PUBLICADO EM 10 de fev de 2021
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Entregadores são funcionários da Rappi e devem ter carteira assinada, concluem fiscais do trabalho

Conclusão é dos fiscais do trabalho depois de um trabalho de fiscalização que durou oito meses. Entregadores não têm autonomia e a Rappi deve assinar a carteira, garantindo assim seus direitos trabalhistas.

Paralização dos entregadores de aplicativo na praça Charles Miller, Pacaembu.

Uma fiscalização de auditores fiscais do trabalho, que durou oito meses, concluiu que entregadores não têm autonomia e que a Rappi deve assinar a carteira, garantindo assim seus direitos trabalhistas. A empresa colombiana de entregas por aplicativo opera no Brasil desde 2017.

“Pela legislação atual, os entregadores são funcionários da Rappi e deveriam ter suas carteiras assinadas”, explica a dupla de auditores fiscais do trabalho, Rafael Brisque Neiva e Rafael Augusto Vido da Silva, que investigou a relação trabalhista entre a Rappi e seus entregadores. “É claro para nós: os entregadores têm relação de trabalho subordinado a Rappi”, enfatiza Neiva.

O relatório de fiscalização de 220 páginas, ao qual a Repórter Brasil teve acesso, foi encaminhado para o Ministério Público do Trabalho e será adicionado a um o inquérito que já está em em andamento, segundo Ruy Fernando Gomes Leme Cavalheiro, procurador do Trabalho na cidade de São Paulo, que apura as relações de trabalho entre empresa e entregadores.

A fiscalização ainda não estabeleceu o valor total da multa trabalhista à Rappi, até porque, segundo os auditores, a empresa não forneceu a informação sobre o número de entregadores – mesmo depois de ter sido notificada pelos servidores do Ministério da Economia. A legislação atual prevê multa de R$ 3 mil reais por trabalhador não registrado, mas a Rappi tenta se blindar disso ao não passar a relação de entregadores para a auditoria, explica o fiscal do trabalho. “Doeria no bolso deles, com certeza”, afirma.

Os auditores destacam que os entregadores não são autônomos, já que os motociclistas e ciclistas que concluem os pedidos da plataforma dependem do aplicativo para trabalhar e recebem um “salário” com valor determinado pela empresa. Além disso, dependem do aplicativo para conseguir os serviços e não possuem autonomia para definir o valor do trabalho. “É uma fraude antiga com roupas novas”, afirma Rafael Vido, que faz parte do grupo de combate à informalidade e fraude nas relações de trabalho.

Procurada, a Rappi não quis comentar e não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil. Após a publicação da reportagem, a Associação Brasileira Online to Offline – que também representa a Rappi – afirmou, em nota, que “as pessoas que buscam seus ganhos por meio das plataformas não podem depender de uma fórmula engessada, que traga de volta uma regulação, a partir de mais impostos e regras, que prejudique o trabalho, a liberdade de escolha e a oportunidade de auferir renda”. A associação do setor, que representa 120 plataformas digitais, destaca ainda que o tema deve ser alvo de um debate profundo, que envolva comerciantes e entregadores, e que “não será com decisões céleres que teremos a segurança jurídica necessária para operar e continuar gerando oportunidades para o maior número de pessoas.” Leia aqui a nota na íntegra.

Segundo os auditores, a “autonomia” dos entregadores se resumiria, em tese, a aceitar ou não uma entrega, mas, ainda assim, não é tão simples.“Podemos recusar corridas, mas, na verdade, não podemos. Aí arriscamos sofrer os castigos do aplicativo”, afirma um entregador entrevistado pela Repórter Brasil. Migrante do Haiti, o trabalhador – que preferiu não se identificar por medo de perder sua única fonte de renda –, esperava a notificação do aplicativo para subir em sua bicicleta e completar mais uma corrida.

No regime de trabalho informal da Rappi, os entregadores não têm acesso a direitos trabalhistas, como Previdência Social, depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (dever do empregador) ou mesmo horas extras e controle de jornada de trabalho. Isso não é exclusividade da Rappi. A falta de garantias e seguridade social é replicada em outras plataformas de entrega.

Apesar de não ter respondido os questionamentos da Repórter Brasil, a empresa explicou aos auditores que é uma simples “intermediadora” entre entregador e consumidor e que se isenta de qualquer relação com quem trabalha fazendo as entregas. “Entregador algum jamais prestou serviços para a Rappi”, foi a resposta da empresa aos auditores, segundo consta no relatório da fiscalização.

Sonegação de informações

A fiscalização começou em abril de 2020 e durou oito meses. Desde então, a Rappi ainda não divulgou o número de entregadores, número de entregas, remunerações ou jornadas de trabalho, mesmo depois de ter sido formalmente notificada pelos auditores. “A sonegação dessas informações é uma estratégia deliberada para dificultar nosso trabalho – sabemos que eles [A Rappi] têm até salas com todos esses números constantemente exibidos nas telas de controle”, afirma Rafael Neiva

A empresa alega em sua página e no “contrato” para se inscrever no aplicativo – assinado com um clique na tela do celular – que seus entregadores são trabalhadores autônomos. Inclusive, a Rappi é registrada no Brasil no Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) como uma empresa de “agenciamento e intermediação de serviços e negócios em geral”. “Até aí tentam se distanciar dos trabalhadores e disfarçar seu papel de empregador”, explica Neiva.

Os auditores apontam ainda outra ilegalidade cometida pela empresa colombiana que atua em nove países: a venda casada. Para receber pelos serviços, o entregador é obrigado a criar uma conta em outro aplicativo, o SmartMEI. Não é permitido pelo app receber a cada frete. Esse dinheiro não pode ser sacado e só pode ser transferido para uma conta bancária uma vez ao mês de forma gratuita. “A Rappi transfere todos os riscos para o entregador e ainda impõem um desconto no salário dos trabalhadores com essa terceirização da remuneração”, denuncia Rafael Neiva.

Há somente duas opções de remuneração para o entregador autônomo da Rappi. Receber apenas uma vez ao mês, na primeira quarta feira do mês seguinte a uma entrega ou receber semanalmente pagando uma taxa de 1,99% do total mais R$7,00 pela transferência eletrônica disponível.

Rafael Augusto Vido afirma que esse pagamento indireto e taxado é um “sistema predatório”. Para ele, a ponte “desnecessariamente burocrática” entre a Rappi e SmartMEI explora a vulnerabilidade financeira e social dos entregadores.

A SmartMEI foi procurada por e-mail e por meio de seus advogados; sem resposta.

“A gente não sabe o dia de amanhã”, conta um entregador sobre o porquê de optar pelo pagamento semanal (taxado) para a Repórter Brasil. “Mês passado tive um acidente. Minha moto foi pra oficina e eu fui pra ambulância. A gente tem de ter algum dinheiro no bolso”, afirmou o entregador, que não quis se identificar.

Punições e falsa autonomia

Rafael Neiva e seu colega Rafael Augusto Vido entrevistaram mais de 100 entregadores com o propósito de entender a relação trabalhista que está em jogo. Preocupados com represálias do aplicativo, apenas 21 deles concordaram em se identificar. Apesar de não retratar o número real de entregadores da Rappi, já esta tramitando a imposição de multas trabalhistas à empresa pela falta de registro na carteira desses trabalhadores.

Sentados numa mureta estreita na Avenida Paulista, em São Paulo, um grupo de entregadores esperava corridas. Suas motos, mobiletes e bicicletas encostadas na calçada. Alguns deles levaram o “gancho” e usavam contas registradas nos nomes de familiares e amigos para continuar trabalhando.

“Não paramos: viramos o dia. No mínimo 10 horas diárias para ganhar alguma coisa” explicou um entregador à reportagem. “Quem mais tem filho aí?” ele joga a pergunta na roda de entregadores cabisbaixos checando seus celulares – três dos seus colegas levantam a mão. “Olhe só. Um monte de gente aqui trabalhando para tentar trazer alguma renda para casa”, completa.

Fonte: Repórter Brasil

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