PUBLICADO EM 16 de jun de 2020
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Uma questão de raça e de classe também; opinião de Rana Foroohar

Os protestos atuais têm foco em alguns problemas raciais específicos, como a violência policial contra negros, mas também há apelos mais amplos por justiça econômica, incluindo discussões sobre salários mais justos, condições mais seguras para os trabalhadores, desigualdade e dívidas estudantis.

UMA NAÇÃO DE MILHÕES: O país viu os maiores protestos pelos direitos civis em gerações. Na ponte Burnside, em Portland, Oregon, cerca de 15.000 pessoas ficaram deitadas, com as mãos atrás das costas, por nove minutos para protestar contra a brutalidade policial e a morte de Floyd/Foto: Andrew Wallner

Por Rana Foroohar
A morte de George Floyd e as marchas do “Vidas Negras Importam” que vieram em sua esteira dominaram as manchetes pelo mundo. No longo prazo, porém, o impacto político desses eventos pode vir a ser bem mais amplo do que se imagina – esses protestos por justiça racial também têm potencial para semear um novo movimento trabalhista nos Estados Unidos.

Raça e classe estão inexoravelmente ligadas nos EUA. Centenas de anos de opressão aos negros resultaram em patamares mais altos de pobreza e desemprego, assim como em menos chances de acesso ao ensino. Em 2016, o patrimônio líquido de uma família branca era quase dez vezes o de uma família negra, segundo estudo da Brookings Institution. Isso se deve, em parte, ao fato de as famílias negras não se beneficiarem tanto de riquezas herdadas quanto as famílias brancas.
Quase 20% das famílias negras têm dívidas superiores a seus ativos. Quando têm condições de acumular riqueza, isso se dá mais na forma de propriedades do que de ações – 60% das famílias brancas têm ações em comparação a 30% das famílias negras. Isso significa que as famílias negras não se beneficiam tanto das recentes medidas emergenciais do Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) que têm impulsionado os mercados acionários.

Desde a adoção de medidas de confinamento contra a covid-19, trabalhadores de minorias têm se saído pior do que trabalhadores brancos em quase todos os indicadores, desde a maior proporção de fechamento de empresas pertencentes a negros até métricas sobre pobreza, assistência médica e acesso a alimentos. O único motivo para o desemprego em massa provocado pela pandemia não ter criado uma diferença ainda maior entre os americanos negros (cujo índice de desemprego em maio era de 16,8%) e os brancos (de 12,4%) é que as minorias estão mais presentes em atividades essenciais como as de saúde e transporte público.
A divisão econômica é tão gritante quanto o era na época do movimento dos direitos civis dos anos 60, a ocasião anterior em que o país viveu esse tipo de inquietação social. Daquela vez, contudo, os manifestantes eram principalmente negros e os organizadores eram líderes de direitos civis de comunidades negras. Agora, os protestos do “Vidas Negras Importam” têm diversidade muito maior. Eles se dão em algumas comunidades predominantemente brancas, como Boise, Idaho e Colorado, da mesma forma que em cidades multiculturais, como Nova York.

Os protestos atuais têm foco em alguns problemas raciais específicos, como a violência policial contra negros, mas também há apelos mais amplos por justiça econômica, incluindo discussões sobre salários mais justos, condições mais seguras para os trabalhadores, desigualdade e dívidas estudantis.

William Spriggs, economista-chefe da AFL-CIO, maior central sindical dos EUA, diz que um dos motivos para a comunidade negra em particular pressionar por acesso gratuito a universidades é que os americanos negros pobres têm inclinação muito maior a tentar conseguir um diploma universitário do que os brancos pobres, já que essa é uma das poucas formas de reduzir a divisão de raça e de classe. Tanto antes quanto depois da covid-19, o índice de desemprego dos brancos que concluíram o ensino médio se manteve mais ou menos o mesmo que o da comunidade negra como um todo.

“[Os manifestantes do ] ‘Vidas Negras Importam’ estão levantando bandeiras que são de importância específica para a comunidade negra”, diz Spriggs, “mas eles estão ressoando em toda uma geração de jovens americanos que se sente prensada por questões como as despesas universitárias”.

Parte das reivindicações econômicas do movimento (como compensações pela escravidão) é específica da comunidade negra. Mas outras, como o aumento nos gastos governamentais em educação e redes de segurança social, refletem o fato de que a insegurança econômica enfrentada ao longo décadas e décadas pela comunidade negra passou a impactar um grupo cada vez mais amplo nos últimos 20 anos.
Essa sobreposição pode se ampliar ainda mais na era pós-covid-19. Um estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgado em junho mostra que nos EUA, assim como na maioria das economias desenvolvidas, os trabalhadores de salários mais baixos e os jovens serão os mais afetados pelo desemprego resultante da pandemia. Um documento de trabalho do Gabinete Nacional de Análises Econômicas dos EUA projeta que 42% dos postos de trabalho perdidos no país durante a crise da covid-19 não voltarão a existir.

Como escreveu o economista David Rosenberg na semana passada, não deveríamos estar prevendo se teremos uma recuperação em forma de “V” (rápida), “U” (gradual) ou “L” (longa estagnação após uma forte retração), mas uma recuperação em “F”, de “frugalidade”. Tanto consumidores quanto empresas deverão poupar mais, além de passar por outras mudanças de longo prazo em seus padrões de gastos. “Sem demanda, não há renovação no ciclo de contratações que empurra o desemprego de volta para baixo”, ressalta Rosenberg. E não veremos uma alta demanda tão cedo, como indicou recentemente o Fed.

Isso aumenta as chances de uma grande vitória dos democratas nas eleições em novembro para a Casa Branca e o Congresso, algo que nas últimas semanas investidores e pesquisas de opinião pública passaram a julgar ainda mais provável, depois dos erros de Donald Trump na forma como lidou com a pandemia e os protestos.

Caso isso aconteça, os protestos do “Vidas Negras Importam” poderiam prenunciar uma nova era, não apenas de justiça racial, mas também de inclusão econômica. O Senado dos EUA pode aprovar o fim das leis do “direito a trabalhar”, que dificultam a sindicalização dos trabalhadores. Pode haver também um salário mínimo nacional mais alto e impostos sobre as empresas. Tudo isso ajudaria a enfrentar tanto os problemas de classe quanto os de raça – assim como as persistentes ligações entre ambos.

Rana Foroohar é editora especial do Financial Times em Nova York.
(Tradução de Sabino Ahumada)

Fonte: Valor Econômico

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