Por Carolina Maria Ruy
Conhecer a história não significa prender-se ao passado. Ela diz muito sobre o presente e sobre o futuro.
Abordo aqui cinco motivos que reforçam a importância de fazer dos 60 anos do golpe militar, uma data de reafirmação da democracia e da soberania, tanto por parte dos cidadãos e cidadãs, quanto por parte do poder público.
1 – Honrar a memória dos que lutaram.
É preciso honrar aqueles que lutaram na resistência. Sob dura repressão, a luta contra a ditadura exigiu coragem e desprendimento. Organizados muitas vezes de forma clandestina, em partidos e grupos de esquerda, ou equilibrando-se em maneiras de driblar a vigilância, como parte da imprensa alternativa, sindicatos e entidades de classe, muitos se dedicaram ao combate ao regime, expondo-se ao risco da tortura e morte.
Segundo o relatório “Brasil: Nunca Mais”, pelo menos 1.918 prisioneiros políticos afirmaram que foram torturados entre 1964 e 1979 (Casos de tortura e mortes continuaram mesmo depois da Anistia de 1979). Cada vez mais fica claro que a ditadura promoveu o horror e o arbítrio em larga escala. Mas somente o reconhecimento oficial de cada crime levará à almejada justiça e reparação.
2 – A ditadura aprofundou a cultura da violência.
A violência do regime reforçou o caráter repressivo da polícia e acentuou a discriminação contra o povo pobre. A prática da tortura foi aprimorada e, com o fim da ditadura, passou a agravar a violência policial. Além disso, o regime incentivou grupos de extermínio como o esquadrão da morte e grupos de milícias.
Segundo o sociólogo Benedito Mariano, que foi ouvidor das polícias de São Paulo: “A lógica do policiamento ostensivo-repressivo executado por instituições fechadas, aquarteladas, com essa visão militar, vem do Império. E a ditadura militar reforçou esse caráter repressivo do sistema. A figura da polícia-política foi construída durante os períodos da ditadura Vargas (1937 a 1945) e a ditadura militar (1964 a 1985). Esta polícia servia muito mais aos interesses do Estado autoritário do que à população”, disse em entrevista para a Revista Princípios[1].
3 – A ditadura desfalcou o país de importantes quadros políticos.
Com a prática ostensiva de perseguição, censura, tortura e mortes, o regime privou o país de quadros políticos, culturais e do movimento social que poderiam fazer a diferença atualmente.
O regime asfixiou o jornal Última Hora, fundado pelo jornalista Samuel Wainer, até ele ser vendido para a Folha de São Paulo, em 1971. Era um jornal popular e inovador, o único da grande imprensa que defendeu João Goulart na época do golpe. Também cerceou o espaço, a liberdade e os recursos da imprensa alternativa, que na época conseguia atingir um grande público, como os jornais O Pasquim, Opinião e Movimento.
O regime afastou personalidades da vida nacional impondo a elas a necessidade de um longo exílio, como foi o caso de Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola, Gregório Bezerra, José Ibrahim entre tantos outros. Pessoas que teriam feito a diferença nas articulações para uma organização eficiente da resistência e, sobretudo, no processo de redemocratização, mas que foram compulsoriamente afastadas da vida nacional.
O regime matou pessoas que ainda tinham muito a contribuir com o país, com ideias e com ações, como o metalúrgico Santo Dias, a estilista Zuzu Angel, os estudantes Stuart Angel Jones e Alexandre Vannucchi Leme, os ativistas Helenira Resende, Zequinha Barreto e Carlos Lamarca e os políticos Pedro Pomar, Maurício Grabois e Carlos Marighella.
Com isso, a ditadura alimentou uma imprensa mais elitizada e que defendia o avanço do neoliberalismo, criou um ambiente para uma transição pactuada e indulgente e acuou partidos de esquerda e movimentos sociais, principalmente aqueles críticos ao liberalismo.
4 – A ditadura escancarou o país para o capital internacional e para a política dos EUA.
Durante seus 21 anos a ditadura esteve alinhada politicamente aos Estados Unidos da América. No Brasil, assim como em outros países da América Latina durante a Guerra Fria, os EUA exerceram um tipo de neoimperialismo econômico e cultural.
Tratava-se de um sistema que ia na contramão da política antiliberal e pró geração de emprego decente, direitos trabalhistas e aumento salarial, defendida por Getúlio Vargas e João Goulart.
A política econômica da ditadura baseou-se no arrocho salarial, na retirada de direitos, no aumento da dívida externa e na explosão da inflação, o que levou a um progressivo empobrecimento e enfraquecimento da classe trabalhadora.
5 – Pela reafirmação da democracia e da soberania, devemos conhecer a história do país.
No senso comum, o conhecimento sobre a ditadura militar no Brasil ainda é precário. Ideias vagas sobre golpe e intervenção, que muitas vezes surgem no debate político, não traduzem o que ocorreu em 31 de março de 1964, seus antecedentes e suas consequências. A carência deste conhecimento se agrava quando as novas gerações perdem vínculo com pessoas e entidades que passaram por aquele período difícil e a história não é transmitida.
Por outro lado, a construção permanente de uma nação democrática exige a compreensão das bases sobre as quais estão fundadas esta democracia. A consolidação de uma identidade nacional não deve ser feita só de símbolos, mas principalmente, de uma história compartilhada. O brasileiro cresce enquanto cidadão quando domina sua história e esta é a essência de um país soberano.
O debate sobre a história é útil ao presente e ao futuro.
Encerrada há 39 anos, a ditadura militar ainda é um assunto sensível para o país. Suas consequências permanecem nas relações sociais, políticas e econômicas. A ditadura mudou o curso do desenvolvimento, redirecionando-o para que a econômica de mercado prevaleça sobre interesses sociais. E a abertura democrática iniciada em 1985 foi um processo que encontrou e ainda encontra grande resistência. Portanto, é fundamental que o povo se aproprie desta história.
Não se trata de revanchismo, muito menos de acusar o conjunto das Forças Armadas de golpistas e promotores da violência. Ao contrário, valorizar os exércitos, as policias e demais forças de defesa faz parte da construção de uma democracia altiva e soberana. Mas isso não significa fechar os olhos para os erros do passado.
O debate sobre a história diz respeito ao presente e ao futuro. Ele liberta a população de um ciclo vicioso que a oprime e a aliena, proporcionando escolhas e caminhos que podem mover a sociedade para um ciclo virtuoso e emancipador.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
[1] “Cidade: espaço de justiça e paz? Raízes da organização policial no Brasil”, Entrevista com Benedito Mariano, Revista Princípios, edição 97, em agosto de 2008.
Rita de Cássia Vianna
Conhecimento da história. Mas não acontece…tornando as coisas simplistas