça sentado no topo. Os enormes lotes em que os filmes eram feitos tinham até seus próprios departamentos de polícia. “Eram pequenas cidades”.

Com os cabeças dos estúdios empunhando tanto poder em uma indústria em que homens faziam quase todas as decisões nos bastidores, foi possível a cultura do “teste do sofá”, de esperar sexo em troca de avanços na carreira, se desenvolver. “Os homens no poder perceberam que eles poderiam usar sua posição para ganho sexual em adição ao financeiro”, adicionou Alicia Malone, autora de Backwards and in Heels: The Past, Present and Future of Women Working in Film (Nota da tradutora: Para trás e de salto: o passado, presente e futuro das mulheres trabalhando em filmes). “Não todos é claro; grandes homens que não faziam isso. Mas alguns faziam e isso continua até hoje”.

Embora não todos dos principais cabeças de estúdios daquela era são sujeitos de tais rumores, há muitos para dar a volta.

É dito que um poderoso produtor se expôs para Shirley Temple, quando ela era apenas uma criança. Joan Collins disse que não pegou o papel principal em Cleópatra especificamente porque ela se recusou a dormir com um produtor, em um flagrante quid pro quo para o papel. O marido de Rita Hayworth, Eddie Judson, reportadamente ofereceu a outros homens poderosos os favores sexuais de sua esposa, mas quando ela se recusou a dormir com o líder de estúdio Harry Cohn, ele usou isso contra ela, de acordo com Malone.

Beauchamp destaca o conto que a então ingênua Jean Howard, cujas interações com produtor Louis B. Mayer tinham sido enquadradas docemente como ele estando irremediavelmente apaixonado por ela sem ser correspondido. Visto hoje, o conto pode ser enquadrado de forma menos sadia: ela era jovem e apenas começava sua carreira; ele era décadas mais velho e um poderoso (e casado) homem que tinha a habilidade quase completa para ditar como essa carreira foi.

Quando ela recusou seus avanços, ele reportadamente ameaçou se matar. Quando ela decidiu se casar com o agente Charlie Feldman, Mayer contratou um detetive privado para segui-los, e disse a seus associados para parar de fazer negócios com o agente, numa tentativa de encerrar a carreira de Feldman, em vingança.

Essas histórias gotejariam décadas mais tarde em biografias e memórias de estrelas no final de século XX, mas foram largamente desconhecidas fora das fronteiras de Hollywood.

Assim como o negócio estava se consolidando nos anos de 1930, então era a mídia que cobria os filmes. Graças a uma combinação de filmes atrevidos e escândalos da vida real como o julgamento de Fatty Arbuckle, Hollywood vinha tendo uma má reputação com o público. Então, nesse período, Hollywood usou o Código Hays (oficialmente Motion Picture Production Code ou Código de Produção de Cinema foi um conjunto de normas morais aplicadas aos filmes lançados nos Estados Unidos entre 1930 e 1968 pelos grandes estúdios cinematográficos) para voluntariamente quebrar sua própria moralidade, impondo rigorosos limites sobre o que poderia ser dito ou visto nas telas. Mas, Beauchamp notou, o código também pode ser visto como um muro entre o público e o lado mais sombrio de Hollywood. Will Hays, que deu nome ao código, é às vezes retratado como um censor, mas ela explica que ele é com mais precisão visto como um lobista implantado pelos estúdios para convencer o resto do mundo que Hollywood era moralmente pura.

Entre o Código Hays e o estreito controle que os estúdios tinham da mídia pré-internet, o comportamento daqueles monstros da mídia – que não teria sido permitido ser retratados nas telas – não teve que impactar a bilheteria.

“O público apenas sabia o que eles viam nas telas e o que o estúdio dizia a eles”, como Malone colocou.

Na década de 1970, Malone disse, que as coisas começaram a mudar para as mulheres em Hollywood. Embora elas continuaram a fazer arte e cinema experimental no meio do século XX, o negócio dos filmes comerciais continuou basicamente fora de suas fronteiras, assim como suítes executivas americanas eram largamente masculinas.

Um número de fatores – como o fim daquela versão consolidada do sistema de estúdio, o crescimento da televisão, a queda do Código Hays e a disseminação do cinema estrangeiro – combinaram-se para que, no fim dos anos 1960, os reinos estabelecidos pelos principais cabeças de estúdios se enfraquecessem. Enquanto aqueles estúdios continuariam a fazer filmes e dominar grande poder econômico, competidores arrivistas começavam a traçar o seu caminho na indústria. E, na tendência das décadas de 1920 e 1930, isso significava que as mulheres podiam entrar também. Combinado com os passos largos feitos pelo feminismo daquela época, as mulheres começaram, embora devagar, a voltar para as posições de tomadas de decisão em Hollywood.

“Era a mesma época que as mulheres estavam começando em posições executivas em todas diferentes indústrias”, disse Malone. “A década de 1970 é quando você começa a ver mulheres atrás das cenas e o nascimento do cinema independente”.

Em 1980 se viu a nomeação da primeira mulher diretora de um estúdio principal, Sherry Lansing, mas o progresso foi lento. Para 2016, reportagem do anuário “Celluloid Ceiling” (Nota da Tradutora: teto de celuloide) descobria que, dos filmes americanos Top 250 do ano, as mulheres tinham apenas 17% dos empregos por trás das cenas, em Hollywood.

Mas, apesar do número baixo, tanto Beauchamp quanto Malone dizem que isso está mudando – e as notícias sobre Weinstein são bons exemplos. Graças a ferramentas como as mídias sociais e uma difícil de medir, mas inescapável mudança cultural, é mais fácil trazer o que acontece atrás das cenas para o mundo afora.

“Agora, as atrizes têm meios de divulgar suas declarações para o público largamente. É muito difícil e, é claro, muitas mulheres têm medo, mas ao menos elas podem”, disse Malone. “Atrás das cenas ainda há um longo caminho a percorrer”.

Adaptado do artigo de Lily Rothman para time.com

Traduzido por Luciana Cristina Ruy

 

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