PUBLICADO EM 25 de jun de 2020
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A crítica ao marxismo e a resistência à mudança

Em larga medida a ideia de que a história não é uma ciência e é alheia à ação prática dos homens volta-se principalmente contra o marxismo.

A história como ciência, escreveu Carr, é um estudo de causas. Ele criticou Karl Popper por sua reação contra o marxismo, que transformou num dos seus principais alvos nos livros “Lógica da Pesquisa Científica” e “A miséria do historicismo” (ambos da década de 1930). Popper viu como uma limitação, nos pensamentos de Hegel e Marx o que chamou de historicismo, como caracterizou a filosofia da história de ambos, e os considerou deterministas (Carr: 1982).

O chamado historicismo é uma forma de pensar partilhada por aqueles que acreditam haver objetivos prévios ou causas finais (a chamada teleologia, isto é, o estudo dos fins) que a história persegue – objetivos ou causas finais atribuídos a ela por alguma potência exterior (deus, destino, natureza, não importa o nome que tenha) e que a guiaria, à margem da experiência humana concreta.

Essa crença distorce o esforço pela compreensão do sentido do desenvolvimento histórico e das tendências latentes no movimento da sociedade, cujo desenrolar depende fundamentalmente da ação prática dos homens.

Mesmo assim quase sempre os historicistas frequentam o campo daqueles que procuram compreender as leis do desenvolvimento para poder intervir nele.

Sérgio Buarque de Holanda, que foi um democrata, definiu os adversários do historicismo como anti-democratas. Ele criticou autores conservadores, entre eles Martin Heidegger, lembrando que a “linguagem de alguns desses autores aparenta-se, não raro, à dos teóricos do nacional socialismo”, do nazismo, regime que a maioria deles apoiou (Holanda: 1979).

O alvo da crítica de Popper são as tentativas de buscar no conhecimento da história fundamentos para mudar a vida social. Acusa os historicistas de se voltarem “não apenas para trás, mas também para a frente, para o futuro”, para “o estudo das forças atuantes e principalmente das leis do desenvolvimento social”, em busca de leis “universalmente válidas” que sejam “leis de transformação, de processos, de desenvolvimentos”. Buscam uma “ideia geral das grandes propensões, ao longo de cujas linhas as estruturas sociais sofrem mudanças”. Acusa-os de querer “compreender as causas desse processo, a forma de operar das forças responsáveis pela transformação. Devem tentar formular hipóteses acerca das propensões gerais, subjacentes ao desenvolvimento social, e isso para que os homens, deduzindo profecias a partir dessas leis, possam ajustar-se a alterações que se avizinhem” (Popper: 1991). Mais clareza contra qualquer mudança histórica e social é impossível! Popper conclui investindo contra a tese de Marx segundo a qual “os filósofos interpretaram o mundo; agora cabe transformá-lo” (Marx: 1976). Inverte e limita o significado desta frase: “o historicista não pode mais do que interpretar o desenvolvimento social e favorecê-lo de múltiplas maneiras; ninguém pode alterá-lo” (Popper: 1991).

Em larga medida a ideia de que a história não é uma ciência e é alheia à ação prática dos homens volta-se principalmente contra o marxismo. Se a história não é ciência, se está mais para a narrativa e a literatura do que para o conhecimento objetivo, não tem sentido esperar que ela, como ciência, fundamente qualquer tentativa de intervenção humana para alterar seu curso e mudar a sociedade. Esta é a principal consequência das visões da história examinadas até aqui.

Consideração não científica que está presente, por exemplo, mesmo na obra de Fernand Braudel, um ícone da historiografia do século 20. Em uma entrevista de 1985 o mestre da Ecole des Annales acusou Marx de se equivocar “mais do que se acredita quando afirmou que os homens fazem a História: seria melhor dizer que a História faz os homens. Eles a padecem” (Braudel: 1985). “O social, a sociedade, podem ser mudados pela vontade política?” – perguntou, dizendo que há “uma grande diferença entre uma mudança que se faz por si mesma, por um movimento endógeno, pela pressão da realidade, e uma mudança calculada de antemão” uma vez que a “dificuldade, quando se fala do social, é que ele escapa a qualquer definição clara e convincente” (Braudel: 1992).

Braudel empregou uma metáfora que indica os limites da noção de estrutura. Nada pode mudar, diz, já que a sociedade é como “um prédio de vários andares. Mudam os ocupantes, permanecem os andares”. Nas escadas desse prédio ocorre a luta de classes que opõe os trabalhadores (“sindicalistas”), que sobem, aos atuais ocupantes. Braudel pergunta: “Chegarão lá?” E responde: talvez, mas somente a longo prazo pois as “verdadeiras mudanças, as que durarão, jamais se improvisam de um dia para o outro. A história profunda anda em marcha lenta”, afirmou. Podem mudar os ocupantes do “prédio” mas ele próprio, como estrutura metafórica da sociedade, não muda. “O que quer que o futuro nos prometa, encontraremos a permanência da escada, a afirmação da hierarquia, o leque aberto das remunerações” (Braudel: 1992).

Neste texto Braudel reconhece a realidade da luta de classes e a lamenta; faz também a crítica, correta, daqueles que imaginam ser possível moldar a história de acordo com a vontade de um líder, um partido, um governo. Mas se engana quando supõe que a mudança não pode ser feita pela ação coletiva, organizada e consciente dos homens – esta é a contradição, que se manifesta no fazer da história, entre a vontade individual e a ação coletiva. As sociedades são hierarquizadas, ele diz, e “a luta de classes e as mil realidades que nela se integram estão sempre em ação” e não deixam de existir, sendo “fogo debaixo da cinza, nunca extinto”. É um perigo e uma salvaguarda que não existiriam “se a sociedade in aeternum fosse obediente”

José Carlos Ruy é jornalista, é autor de Biografia da Nação – História e Luta de Classes (2018)

 

Referências

(Braudel: 1992).

Braudel, Fernand. Entrevista ao “Jornal da Tarde”, 7 de setembro de 1985.

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