PUBLICADO EM 29 de mar de 2021
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Neoliberalismo com problemas: um olhar marxista ao Plano de Resgate Americano

Desde a última recessão, a ação da classe trabalhadora tem sido firmemente construída e vem ganhando força. As primeiras faíscas vieram no movimento Ocupe Wall Street, que emergiu no despertar da crise financeira. Houve as duas campanhas de Bernie Sanders para presidente, assim como a de Elizabeth Warren, que inseriu explicitamente demandas sociais-democratas, como o “Medicare for All”, na conversação pública.
O movimento sindical começou a reverter seu declínio de décadas, com novos esforços de organização, como a campanha dos trabalhadores da Amazon Alabama, mostrando que mais e mais trabalhadores estão olhando para a ação coletiva como um modo de melhorar suas vidas.

Joe Biden assina o Plano de Resgate Americano ao lado da vice Kamala Rarris. Foto: Facebook Joe Biden.

Por J. Atkins (Peolple´s World)

Após mais de 40 anos dominando nossa vida econômica e política, a extrema ideologia capitalista de mercado livre do neoliberalismo está começando a mostrar algumas sérias rachaduras. Políticas “de gotejamento” que por décadas choveram dinheiro para os de cima, às custas dos de baixo, estão quebrando e dando caminho a uma nova disposição dos governos de gastar dinheiro para beneficiar diretamente a ampla população e a economia. Por um longo tempo, isso simplesmente não aconteceu – não desde a criação do “Medicare”, “Medicaid” e a “Guerra a Pobreza”, no final dos anos de 1960.

Instituído nos dias de Ronald Reagan e fortalecido nas décadas desde a derrota do socialismo no Leste Europeu, o modelo neoliberal foi um capitalismo com esteroides. Os serviços e propriedades públicos de todo tipo foram objetos de privatizações. O bem estar e a assistência social foram erodidos, algumas vezes rapidamente e violentamente. Os impostos dos ricos foram reduzidos para destravar supostos potenciais investimentos. Regulamentos foram retirados e sindicatos enfraquecidos para liberar capital. E o poder de controlar as finanças públicas foram gradualmente tirados de corpos democraticamente eleitos, como o Congresso ou parlamentares, e entregues para banqueiros que não foram eleitos.

Essas políticas e a ideologia por trás delas estão agora sob pressão, e o Ato de Resgate Americano de $1,9 trilhões se tornando lei é a mais recente e gritante prova da mudança.

O último gotejamento?

Depois da última grande crise econômica – a Grande Recessão de 2008-2009 – houve um significativo estímulo direto, para ter certeza, incluindo alguns cheques para os contribuintes e gastos em infraestrutura. Mas mesmo no círculo de formuladores de políticas ao redor do Presidente Barack Obama, ainda havia uma relutância a gastar demais. O medo dos déficits, junto com sabotagem pelos legisladores Democratas centristas (soa familiar?), limitava na escala da resposta do governo.

A tarefa de enfrentar o colapso do capitalismo foi amplamente deixada para a Reserva Federal, que por meio de anos de “flexibilização quantitativa” empurrou o dinheiro recém-criado para o sistema financeiro, comprando títulos. Isso junto com a manipulação da taxa de juros. O dinheiro foi canalizado da Reserva Federal para os bancos, com a ideia de que eles fariam empréstimos a corporações e negócios (que foram seduzidos com juros baratos). A lógica era que isso iria estimular investimentos e criar empregos. Em sua base, isso era economia de gotejamento em uma nova forma.

O resultado foi uma recuperação, embora lenta e extremamente desigual. Muitas empresas usaram o crédito barato para comprar de volta ações, ao invés de criar empregos, despejando dinheiro nos acionistas, mas fazendo pouco pelos trabalhadores. O “Obamacare” trouxe seguro de saúde para as massas que anteriormente não podiam pagar, mas as empresas de seguro lucraram ganhando milhões de novos clientes. A criação de empregos aumentou, eventualmente, no final dos anos de 2010, mas então Wall Street havia usufruído de quase uma década de ganhos crescentes. (Tanto os ganhos de empregos e o boom do mercado de ações foram algo que Trump tentou levar o crédito, embora ele na verdade tinha pouco a ver com engenharia de ambos).

Apesar do quadro que estatísticas como o crescimento do PIB podem apresentar, a realidade foi que para muitas pessoas levou anos para começarem a superar os impactos da recessão. A desigualdade subiu para níveis não vistos desde os anos de 1920. Não é coincidência que o slogan dos “99% vs. 1%” se tornou popular nessa época. Para milhões, eles não haviam nem totalmente se recuperado da última crise econômica antes que a próxima bateu, com a pandemia.

Abrindo o dinheiro público – para o público

Com a atual crise desencadeada pela COVID-19, os contornos do debate sobre como o governo deve responder são diferentes. Para ter certeza, os Republicanos e os Democratas centristas ainda tendem a fazer o mínimo possível. Mas a conversação agora é diferente do que era em 2009. Gastar dinheiro diretamente nas necessidades imediatas do povo não é mais tabu. Esse já era o caso antes do pacote de recuperação econômica de Biden passar, mas é ainda mais óbvio agora.

Quando chegar a hora em que o dinheiro do Ato de Resgate Americano realmente começar a fluir (e combinando-o com o que foi feito durante o ano passado), a maioria dos contribuintes individuais dos EUA vão ter recebido $4.000 em cheques de alívio para ajuda-los a sobreviver. Muitos daqueles que perderam seus empregos vão ser beneficiados várias vezes com qualquer um dos $600 ou $300 suplementos federais de desemprego semanais. Para muitos daqueles que tiveram sorte o suficiente para manter seus empregos, os empréstimos perdoáveis do Programa de Proteção dos Cheques de Pagamento terão pago seus salários por muitos meses.

As famílias trabalhadoras logo vão ter uns $300 extras por mês no banco para cada um de seus filhos jovens, graças aos novos créditos fiscais. As pessoas enfrentando despejos ou execuções e hipotecas vão ter assistência de aluguel. Pequenas empresas com dificuldades podem esperar subsídios para manter seus funcionários trabalhando. E graças à ajuda da Continuação da Cobertura de Saúde (COBRA, na sigla em inglês), muitas pessoas desempregadas vão conseguir manter seus seguros de saúde.

Esses são apenas um pouco dos principais itens na resposta do governo dos EUA à pandemia até agora – sem nem mencionar o dinheiro para os Estados e governos locais, resposta imediata ao coronavírus, EPIs e mais.

Mudança de baixo

Muitos analistas estão notando essa mudança de paradigma. Paul McCulley, um professor de negócios na Georgetown, disse ao New York Times mais cedo essa semana: “Ter as ferramentas da estabilização econômica trabalhando muito mais através do canal fiscal e muito menos através do canal monetário é uma combinação profunda de políticas pró-democracia”. Em linguagem mais simples: é melhor ter representantes eleitos, ao invés de banqueiros não eleitos, fazendo as decisões sobre como o dinheiro público é gasto.

Alguns comentaristas estão vendo a mudança, mas estão perdendo as razões reais porque isso está acontecendo. O escritor de opinião da Times, Neil Irwin, por exemplo, caracteriza isso como uma batalha entre “tecnocratas cabeça dura” e legisladores, ou como a manchete de seu artigo mais cedo essa semana colocou: “Movam-se, nerds. É a economia dos políticos agora”.

Sem o discernimento que vêm de uma análise de classe da situação, Irwin e outros comentaristas na imprensa burguesa continuam a olhar apenas as diferenças entre aqueles no topo da sociedade para explicar a mudança social. A verdade, contudo, é que a pressão agora aplicada à ideologia neoliberal é resultado de luta de classes de baixo.

Desde a última recessão, a ação da classe trabalhadora tem sido firmemente construída e vem ganhando força. As primeiras faíscas vieram no movimento Ocupe Wall Street, que emergiu no despertar da crise financeira. Houve as duas campanhas de Bernie Sanders para presidente, assim como a de Elizabeth Warren, que inseriu explicitamente demandas sociais-democratas, como o “Medicare for All”, na conversação pública.

O movimento sindical começou a reverter seu declínio de décadas, com novos esforços de organização, como a campanha dos trabalhadores da Amazon Alabama, mostrando que mais e mais trabalhadores estão olhando para a ação coletiva como um modo de melhorar suas vidas.

A revolta nacional do Black Lives Matter, com sua demanda de cortar os fundos da polícia e da militarização e redireciona-los para as necessidades humanas, fundiu-se com as lutas para acabar com o racismo e a desigualdade econômica.

Pesquisas de opinião mostraram o interesse nas ideias do socialismo ganhando força já por muitos anos, mostrando também o fato de que organizações de esquerda, como os Socialistas Democratas da América e o Partido Comunista dos EUA, tiveram crescimento explosivo.

As eleições de 2018 e 2020 foram mais uma prova, quando a Convenção Política de legisladores progressistas cresceu. Ousadas mulheres de cor líderes, como as deputadas Alexandria Ocasio-Cortez, Ayanna Pressley, Ilham Omar e Pramila Jayapal agora lideram a mudança em Washington em tudo, do Novo Acordo Verde à Luta pelo $15 e mais.

A massiva morte e destruição experimentadas no ano passado por causa do coronavírus apenas aceleraram a tendência de pessoas questionando o status quo e procurando por alternativas.

Toda essa efervescência da atividade organizada da classe trabalhadora e crescimento político – conduzido pela pelas condições materiais e opressão em que as pessoas se encontraram vivendo – está tendo um impacto em nível nacional de política e debate. Em termos marxistas, as mudanças na base econômica da sociedade estão afetando a consciência de massa e daí incitando mudança na superestrutura – as ideias legais, políticas e filosóficas de nossos tempos.

Velhas ideologias como o capitalismo neoliberal estão sob pressão da luta de classes. Essas novas ideias não estão ainda totalmente formadas, contudo, e as forças as impulsionando não são ainda fortes o suficiente para afirmar seu poder em todos os momentos. O novo ainda está em conflito com o velho, e os resultados são desiguais. Aliados (como políticos) vão às vezes vacilar. As vitórias vão ser reais, mas incompletas (como a queda dos $15 de salário mínimo da Ato de Resgate Americano). As derrotas não são inevitáveis. Como Frederick Engels escreveu: “A história faz a si própria de uma maneira que o resultado final sempre surge dos conflitos… há inúmeras forças que se cruzam”.

Então o Plano de Resgate Americano, apesar de tudo o que não ganhamos com isso, é uma grande vitória para a classe trabalhadora. As pessoas vêm exigindo uma mudança em como a nossa economia opera e a quem ela beneficia. A organização e a unidade estão fazendo isso acontecer – a eleição de 2020 foi prova disso também.

Mas as forças do extremismo de livre mercado não vão se render facilmente; ainda há uma longa luta pela frente. As ideias do hiper-capitalismo ainda mantêm o controle sobre o Partido Republicano e um enorme segmento do Partido Democrata. As principais seções da classe trabalhadora continuam cativadas pelo trumpismo e aprisionadas pelo pensamento racista; eles ainda têm que ser conquistados. E até agora nós ainda estamos pagando em grande parte esses novos gastos voltados para as pessoas por meio de déficits, em vez de aumentar a tributação dos super-ricos.

O neoliberalismo não vai ir embora facilmente, mas ele está sentindo o beliscão. E isso é causa de celebração.

J. Atkins é doutor em Ciência Política da Universidade York, em Toronto, e é editor chefe da People’s World.

Tradução: Luciana Cristina Ruy

Fonte: People’s World

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