Residências artísticas são um importante recurso para artistas explorarem práticas orientadas ao lugar e experimentarem lugares e culturas particulares em primeira mão.
‘Bahia Reverb: Artists and Place’ (Reverberações da Bahia: Artistas e Lugar, numa tradução livre) apresenta o trabalho de dez artistas contemporâneos: Sandra Brewster, Gerald Cyrus, Rik Freeman, Juan Erman Gonzalez, Mark Steven Greenfield, Karen Hampton, Germaine Ingram, Francis Tre Lawrence, Precious Lowell e Tim Whiten.
Todos da América do Norte ou de descendência africana, eles foram colegas no Instituto Sacatar, localizado na Ilha de Itaparica, em frente a Salvador, capital do Estado da Bahia, no Nordeste do Brasil. A Bahia foi o primeiro ponto de entrada de africanos escravizados na América, e continua o centro da cultura afro-brasileira até hoje.
Focando no processo de cada artista, a mostra apresenta trabalhos em uma variedade de mídias, iniciados antes, durante ou depois das residências dos artistas no Sacatar, refletindo em como essas experiências moldaram suas visões e impactaram sua prática, enquanto eles se engajaram de inúmeras maneiras com a riqueza e poder cultural da Bahia. Para alguns artistas, sua época na Bahia representou um encontro com seus ancestrais negros e raízes africanas. Outros encontraram um lar e sentimento de pertencimento, ou uma desconhecida ou esquecida parte espiritual de si mesmos.
Embora a experiência e o enfoque dos artistas variem, muitos conceitos e narrativas sobrepostos reaparecem através da exibição. Coletivamente os trabalhos ilustram questões de histórias afro-brasileiras e respondem aos legados do colonialismo africano e diáspora, lidando com questões de deslocamento, migração forçada, justiça ambiental e desigualdade. Ao mesmo tempo, eles celebram tradições culturais, fé, espiritualidade e as conquistas de uma linhagem africana comum, destacando histórias pessoais, esquecidas, marginalizadas ou descartadas. Através da narrativa, mitologia e memória, os artistas jogam com noções de fato e ficção, o familiar e o desconhecido, o visível e o invisível, questionando como a história é contada, quem reclama a autoridade para contá-la, e como ela dura através do tempo.
A mostra representa as inúmeras formas de resistência que um povo vai se engajar sob condições de escravização e repressão.
Só para mencionar alguns destaques de uma visita recente, a monumental pintura a óleo de Rik Freeman, A Liberdade de Maria Felipa, de 2012, é baseada na narrativa local baiana de Maria Felipa de Oliveira, uma mulher escravizada que, em 1823, liderou um grupo de quarenta mulheres numa revolta contra a Marinha Portuguesa, na Ilha de Itaparica. Freeman relembra esse episódio: “Essas mulheres atraíram os marinheiros usando suas artimanhas femininas, e quando os rapazes ficaram um pouco quentes e incomodados… as mulheres pegaram um arbusto de cansação, que tem uma infinidade de agulhas que quebram na pele, e imediatamente a infectam. Sem piedade ou cuidado, elas venceram esses marinheiros até a submissão, e então seguiram para a baía e incendiaram inúmeros navios”. Os portugueses foram então forçados a abandonar a Ilha de Itaparica e voltar para Salvador.
O artista nascido em Athens, Geórgia, tem uma fascinação profunda com a diáspora africana nas Américas e seu trabalho incorpora histórias compartilhadas entre povos afro-brasileiros e afro-americanos.
Precious Lovell, nascida em Pilot Mountain, N.C., começou um projeto de mídia mista em 2009, celebrando As Mulheres Guerreiras da Diáspora Africana, usando materiais de vestuário costurados à mão, e processos que incorporam narrativas pessoais e universais. Essas eram “camisas de guerra”, honrando as histórias que as mulheres fizeram em lugares diversos da diáspora africana, como as Ilhas Virgens, Brasil, Estados Unidos, Gana, Cuba, Angola, Jamaica e Quênia. Durante sua residência no Instituto Sacatar, ela fez uma camisa de guerra para honrar Maria Felipa de Oliveira. Lovell gostou de colaborar com artesãos locais, o que permitiu a ela se familiarizar com fabricantes de tecidos e tradições têxteis locais. Ela emprega renda, bordado, pintura em tecido, tingimento, impressão de tela, queima de tecido, tricô, crochê, trança, estofado, aplique, montagem e patchwork, entre outras técnicas.
Outros de seus assuntos incluem Harriet Tubman, mulheres fugitivas da Wake County, N.C., King Peggy, de Gana (a primeira mulher viva na série de Lovell), Dra. Wangari Matthau, do Quênia, a primeira mulher africana a ser honrada com o Prêmio Nobel da Paz (2004), e as Lavadeiras Negras dos Estados Unidos. Essa última camisa “honra as lavadeiras negras da era Jim Crow, que através de seu trabalho foram capazes de elevar o status de sua família e comunidade, através da educação, casa própria e investimentos em negócios. Um avental e três lenços vermelhos são reaproveitados em uma capa para evocar uma super-heroína em celebração dessas mulheres desconhecidas”.
Os três ganchos de parede de Karen Hampton são declarações imponentes e totêmicas. “Quest for Angels” é feito com ráfia, um tipo de pano tecido de folhas de palmeira e associado com tradições africanas. Essa peça invoca sua avó, que a ensinou o ofício de costura. “Looking for God”, também em ráfia, usa pigmento marrom extraído de pedras que ela encontrou durante uma viagem para o alto deserto, no norte de Nevada. Essa área é origem das mais velhas esculturas em pedras gravadas, ou petróglifo, na América do Norte, datando de pelo menos 10.000 anos. E em “Shape Shifter”, Hampton presta tributo à tradição Iorubá, em que eguns são os espíritos dos ancestrais que partiram, representando um elo entre os vivos e os mortos. Hampton achou o tecido africano ocidental que ela usou para fazer essa série no Mercado Central de Salvador, sua escolha do próprio material demonstrando a continuidade da cultura, linhagem e transformação da África à Bahia aos EUA.
O conhecido artista de L.A., Mark Stephen Greenfield, criou uma série de pinturas que homenageiam os mártires e figuras míticas da história afro-brasileira, símbolos do orgulho negro e resistência heroica. Influenciado por sua educação católica, ele emprega folhas de ouro, halos e símbolos iconográficos usados na arte religiosa bizantina ocidental, apropriando-se desses materiais e tradições para honrar e imortalizar seus sujeitos. Os cinco trabalhos em exposição retratam Zumbi, o último rei da colônia de escravizados fugidos de Palmares; Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, uma mística erudita do período colonial pouco conhecida até que uma reveladora biografia sua apareceu por Luís Mott em 1993; Xica da Silva, uma mulher rara nascida escravizada, que ascendeu aos altos níveis da sociedade, e foi no final enterrada em um cemitério reservado à elite colonial branca; Iyá Nassô, conhecida no Brasil como Francisca da Silva, fundadora de um templo de candomblé afro-brasileiro. Em 1837, seguido de uma revolta de escravizados dois anos antes, Francisca apelou às autoridades e ganhou o direito à deportação. Ela, sua família e comitiva retornaram para Ouidah, no Benim de hoje, onde estabeleceram uma nova comunidade religiosa. Finalmente, Greenfield imortaliza a grande beleza dos olhos azuis da Escrava Anastácia, forçada a usar uma mordaça em sua face para impedi-la de falar, que é lembrada como uma santa protegendo as pessoas escravizadas e os empobrecidos.
Esses são apenas alguns dos trabalhos em exibição em Bahia Reverb: Artists and Place. Uma segunda galeria apresenta vídeos e outros trabalhos. Papel cortado e cerâmica estão entre os materiais usados no trabalho de outros artistas. Essa é uma mostra que definitivamente vale a visita, e fica perto do Leimert Park, no Sul de Los Angeles, considerado o coração da comunidade afro-americana.
Fonte: People´s World
Tradução: Luciana Cristina Ruy
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