Por Gabriela Ferrari Toquetti
É quase impossível, para a maioria das pessoas, imaginar uma cozinha sem geladeira ou fogão atualmente. Mas há menos de cem anos, essa era a realidade de muitas casas brasileiras. Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou o início da modernização dos lares paulistanos por meio da introdução de eletrodomésticos nas cozinhas entre os anos 1920 e 1960, e constatou que esse processo intensificou as desigualdades de raça, gênero e classe social.
Laura Stocco Felicio, historiadora e educadora no Museu do Ipiranga da USP, percebeu que os discursos que as empresas de eletrodomésticos vendiam eram, acima de tudo, uma ideia de modernidade baseada no modelo americano. Para fazer sua dissertação de mestrado, a pesquisadora foi aos Estados Unidos, onde vasculhou acervos de anúncios publicitários e manuais domésticos. Ela notou que as mulheres eram o principal público-alvo da publicidade desses produtos, pois eles seriam utilizados pelas donas de casa. No entanto, os vendedores porta a porta se dirigiam sobretudo aos homens, que eram os responsáveis pelo orçamento da família.
Desigualdades entre mulheres
Embora as propagandas brasileiras enaltecessem a modernização americana, um fator central fez com que a introdução dos eletrodomésticos no Brasil fosse diferente da que ocorreu lá fora: a presença acentuada de empregadas domésticas, que em sua maioria eram mulheres negras, em lares de classe média e alta. Elas continuaram atuando dentro das casas depois da abolição da escravidão. Nos Estados Unidos, isso não ocorreu porque, após a Guerra de Secessão, nos anos 1860, a industrialização aconteceu de forma acelerada, aumentando a demanda de mão de obra nas fábricas e levando as mulheres negras a saírem das casas em que trabalhavam.
O Brasil, por outro lado, tinha mão de obra excedente. Os lares mais abastados passaram a contratar diversos tipos de profissionais, como jardineiros, cozinheiras e lavadeiras.
Laura Felicio opina que a presença das empregadas domésticas atrasou a inserção de eletrodomésticos nas cozinhas de São Paulo, pois para as famílias ricas era preferível aproveitar a mão de obra dessas mulheres a gastar dinheiro com aparelhos caros. Já nos Estados Unidos, a modernização foi mais rápida porque eram as mulheres brancas, donas de casa, que faziam os trabalhos domésticos. Dessa forma, a venda de eletrodomésticos no território americano se popularizou porque adquirir esses produtos representava status social.
Classe social
O primeiro equipamento elétrico de grande porte a ser comercializado em São Paulo foi o refrigerador, em 1929. A venda desse aparelho se intensificou a partir da década de 1930, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, mesmo na década de 1960, quando São Paulo já havia evoluído economicamente de forma similar aos países desenvolvidos, apenas uma pequena parcela da população tinha geladeira – mais especificamente, só 22,61% dos domicílios, de acordo com o IBGE. Isso se deve ao alto custo do aparelho, que era comprado apenas pelas famílias de classe alta. “O consumo é um dos pilares da cozinha moderna”, afirma Laura.
Os anúncios publicitários ostentavam uma ideia de modernidade, mas o progresso no Brasil foi mais lento. “A ideia de modernização é contraditória com o que de fato acontecia aqui na época”, destaca a pesquisadora. A inserção dos eletrodomésticos nas cozinhas brasileiras não apenas foi mais demorada do que nos Estados Unidos e em outros países, como também evidenciou a disparidade entre as classes sociais e entre mulheres brancas e negras.
A dissertação de mestrado Modernidade e tradição: a introdução dos eletrodomésticos nas cozinhas da cidade de São Paulo (1920-1960), escrita por Laura Stocco Felicio e orientada pela professora Vânia Carneiro de Carvalho, foi defendida em junho de 2023 no âmbito do programa de Pós-Graduação em História Social na FFLCH.
Fonte: Jornal da USP
Texto: Gabriela Ferrari Toquetti, assessora de Comunicação da FFLCH/USP
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