PUBLICADO EM 04 de maio de 2020
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Política anticapitalista no tempo do COVID-19; por David Harvey

Como o geógrafo marxista David Harvey argumenta, quarenta anos de neoliberalismo deixou o povo totalmente exposto e mal preparado para enfrentar uma crise de saúde pública na escala do Coronavírus.

David Harvey em palestra em Baltimore, Maryland, EUA, em 27 de março de 2009. Foto Daniel Lobo.

Por David Harvey

Quando tentando interpretar, compreender e analisar o fluxo diário de notícias, eu tendo a localizar o que está acontecendo contra o fundo de dois modelos distintos, mas que se cruzam, de como o capitalismo funciona. O primeiro é um mapeamento das contradições internas da circulação e acumulação de capital, quando o valor monetário flui na procura de lucro através dos diferentes “momentos” (como Marx os chama) de produção, realização (consumo), distribuição e reinvestimento. Esse é um modelo da economia capitalista como um espiral de expansão e crescimento infinitos. Fica bem complicado quando isso é elaborado através, por exemplo, das lentes das rivalidades geopolíticas, desenvolvimentos geográficos desiguais instituições financeiras, políticas estatais, reconfigurações tecnológicas e a teia em constante mudança das divisões trabalhistas e das relações sociais.

Eu imagino esse modelo como embutido, contudo, em um contexto mais amplo de reprodução social (em famílias e comunidades), em uma relação metabólica com a natureza contínua e em constante evolução (incluindo a “segunda natureza” da urbanização e o ambiente construído) e todas as maneiras de formações culturais, científicas (baseadas no conhecimento), religiosas e sociais contingentes que as populações humanas tipicamente criaram através do espaço e tempo. Esses últimos “momentos” incorporam a ativa expressão das carências, necessidades e desejos humanos, e desejo de conhecimento e significado, e a busca em evolução da realização, contra o fundo de mudança de arranjos institucionais, contestações políticas, confrontações ideológicas, perdas, derrotas, frustrações, e alienações, tudo funcionando em um mundo de marcada diversidade geográfica, cultural, social e política. Esse segundo modelo constitui, por assim dizer, meu entendimento de trabalho de capitalismo global como uma formação social distinta, enquanto que o primeiro é sobre as contradições dentro do motor econômico que alimenta essa formação social, ao longo de certos caminhos de sua evolução histórica e geográfica.

Em espiral

Quando eu li pela primeira vez, em 26 de janeiro de 2020, que o Coronavírus estava ganhando terreno na China, eu imediatamente pensei nas repercussões para a dinâmica global de acumulação de capital. Eu sabia dos meus estudos do modelo econômico, que bloqueios e interrupções na continuidade do fluxo de capital resultariam em desvalorizações, e se as desvalorizações se tornassem generalizadas e profundas isso sinalizaria o início da crise.

Eu também estava bem ciente que a China é a segunda maior economia do mundo, e que ela tinha efetivamente resgatado o capitalismo global no rescaldo de 2007-8, então qualquer golpe na economia da China era obrigado a ter sérias consequências para uma economia global, que estava de qualquer forma já em mau estado. O modelo de acumulação de capital existente estava, parecia para mim, já com muitos problemas.

Movimentos de protesto estavam acontecendo em quase todos os lugares (de Santiago a Beirute), muitos dos quais focados no fato de que o modelo econômico dominante não estava trabalhando bem para a massa da população. Esse modelo neoliberal está cada vez mais descansando em capital fictício e uma vasta expansão na oferta de dinheiro e criação de dívidas. Ele já está enfrentando o problema de insuficiente demanda efetiva para perceber os valores que o capital é capaz de produzir. Então como pode o modelo econômico dominante, com sua legitimidade flácida e saúde delicada, absorver e sobreviver aos inevitáveis impactos do que podia se tornar uma pandemia? A resposta dependia pesadamente em quanto tempo a interrupção podia durar e se espalhar, pois como Marx apontou, a desvalorização não ocorre porque as mercadorias não podem ser vendidas, mas porque elas não podem ser vendidas em tempo.

Eu recusei muito da ideia de “natureza” como fora e separada da cultura, economia e vida diária. Eu pego uma visão mais dialética e relacional da relação metabólica com a natureza. O capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas faz isso em um contexto de consequências não intencionais (como as mudanças climáticas) e contra o fundo de forças evolucionárias autônomas e independentes, que estão perpetuamente remodelando condições ambientais. Não há, desse ponto de vista, uma coisa como um desastre verdadeiramente natural. Para ter certeza, os vírus mudam o tempo todo. Mas as circunstâncias nas quais a mutação se torna ameaçadora à vida dependem de ações humanas.

Há dois aspectos relevantes para isso.

Primeiro, condições ambientais favoráveis aumentam a probabilidade de mutações vigorosas. Por exemplo, é plausível esperar que sistemas de suprimento de alimentos intensivos ou instáveis nos subtrópicos úmidos podem contribuir para isso. Tais sistemas existem em muitos lugares, incluindo a China ao sul de Yangtse e o Sudeste da Ásia.

Em segundo lugar, as condições que favorecem a rápida transmissão através dos organismos hospedeiros variam grandemente. Populações humanas de alta densidade pareceriam um fácil alvo hospedeiro. É bem conhecido que a epidemia de sarampo, por exemplo, apenas floresceu em centros populacionais urbanos maiores, mas, rapidamente morreu em regiões escassamente povoadas. Como os seres humanos interagem uns com os outros, se movimentam, se disciplinam, ou se esquecem de lavar suas mãos afeta como se transmite a doença.

Recentemente, a SARS, as gripes suína e aviária parecem ter saído da China ou Sudeste da Ásia. A China sofreu fortemente também da gripe suína no ano passado, implicando o abate em massa de porcos e aumento dos preços da carne de porco. Eu não digo isso tudo para culpar a China. Há muitos outros lugares onde riscos ambientais para mutação e difusão de vírus são altos. A Gripe Espanhola de 1918 pode ter vindo do Kansas, e a África pode ter incubado o HIV/AIDS, e certamente iniciou no Nilo Ocidental o Ebola, enquanto a dengue parece florescer na América Latina. Mas os impactos econômicos e demográficos do espalhamento do vírus dependem de rachaduras e vulnerabilidades preexistentes no modelo econômico hegemônico.

Não é indevidamente surpreendente que a COVID-19 foi inicialmente encontrada em Wuhan (embora não se saiba onde tenha se originado). Claramente os efeitos locais seriam substanciais e, dado que este era um sério centro de produção, provavelmente haveria repercussões econômicas globais (embora eu não tivesse ideia da magnitude). A grande questão era como o contágio e difusão podia ocorrer ou quanto tempo duraria (até que se pudesse encontrar uma vacina). A experiência anterior tinha mostrado que umas das desvantagens da globalização crescente é quão impossível parar uma rápida difusão internacional de novas doenças. Nós vivemos em um mundo altamente conectado, onde quase todos viajam. As redes humanas para potencial difusão são vastas e abertas. O perigo (econômico e demográfico) era que a perturbação duraria um ano ou mais.

Enquanto houve uma recessão imediata nos mercados de ações globais, quando as primeiras notícias estouraram, isso foi surpreendentemente seguido por um mês ou mais quando os mercados atingiram novos recordes. As notícias pareciam indicar os negócios normais em todos os lugares, exceto na China. A crença parecia ser que nós estávamos indo para experimentar uma reprise da SARS, que acabou sendo contida rapidamente e de baixo impacto global, mesmo tendo uma alta taxa de mortalidade, e criou um desnecessário (em retrospecto) pânico nos mercados financeiros.

Quando a COVID-19 apareceu, uma reação dominante era descreve-la como uma repetição da SARS, tornando o pânico redundante. O fato de que a epidemia se alastrou na China, que rapidamente e implacavelmente se moveu para conter seu impacto, também deixou o resto do mundo erroneamente tratar o problema como algo acontecendo “lá”, e assim fora da vista e da mente (acompanhado por alguns sinais preocupantes de xenofobia anti-chinesa, em certas partes do mundo). O pico que o vírus colocou na, caso contrário, triunfante história de crescimento da China, foi até recebido com alegria em certos círculos da administração de Trump.

Contudo, histórias de interrupções em cadeias de produção global que passavam através de Wuhan começaram a circular. Essas foram largamente ignoradas, ou tratadas como problemas para linhas de produtos ou corporações específicas (como a Apple). As desvalorizações eram locais e particulares, e não sistêmicas. Os sinais de queda da demanda do consumidor também foram minimizados, mesmo embora essas corporações, como McDonald’s e Starbucks, que tinham grandes operações dentro do mercado doméstico chinês, tiveram que fechar suas portas lá por um tempo. A sobreposição do Ano Novo Chinês com o surto do vírus mascarou impactos ao longo de janeiro. A complacência dessa resposta foi seriamente colocada em lugar errado.

Notícias iniciais do espalhamento internacional do vírus eram ocasionais e episódicas, com um sério surto na Coreia do Sul e uns poucos outros pontos como o Irã. Foi o surto italiano que provocou a primeira reação violenta. A queda no mercado de ações começando no meio de fevereiro oscilou um pouco, mas pelo meio de março levou a uma desvalorização em rede de quase 30% nos mercados ao redor do mundo. A escalada exponencial da infecção provocou uma gama de respostas frequentemente incoerentes e às vezes causadoras de pânico.

O Presidente Trump realizou uma imitação do Rei Canute (Nota: rei dinamarquês que queria em vão impedir a maré de subir), em face de uma potencial maré crescente de doenças e mortes. Algumas das respostas estão estranhas. Deixar a Reserva Federal taxas de juros mais baixas em face de um vírus pareceu estranho, mesmo quando foi reconhecido que o movimento foi feito para aliviar impactos no mercado, ao invés de parar o progresso do vírus.

Autoridades públicas e sistemas de saúde foram em quase todos os lugares pegos não equipados. 40 anos de neoliberalismo através das Américas do Norte e do Sul e Europa deixaram o povo totalmente exposto e mal preparado para uma crise de saúde pública desse tipo, mesmo embora sustos anteriores de SARS e Ebola forneceram abundantes avisos, assim como lições convincentes do que precisaria ser feito. Em muitas partes do suposto mundo “civilizado”, governos locais e autoridades de estado regionais, que invariavelmente formam a linha de frente da defesa em saúde pública e emergências de segurança desse tipo, foram privados de financiamento graças a uma política de austeridade feita para cortes de impostos de fundos e subsídios para as corporações e os ricos.

As grandes farmacêuticas corporatistas têm pouco ou nenhum interesse em pesquisas não remuneradas sobre doenças infecciosas (tais como todas as classes de Coronavírus que são bem conhecidas desde os anos de 1960). As grandes farmacêuticas raramente investem em prevenção. Elas têm pouco interesse em investir em preparação para uma crise de saúde pública. Elas amam projetar curas. Quanto mais doentes nós estamos, mais elas ganham. A prevenção não contribui para os valores dos acionistas. O modelo de negócios aplicado à prestação de saúde pública eliminou a capacidade excedente de enfrentamento que seria necessária em uma emergência.

A prevenção nem era um campo suficientemente atraente para trabalhar para garantir parcerias público-privadas. O Presidente Trump tinha cortado o orçamento da Direção Geral da Saúde e dissolvido o grupo de trabalho em pandemias do Conselho Nacional de Segurança, no mesmo espírito como ele cortou todo o financiamento em pesquisa, incluindo sobre mudanças climáticas. Se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico sobre isso, eu concluiria que a COVID-19 é a vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus tratos brutos e abusivos, nas mãos de um extrativismo neoliberal violento e não regulamentado.

É talvez sintomático que os países menos neoliberais, China e Coreia do Sul, Taiwan e Singapura, até agora passaram pela pandemia em melhor forma que a Itália, embora o Irã apoiará esse argumento como um princípio universal. Enquanto havia muitas evidências de que a China lidou com a SARS bastante mal com muita dissimulação inicial e negação, desta vez o Presidente Xi rapidamente se moveu para exigir transparência tanto em reportar, como em testar, como fez a Coreia do Sul.

Mesmo assim, um tempo precioso foi perdido na China (apenas poucos dias fazem toda a diferença). O que foi notável na China, contudo, foi o confinamento da epidemia para a província de Hubei, com Wuhan como seu centro. A epidemia não se moveu para Beijing ou para o Oeste, ou ainda mais ao Sul. As medidas tomadas para confinar o vírus geograficamente foram draconianas. Elas seriam quase impossíveis de replicar em outro lugar, por razões políticas, econômicas e culturais. Relatórios que saem da China sugerem que os tratamentos e as políticas foram tudo menos cuidadosos. Além disso, China e Singapura implantaram seus poderes de vigilância pessoal para níveis que foram invasivos e autoritários.

Mas parece que eles foram extremamente efetivos em agregar, embora as ações contrárias foram acionadas poucos dias antes, modelos sugerem que muitas mortes podiam ter sido evitadas. Essa é uma informação importante: em qualquer processo de crescimento exponencial há um ponto de inflexão no qual a massa crescente fica totalmente fora de controle (note aqui, mais uma vez, a significância da massa em relação à taxa). O fato de que Trump perdeu tempo por tantas semanas ainda pode custar caro em vidas humanas.

Os efeitos econômicos estão agora em espiral fora de controle tanto na China quanto além. As interrupções trabalhando nas cadeias de valor de corporações e certos setores acabaram sendo mais sistêmicas e substanciais do que originalmente pensado. O efeito a longo prazo pode ser encurtar ou diversificar as redes de fornecimento, enquanto se move em direção a formas de produção menos trabalhosas (com enormes implicações para o emprego) e maior confiança em sistemas de produção com inteligência artificial. A interrupção nas cadeias de produção implica em demissão ou trabalhadores em licença, o que diminui a demanda final, enquanto a demanda por matérias-primas diminui o consumo produtivo. Esses impactos no lado da demanda, por si só, produziriam pelo menos uma recessão leve.

Mas, as maiores vulnerabilidades existiam em outro lugar. Os modos de consumismo que explodiram depois de 2007-8 colidiram com consequências devastadoras. Esses modos foram baseados em reduzir o tempo de rotatividade do consumo tão perto quanto possivelmente de zero. O fluxo de investimentos em tais formas de consumismo tinha tudo a ver com a máxima absorção de volumes de capital exponencialmente crescentes em formas de consumismo que tinham o tempo de rotatividade mais curto possível. O turismo internacional foi emblemático. As visitas internacionais cresceram de 800 milhões para 1,4 bilhões entre 2010 e 2018. Essa forma de consumismo instantâneo requeria investimentos infra estruturais massivos em aeroportos e linhas aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais, etc.

Esse local de acumulação de capital está agora morto na água: as linhas aéreas estão perto da falência, os hotéis estão vazios e o desemprego em massa na indústria da hospitalidade é iminente. Comer fora não é uma boa ideia e os restaurantes e bares fecharam em muitos lugares. Até para viagem parece arriscado. O vasto exército de trabalhadores na economia de show ou em outras formas de trabalho precário estão sendo despedidos sem meios de suporte visíveis. Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquete, concertos, convenções de negócios e profissionais, e até reuniões políticas em torno das eleições estão cancelados. Essas formas “baseadas em eventos” de consumismo experimental foram fechadas. Os rendimentos de governos locais formaram uma cratera. Universidades e escolas estão fechando.

Muitos dos modelos de consumismo capitalista contemporâneos de ponta estão inoperáveis sob as condições presentes. O caminho para o que André Gorz descreve como “consumismo compensatório” (no qual trabalhadores alienados deveriam recuperar seus espíritos através de um pacote de férias em uma praia tropical) foi embotado.

Mas as economias capitalistas contemporâneas são 70% ou 80% movidas pelo consumismo. A confiança e o sentimento do consumidor nos últimos quarenta anos se tornou a chave para a mobilização de efetiva demanda e o capital se tornou crescentemente dirigido pela demanda – e necessidades. Essa fonte de energia econômica não foi sujeita a flutuações selvagens (com poucas exceções, tais como a erupção do vulcão islandês que bloqueou voos transatlânticos por algumas semanas).

Mas a COVID-19 está sustentando não uma flutuação selvagem, mas um choque todo-poderoso no coração da forma de consumismo que domina nos países mais ricos. A forma espiral de acumulação de capital sem fim está entrando em colapso de uma parte do mundo para outra. A única coisa que pode salva-lo é um consumismo em massa financiado e inspirado pelo governo, evocado do nada. Isso exigirá socializar toda a economia nos Estados Unidos, por exemplo, sem chamar isso de socialismo.

As Linhas de Frente

Há um mito conveniente de que as doenças infecciosas não reconhecem classe ou outras barreiras e limites sociais. Como muitos desses dizeres, há uma certa verdade nisso. Na epidemia de cólera do século XIX, a transcendência de barreiras de classe foi suficientemente dramática para aparecer o nascimento de saneamento público e movimento de saúde (que se tornou profissionalizado) que durou até hoje. Se esse movimento foi projetado para proteger todos ou apenas as classes superiores, não foi sempre claro. Mas hoje a classe diferencial e os efeitos e impactos sociais contam uma história diferente. Os impactos sociais e econômicos são filtrados através de discriminações “costumeiras”, que estão em evidência em todos os lugares. Para começar, a força de trabalho que se espera para cuidar dos crescentes números de doentes é tipicamente altamente de gênero, raça e étnica, na maioria das partes do mundo. Espelha as forças de trabalho baseadas em classe encontradas em, por exemplo, aeroportos e outros setores logísticos.

Essa “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e suporta o peso de ser a força de trabalho mais em risco de contrair o vírus através de seus empregos ou de serem despedidos sem recursos por causa da contenção econômica imposta pelo vírus. Há, por exemplo, a questão de quem pode trabalhar em casa e quem não pode. Isso afia a divisão social, assim como a questão de quem podes se dar ao luxo de se isolar ou se colocar em quarentena (com ou sem remuneração) em caso de contato ou infecção. Da exata mesma maneira que eu aprendi a chamar os tremores de terra na Nicarágua (1973) e na cidade do México (1995) de “tremores de classe”, então o progresso da COVID-19 exibe todas as características de uma epidemia de classe, gênero e raça.

Enquanto esforços na mitigação são convenientemente disfarçados na retórica de que “estamos todos nessa juntos”, as práticas, particularmente na parte dos governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras. A classe trabalhadora contemporânea nos Estados Unidos (compreendida predominantemente por afro-americanos, latinos e mulheres empreendedoras) enfrenta a desagradável escolha da contaminação em nome de cuidar e manter os principais recursos da provisão (como mercados) abertos ou desempregados sem benefícios (como cuidados de saúde adequados). O pessoal assalariado (como eu) trabalha de casa e saca seu salário como antes, enquanto os CEOs voam por aí em jatos privados e helicópteros.

As forças de trabalho na maior parte do mundo há muito tempo são socializadas para se comportar como bons sujeitos liberais (o que significa culpar a si próprios ou a Deus se algo vai errado, mas nunca ousando sugerir que o capitalismo pode ser o problema). Mas mesmo bons sujeitos liberais podem ver que há algo errado com o modo esta pandemia está sendo respondida.

A grande questão é: quanto tempo isso vai continuar? Pode ser mais de um ao, e o mais longe que vai, maior a desvalorização, incluindo da força de trabalho. Os níveis de desemprego vão certamente crescer para níveis comparáveis com os dos anos de 1930, na ausência de massivas intervenções estatais que vão ter que ir contra a semente neoliberal. As imediatas ramificações para a economia, assim como para a vida social diária são múltiplas. Mas elas não são todas más.

Ao grau que o consumismo contemporâneo se tornou excessivo estava à beira do que Marx descreveu como “consumo excessivo e consumo insano, significando, por sua vez, os monstruosos e bizarros, a queda” de todo o sistema. A imprudência desse consumo excessivo desempenhou um papel importante na degradação ambiental. O cancelamento de linhas aéreas e a restrição radical de meios de transporte e movimentação teve consequência positiva no que diz respeito a emissão de gases de efeito estufa. A qualidade do ar em Wuhan melhorou muito, assim como em muitas cidades americanas.

Lugares de ecoturismo vão ter um tempo para se recuperar de pés pisoteados. Os cisnes voltaram para os canais de Veneza. Ao grau que o gosto por consumismo imprudente e sem sentido está restrito, poderia haver alguns benefícios a longo prazo. Menos mortes no Monte Everest pode ser uma coisa boa. E enquanto ninguém diz isso em voz alta, o viés demográfico do vírus pode acabar afetando pirâmides de idade com efeitos de longo prazo sobre os encargos da segurança social e o futuro da “indústria de cuidados”. A vida diária vai desacelerar e, para algumas pessoas, isso vai ser uma benção. As regras sugeridas de distanciamento social podem, se a emergência continuar por tempo suficiente, levar a mudanças culturais. A única forma de consumismo que vai se beneficiar é o que eu chamo de economia “Netflix”, que atende aos “espectadores maratonistas de séries” de qualquer maneira.

Na frente econômica, as respostas foram condicionadas da maneira do êxodo da queda de 2007-8. Isso implicou uma política monetária ultra solta, juntamente com o resgate dos bancos, suplementada por um dramático aumento no consumo produtivo por uma massiva expansão de investimentos infra estruturais na China. O último não pode se repetir na escala requerida. Os pacotes de resgate criados em 2008 focavam nos bancos, mas também implicavam a nacionalização de fato da General Motors. É talvez significativo que, em face de trabalhadores descontentes e demanda de mercado em colapso, as três grandes empresas de automóveis de Detroit estão fechando, pelo menos temporariamente.

Se a China não pode repetir seu papel em 2007-8, então o fardo de sair da atual crise econômica agora muda para os Estados Unidos, e aqui está a ironia final: as únicas políticas que irão funcionar, tanto economicamente, quanto politicamente, são muito mais socialistas do que qualquer coisa que Bernie Sanders poderia propor, e esses programas de resgate vão ter que ser iniciados sob a era Trump, presumivelmente sob a máscara de Faça América Grande Novamente.

Todos aqueles Republicanos que tão visceralmente se opuseram ao resgate de 2008 vão ter que engolir sapo ou desafiar Donald Trump. O último, se for sábio, vai cancelar as eleições com base na emergência e declarar a origem de uma presidência imperial para salvar o capital e o mundo de “tumulto e revolução”.

David Harvey é geógrafo com especialista em geografia urbana, formado na Universidade de Cambridge, professor da City University of New York.

Tradução: Luciana Cristina Ruy

Fonte: Jacobin

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