PUBLICADO EM 21 de out de 2022
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O neoliberalismo foi construído na repressão contra o trabalhador

Alguns governos democráticos descaradamente aprisionaram líderes sindicais e usaram violência policial e militar para acabar com as greves que os sindicatos lançaram contra pacotes de reformas econômicas neoliberais. Outros enfraqueceram a oposição sindical através de táticas mais sutis, como restringir os direitos dos trabalhadores de se organizar, proibir greves, ou ameaçar retaliar contra trabalhadores grevistas.

Em 30 de março de 1982, Ubaldini liderou a marcha de cerca de 50.000 pessoas até a Plaza de Mayo com o slogan “Pão, paz e trabalho”. Foi a primeira greve contra a ditadura

Por Adam Dean (Jacobin)

Por uma geração, acadêmicos descreveram um círculo virtuoso de democracia, livre negociação, e empoderamento dos trabalhadores nos países em desenvolvimento. Isso simplesmente não é o que o neoliberalismo significou na prática.

O Ford Falcon de Saúl Ubaldini explodiu pouco antes das 2:00 AM, na manhã de 17 de agosto de 1989. A bomba jogou o carro vários pés no ar e quebrou as janelas do primeiro andar da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), a principal federação sindical da Argentina. “Para nós,” afirmou um organizador da CGT de longa data, “foi o governo.” Trinta anos depois, o assistente de Ubaldini – o homem que estacionou o carro na noite que ele explodiu – explicou que “Saúl sabia, e eu vi isso em seus olhos. Ele sabia que estava indo contra algo grande, algo que queria calá-lo.”

O que Ubaldini, o Secretário Geral da CGT, estava indo contra era um conjunto de reformas econômicas neoliberais proposto pelo recém-empossado Presidente da Argentina, Carlos Menem.

De 1983 até 1988, a CGT de Ubaldini lançou treze greves gerais contra reformas similares propostas por Raul Alfonsín, o presidente anterior do país. Essas greves paralisaram a economia, pararam o processo de reformas, e desestabilizaram o governo de Alfonsín, tudo enquanto estabelecendo a CGT como uma das mais importantes forças sociais na Argentina. Quando Menem anunciou suas intenções de abrir e desregular a economia argentina, a CGT de Ubaldini foi o símbolo indiscutível de resistência.

As linhas de batalha eram claras. Como um jornalista argentino explicou, a administração Menem “vai ter que destruir a CGT como um fator principal de poder, se ela quiser dar certo em seus objetivos de estabelecer novas regras para o jogo econômico.” Menem rapidamente expulsou líderes sindicais de oposição, acabou com greves com os militares, e, por fim, proibiu as greves no setor público, antes de reduzir as tarifas argentinas em mais de 40 por cento.

Uma dinâmica similar estava acontecendo na Índia. No meio dos anos de 1980, o Primeiro Ministro Rajiv Gandhi anunciou privatizações e reformas das políticas comerciais que desencadearam greves gerais generalizadas dos sindicatos da Índia. Gandhi, como Alfonsín da Argentina, cedeu a tal oposição trabalhista e desistiu de suas reformas econômicas. No início dos anos de 1990, o recém eleito primeiro ministro da Índia, Narasimha Rao, proporia um pacote de reformas similar com sua Nova Política Econômica. Rao, como Menem da Argentina, lançou uma campanha de repressão trabalhista com o objetivo de esmagar protestos sindicais contra suas reformas. Como o jornal Hindu da Índia explicou, “Uma vez que o trabalho se torna seriamente em fogo, se torna necessário recorrer à repressão, se as reformas não vão ser abandonadas.”

Ao invés de bombas em carros, os sindicatos da Índia enfrentaram o uso explosivo do que o governo indiano chama de “prisões preventivas.” Em 16 de junho de 1992, mais de 10 milhões de indianos se uniram a uma greve geral nacional em oposição às reformas de Rao. Mas antes que os primeiros grevistas pudessem mesmo entrar nas ruas de Nova Delhi e Calcutá, vinte e cinco mil membros de sindicatos já tinham sido detidos e presos através do país.

A estratégia básica do governo, coordenada entre o governo central e ministros chefes estaduais, alinhados com o partido de Rao no Congresso, era evitar membros de sindicatos de fazerem piquetes, perturbar transportes públicos e espalhar a greve geral. No estado sulista de Tamil Nadu, quatro mil membros de sindicatos foram mantidos em uma prisão lotada e apanharam de guardas com bastões. Pelo menos um membro de sindicato morreu na prisão policial. Líderes sindicais imediatamente denunciaram “a repressão sem precedentes pelo governo estadual.”

Quatro dias depois da greve geral, com a imediata ameaça de vitória da oposição trabalhista, todos os membros de sindicatos aprisionados foram soltos sem quaisquer acusações. Quando os sindicatos lançaram outra greve geral dez meses depois, o governo indiano novamente prendeu preventivamente mais de dez mil membros de sindicatos, em uma tentativa de ter certeza de que a participação para essa greve geral seria menor que a anterior – uma tendência de queda que eles destacariam como evidência de que estava crescendo um consenso em favor de suas reformas econômicas. Diferente de Gandhi, cujas reformas foram paradas pela oposição sindical, Rao usou as prisões preventivas para limitar a escala de greves gerais, antes de abaixar as tarifas da Índia em mais de 50 por cento.

Essas histórias ilustram temas mais amplos sobre as políticas de livre comércio não apenas na Argentina e na Índia, mas em países em desenvolvimento pelo mundo no final do século XX. Eu analisei dados através do Sul Global e descobri que a transição para a democracia apenas foi associada com liberalização comercial quando o respeito pelos direitos trabalhistas era baixo. E em democracias estabelecidas, reduções de tarifas foram frequentemente precedidas de aumentos na repressão trabalhista. Em resumo, países em desenvolvimento com governos democráticos repetidamente abriram suas economias enquanto reprimindo sindicatos.

Mão invisível, punho de ferro

Meu novo livro, “Opening Up by Cracking Down”(Nota: Abrindo-se reprimindo), explica como países em desenvolvimento democráticos usaram a repressão trabalhista – a violação dos direitos básicos dos trabalhadores de agir coletivamente – para superar oposição sindical a liberalização do comércio.

Alguns governos democráticos descaradamente aprisionaram líderes sindicais e usaram violência policial e militar para acabar com as greves que os sindicatos lançaram contra pacotes de reformas econômicas neoliberais. Outros enfraqueceram a oposição sindical através de táticas mais sutis, como restringir os direitos dos trabalhadores de se organizar, proibir greves, ou ameaçar retaliar contra trabalhadores grevistas.

De qualquer jeito, a democracia e a liberalização comercial foram mais prováveis de caminhar juntas quando os governos estavam dispostos a violar direitos trabalhistas. Longe de garantir as liberdades básicas dos trabalhadores, governos democraticamente eleitos rotineiramente violaram os direitos dos trabalhadores de agir coletivamente.

Essa história coloca a repressão trabalhista no centro da história do comércio internacional nos países em desenvolvimento, e sugere que estudiosos devem pensar diferentemente para compreender as tensões e as trocas entre democracia, direitos trabalhistas, e comércio livre. fazendo isso, desafia dois mitos populares sobre globalização.

O primeiro mito é que a democracia, sozinha, foi uma condição suficiente para a liberalização comercial. Esse enfoque frequentemente começa com o modelo Heckscher-Ohlin de comércio internacional para prever que os trabalhadores em países em desenvolvimento, que constituem a maioria da população, esmagadoramente apoiam a liberalização comercial. Ele então usa o teorema do eleitor mediano para prever que os governos democráticos baixam as tarifas em resposta a demandas pró-comércio do trabalhador médio.

Esse enfoque impede a oposição sindical a liberalização comercial, não pode explicar porque muitos países em desenvolvimento mantinham altas tarifas após a transição para a democracia, e falha em reconhecer que democracias que reprimiram sindicatos eram as mais prováveis de abraçar o livre comércio.

O segundo mito é que as democracias não usam a repressão trabalhista para reduzir a influência política dos sindicatos.

Esse enfoque pode ser rastreado até os anos de 1980, quando estudiosos usaram uma falsa dicotomia para teorizar sobre porque muitos regimes autoritários estavam abrindo suas economias mais rapidamente do que as democracias. De acordo com essa perspectiva, ditaduras como a do Chile de Augusto Pinochet podiam usar a repressão trabalhista para superar a oposição sindical, enquanto governos democráticos como a Argentina de Alfonsín estavam impedidos de violar direitos trabalhistas básicos. Quando governos democráticos mais tarde começaram a baixar suas tarifas, muitos estudiosos usaram implicitamente essa estrutura para procurar pelas táticas não repressivas que as democracias usaram para superar a oposição sindical.

Muitos argumentaram que as democracias usaram compensações de bem-estar – seguro desemprego, programas de reciclagem profissional – para superar a oposição de grupos prejudicados pelo livre comércio. Outros argumentaram que as crises econômicas enfraqueceram a habilidade dos sindicatos de mobilizar os trabalhadores, ou que laços partidários entre sindicatos e partidos políticos levaram os sindicatos a concordar com as reformas. Enquanto essas táticas não repressivas frequentemente desempenharam papéis importantes, uma geração de acadêmicos permaneceu injustificavelmente silenciosa sobre os muitos modos que países democráticos em desenvolvimento rotineiramente usaram a repressão trabalhista para superar a oposição sindical a liberalização comercial.

Economistas políticos tradicionais frequentemente argumentam que a maioria dos trabalhadores em países em desenvolvimento se beneficiam do livre comércio. Como Paul Krugman uma vez afirmou, “Enquanto capitalistas gordos podem se beneficiar da globalização, os maiores beneficiários são, sim, os trabalhadores do Terceiro Mundo.” Essa afirmação apoia uma visão de mundo sem trocas, uma visão na      qual a democracia leva ao livre comércio, e o livre comércio leva ao alívio da pobreza. Contudo, as últimas pesquisas sugerem que apenas um pequeno grupo de empresas “superstar” colhem os benefícios da globalização.

É justificável que as democracias usem a repressão trabalhista para liberalizar a política comercial, se apenas uma minoria do país se beneficia do livre comércio? Responder a essa questão requer que nós também consideremos as consequências negativas mais amplas da repressão trabalhista. Independente do comércio internacional, a repressão trabalhista enfraquece os sindicatos e assim abaixa os salários dos trabalhadores, aumenta a desigualdade de renda, e enfraquece demandas por gastos em bem-estar. O declínio dos sindicatos pode até ser uma causa próxima da erosão e declínio da democracia ao redor do globo.

Um círculo virtuoso de democracia, livre comércio e empoderamento dos trabalhadores em países em desenvolvimento faz uma grande história. Só que apenas não é o que aconteceu.

Meu novo livro conta uma história diferente, mais focada nos sindicatos que se opõem a liberalização do comércio e os modos que os governos democráticos frequentemente usaram a repressão trabalhista para enfraquecer protestos e acabar com greves. Muitos desses contos, como as prisões preventivas de dezenas de milhares de membros de sindicatos na Índia, ou a bomba que explodiu o carro do Secretário Geral da CGT, Ubaldini, na Argentina, estão visivelmente ausentes das histórias convencionais das reformas econômicas na virada do século XXI.

Eu espero que essas histórias revisionistas melhorem nossa compreensão da liberalização comercial, transmitindo mais do que realmente aconteceu nos países em desenvolvimento democráticos. Construir uma economia global de democracias que respeitem os direitos trabalhistas vai exigir, pelo menos, um acerto de contas honesto com a repressão trabalhista que facilitou a última onda de globalização.

Adam Dean é professor assistente no Departamento de Ciência Política na Universidade George Washington. Ele é o autor de “Opening Up by Cracking Down.”

Fonte: Jacobin

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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