PUBLICADO EM 19 de dez de 2022
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A crise de violência doméstica e sexual nos EUA está ficando pior

Foto: Paulo Carvalho/Agencia Brasília

Por Andrew Wright (People’s World)

De acordo com um estudo recente sobre visitas a departamentos de emergência por agressões sexuais, as ocorrências aumentaram 15 vezes (1,533%) em 2019 com relação a 2006 nos EUA. De acordo com a CNN, o total de visitas a departamentos de emergência aumentou apenas 1,2 vezes no mesmo período. Essas descobertas drasticamente ultrapassam o crescimento em relatórios de forças da lei de violência sexual. Embora relatórios de forças da lei cresceram, eles são meramente uma fração daqueles procurando por tratamento.

Um estudo recentemente publicado, que foi conduzido por pesquisadores na Universidade de Michigan, descobriu que a causa desse aumento é uma combinação de crescimento da população, a ascensão de movimentos por justiça social, e uma mudança no código da Classificação Internacional de Doenças (ou CID). Antes de 2015, a nona revisão do código (CID-9), havia apenas um código para agressão sexual adulta. Contudo, o CID-10, que foi adotado no final de 2015, inclui códigos para agressão sexual suspeita, agressão sexual confirmada, e penetração forçada.

Ele também descobriu que as admissões hospitalares estavam em declínio. Aproximadamente 95% dos sobreviventes são exonerados do departamento sem admissão hospitalar. Embora ainda não esteja claro o porquê disso, é tanto mais preocupante, considerando a fração daqueles que procuram cuidado e tratamento depois de uma agressão. Um estudo publicado em 2012 descobriu que apenas 21% das vítimas de estupro procurariam cuidados mais tarde. Da mesma forma, apenas 40% das agressões e estupros foram reportados às forças da lei em 2017, o que caiu para 25% em 2018. Incidentes de estupro também aumentaram 2,9% anualmente.

Se o estudo da Universidade de Michigan está correto em concluir que as taxas têm aumentado devido, em parte, a uma consciência mais ampla sobre agressões sexuais por profissionais de saúde e sobreviventes de modo idêntico, e ainda aqueles vindo adiante, procurando cuidado, ou reportando às forças da lei eles são apenas uma fração do verdadeiro número de casos, então há uma questão muito mais ampla à mão – a qual uma consciência sozinha não pode enfrentar.

Evitando a lei

Considerando casos de alto perfil como o de Brock Turner – o estudante de Stanford que foi pego estuprando Channel Miller, e depois solto da prisão depois de servir apenas três meses de sua sentença de seis meses – e a humilhação antecipada de ser duvidado ou ter o próprio comportamento questionado depois de uma agressão, se admira que alguém vá adiante afinal.

Em um lado da moeda, nós temos esse reconhecimento formal dos crimes, mesmo assim nós não os levamos a sério. Em seu livro “Talking to Strangers”, Malcolm Gladwell problematizou o papel do álcool desempenhado no caso de estupro de Brock Turner acima do comportamento de Turner.

O ex-técnico de ginastica olímpica e estuprador convicto Larry Nassar foi sentenciado de 40 a 175 anos em prisão federal só por acusações de agressão sexual; contudo, como com Jerry Sandusky antes dele, houve supressões institucionais dos crimes. Das universidades e patrões que os empregaram ao FBI, ambos os casos estavam cheios de exemplos de como silenciar aqueles que viessem adiante.

Do outro lado da moeda, temos essa lacuna entre a lei e o crime, onde, efetivamente, os atos de agressão e estupro são ilegais, mas invocar a lei – como acusar e responsabilizar o estuprador – é mantido a uma distância impossível do sobrevivente. Em muitos casos, as forças da lei tendem a questionar a vítima em seu comportamento ao invés do perpetrador, assim evitando de a lei ser usada. Slavoj Zizek se refere a esse evitamento como a “proibição da proibição.”

Prevalência de violência doméstica e sexual e ideologias

Com maiores incidentes de agressão sexual ano após ano, nós somos levados a imaginar se a lei – ou qualquer instituição – vai acompanhar.

A Dr. M. Colleen McDaniel, uma especialista e pesquisadora em prevenção de violência doméstica e sexual, focou muito de seu trabalho na área de prevenção baseada em habilidades. McDaniel falou ao People’s World sobre prevenção baseada em habilidades, a prevalência de violência doméstica e sexual hoje, e o papel que as ideologias desempenham nessa área.

“Em formas tradicionais de prevenção, nós tendemos a focar no negativo. Nós tendemos a dizer coisas como ‘não faça isso, não aja dessas maneiras… apenas peça por consentimento e você está pronto para ir.’ Mas nós não focamos nas coisas boas que eles deveriam fazer, e o que esses comportamentos saudáveis são,” McDaniel explicou.

“Não há exemplos na mídia para isso; não há músicas populares ou filmes sobre como se comunicar adequadamente. A prevenção baseada em habilidades é sobre dar as pessoas as ferramentas e habilidades tangíveis que elas precisam para criar sexualidade saudável.”

Para McDaniel, e outros especialistas como ela, essas habilidades são uma mudança muito necessária de ritmo para como nós pensamos sobre relacionamentos interpessoais. Elas também servem uma demanda que nós ou não estamos totalmente conscientes, ou sobre a qual nós simplesmente não falamos.

“Nós temos essa ideia em psicologia chamada ‘roteiros sexuais’ que nós seguimos. No ‘roteiro’ heterossexual tradicional, o homem apenas deveria ir em frente, a mulher joga tímida, e então ele deveria convence-la a continuar,” McDaniel disse.

“A prevenção baseada em habilidades significa considerar o que falar sobre consentimento parece dentro do contexto de um encontro sexual, como você fala e aprende sobre as coisas que você gosta, etc.”

“Para relacionamentos saudáveis, isso é sobre comunicar e aprender a regulação emocional, adicionou McDaniel. “Se você não pode controlar sua raiva, se você não pode respirar fundo e sair da conversa, você provavelmente vai se envolver nessas formas extremas de autoexpressão, que podem resultar em um comportamento abusivo.”

Realmente, o problema dificilmente é individual. Fatores externos, como o clima político e visões comuns sobre violência, desempenham papéis muito importantes, também.

Quando considerando o impacto desses fatores nas pessoas, McDaniel considera olhar para o papel da comunidade na vida de uma pessoa: “O que são as normas sociais na sua comunidade, como as pessoas respondem à violência – sua comunidade diz ‘violência não acontece aqui’, ou eles estão conscientes que isso é tão prevalente ali como é em outro lugar do mundo?”

“Então você tem o nível social. Se há uma política, digamos em direitos de armas – a posse de armas prevê letalidade em violência doméstica – nós podemos olhar diretamente para como as vítimas que nós estamos trabalhando vão ser impactadas. Nós também podemos olhar para qual narrativa isso dá para as pessoas que estão em risco de perpetrar,” adiciona McDaniel. “Isso é menos sobre com qual partido as pessoas se alinham, e mais sobre as normas que estão sendo criadas.”

Se no nível institucional ou no pessoal, essas normas e ideologias dominantes precisam ser desafiadas para nós levarmos a violência mais seriamente. De acordo com McDaniel, “Uma visão menos construtivista de gênero realmente enfatiza poder e dominância, e isso é, de qualquer forma, o que leva à violência. Pode ser gênero, mas pode ser também status socioeconômico, pode ser habilidade, pode ser status de transição. É diferente porque os fatores de risco que nós precisamos olhar são diferentes.”

Considerando a questão de poder nos relacionamentos, um exemplo que se destaca é a dependência financeira. A dependência financeira tende a ser o resultado do valor de mercado de alguém, baseado em fatores raciais, de gênero e de classe – como os tipos de empregos e salários disponíveis para alguém – de um lado, e se a independência financeira é mesmo disponível (ideologicamente) para aquela pessoa sobre a outra.

Esse último ponto pode ser ilustrado em exemplos de papéis de gênero, onde se espera de mulheres de fazer todo o trabalho de casa e a criação dos filhos, e assim não devendo ter empregos; ou em práticas de habitação racistas como redlining ou discriminação de empréstimos hipotecários; ou em lugares de férias onde o custo de vida é incrivelmente alto, mas a maioria dos trabalhadores estão em serviço e indústrias de hospitalidade.

Esses exemplos são certamente estruturais, mas também são praticados – e ficam inquestionados – no nível micro por indivíduos e negócios menores, menos porque eles se beneficiam dessas práticas e mais por causa de uma necessidade percebida ou autoridade para eles.

Não deve ser surpresa que ocorrências de violência sexual são mais prováveis de acontecer com pessoas de “menor valor” e marginalizadas nesse país. De acordo com o estudo da Universidade de Michigan sobre agressão sexual, a maioria das visitas às salas de emergência durante o período estudado foram feitas por sobreviventes jovens, mulheres e de baixa renda. Sem mencionar que mulheres nativas americanas e negras tendem a ser mais prováveis de ter a experiência de estupro.

Quando considerando a ascensão da violência politicamente carregada contra as mulheres, assim como pessoas trans e queer, vindo de grupos como celibatários involuntários – ou “incels” – e os Proud Boys, os papéis de forças da lei indiferentes e sistemas de saúde iniciantes são todos mais preocupantes. Contudo, nós não estamos simplesmente imaginando o que pode ser feito. Parte da solução, de acordo com McDaniel é educação.

“Em primeiro lugar, nós temos que ter conversas sobre igualdade de gênero bem antes da idade de 18 anos, e isso precisa acontecer ao longo da vida. Ela precisa vir de modelos que são do mesmo gênero, principalmente homens,” argumentou McDaniel. “Quando isso acontece, você começa a desfazer as normas sociais, você ganha aquela autoeficácia que você pode dizer, ‘eu posso me levantar quando vejo violência acontecendo.’”

A outra parte da resposta situa essa educação, assim como a questão geral da violência, estritamente dentro do político, exigindo defesa e política. “Nós precisamos de pessoas nas ruas, nós precisamos disso para obter o impulso indo, mas nós precisamos de política sobre todos esses. É necessário muito poder para fazer política, mas, em última análise, você precisa trabalhar dentro do sistema que você tem para espelhar o que as pessoas estão exigindo.”

Andrew Wright é um ensaísta e ativista baseado em Detroit.

Fonte: People´s World

Tradução: Luciana Cristina Ruy

 

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