Por Carolina Maria Ruy
O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e o golpe militar, em 1964, são eventos que estão relacionados pelo embate entre o trabalhismo e o liberalismo, por uma sequência de conspirações golpistas e pelo contexto internacional da Guerra Fria que impôs uma crescente polarização nos países da América Latina.
Um recorte inicial que ajuda a elucidar esta relação é o aumento de 100% do salário mínimo, proposto pelo então Ministro do Trabalho, João Goulart, e assinado por Getúlio no dia 1º de maio de 1954.
A medida radical atendia aos apelos do movimento sindical que se insurgiu na década de 1950 em diversas greves, especialmente a Greve Geral de abril e março de 1953.
Como resposta às reivindicações, Vargas nomeou Goulart, em junho de 1953, que, por sua vez, apresentou a proposta de aumento com a seguinte argumentação: “Não são os salários que elevam o custo de vida; pelo contrário, a alta do custo de vida é que exige salários mais altos”.
Segundo o economista Pedro Cezar Dutra[1]:
“Vargas mostrou uma coerência ao longo de sua vida pública. Ele nunca foi liberal. Nunca acreditou que o mercado, por si só, levaria ao desenvolvimento do país. Tanto a industrialização como as melhorias sociais não ocorreriam espontaneamente. Precisavam ser induzidas. Sempre condenou o liberalismo como a ideologia dos poderosos e avessos a qualquer alteração do status quo, desde época de positivista até o fim da vida”.
Ao receber e ouvir os operários grevistas, nomear Goulart para o Ministério do Trabalho e dobrar o mínimo, Getúlio demonstrava mais uma vez seu compromisso com o desenvolvimento e com a classe trabalhadora. Compromisso já reiterado diversas outras vezes, com a criação de direitos trabalhistas e de empresas nacionais.
Mas este pode ser tomado como um marco de uma série de eventos que resultaram em seu suicídio.
Golpe: primeira tentativa
Aquelas medidas deixaram as classes dominantes e a oposição, organizada principalmente na UDN (União Democrática Nacional), horrorizadas. E as reações foram tão contundentes que o Ministro foi obrigado a renunciar ao cargo.
Após o aumento de 100% do salário mínimo a pressão para depor Getúlio, aumentou. Mas, pressionado, ele frustrou o golpe em curso suicidando-se com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.
O escritor Lira Neto[2], biógrafo de Getúlio, descreve a comoção do povo ao receber a trágica notícia:
“Multidões saíram às ruas. Enfurecidos, manifestantes depredaram a sede da Tribuna da Imprensa, o jornal de Carlos Lacerda, mais furibundo dos adversários de Getúlio. Uma massa humana de 100 mil pessoas, a maioria em pranto incontrolável, desfilou diante do caixão do presidente, velado no antigo Palácio do Catete. A imprensa noticiou que cerca de 3 mil pessoas presentes ao velório, vítimas de desmaios, mal-estares, crises nervosas e problemas de coração, precisaram ser atendidas pelo serviço médico do palácio. Na enfermaria, o estoque de calmantes esgotou-se em minutos. O país inteiro quedou em estado de choque. Ninguém esperava por aquele desfecho para a crise que se abatera como uma nuvem negra sobre o governo, apesar de o próprio Getúlio ter dito, dias antes, com todas as letras: ‘Só morto sairei do Catete’”.
Golpe: segunda tentativa
A catarse coletiva em torno da morte dramática de Getúlio esfriara o clima de golpe e, acreditam historiadores, influenciou na vitória da chapa de Juscelino Kubistchek, presidente, e João Goulart, vice, em 1955. A chapa, que concorreu com a UDN, representava uma ameaça para a direita tanto pelos ideais desenvolvimentistas e pelo apoio da esquerda à JK, quanto pela presença de Goulart, que carregava não apenas a memória de Getúlio, mas também seu partido, o antigo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), e sua afinidade com a classe trabalhadora. Por isso, em setembro de 1955, a UDN tentou manobrar, apresentando uma emenda constitucional que exigia maioria absoluta para a presidência, algo que não era previsto na época.
Coube a Nereu Ramos, então vice-presidente do Senado, decretar estado de sítio para, através de uma articulação do general Henrique Texeira Lott, garantir a posse dos eleitos. Com isso os udenistas passaram a defender abertamente um golpe militar.
Autogolpe: terceira tentativa
Somente com a eleição de Jânio Quadros, em 1960, a UDN aproximou-se do poder. Ex-governador de São Paulo, Quadros, que era do PTN (Partido Trabalhista Nacional), venceu com apoio dos udenistas após uma campanha demagógica e com um discurso contra a “velha política”.
Mas a vitória do vice da chapa opositora (a eleição para vice era separada) mantinha acesa a ameaça para as classes dominantes. O mesmo João Goulart de 1954 e 1955 continuou na vice presidência, obtendo, na eleição de 1960, uma votação mais expressiva que a do presidente eleito.
A intenção de um golpe que estabelecesse a ditadura no Brasil pesava no ar e Jânio aproveitou-se da desconfiança que Jango causava para tentar fazer com que o golpe fosse dado em seu benefício, renunciando à presidência em 25 de agosto de 1961.
No artigo “Em 1961, Congresso aceitou renúncia e abortou golpe de Jânio Quadros”[3], o jornalista Ricardo Westin, revela a intenção do presidente em dar um autogolpe:
“Pelos planos não declarados de Jânio, a renúncia não seria aceita pelo Congresso, pelas Forças Armadas e até pelo povo, que lhe implorariam que reconsiderasse. Ele, então, aproveitaria o clamor geral e, como condição para a volta, exigiria mais poder de mando do que o previsto pela Constituição de 1946. Tendo êxito o autogolpe, Jânio alcançaria o objetivo de se transformar num presidente com superpoderes ou até mesmo num ditador”.
Westin afirma ainda que a data, 25 de agosto (dia seguinte dos sete anos do suicídio de Getúlio Vargas), e o fato de o vice estar na China no momento da renúncia (o que reforçava a contrariedade da elite), nos cálculos de Jânio, reforçariam a conspiração.
O jornalista conclui revelando como os planos deram errado:
“Os parlamentares se recompuseram logo do terremoto provocado pela renúncia. Mesmo estando no calor dos acontecimentos, eles enxergaram as intenções de Jânio Quadros e agiram para abortar o plano golpista. O Congresso Nacional aceitou a renúncia sem nenhum questionamento e, deixando Jânio para trás, começou a discutir as condições para a posse do vice-presidente João Goulart”.
Golpe: quarta tentativa
Entretanto, conforme previsto, os militares tentaram vetar Jango e empossar o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Diante dessa medida ilegal, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, reagiu e tomou a frente para garantir o cumprimento da Constituição. É neste ponto que surge na história a Campanha da Legalidade, em defesa da posse de João Goulart.
Jango assumiu em um clima de tensão, em setembro de 1961, com poderes reduzidos, já que, para conter a ânsia golpista, uma emenda constitucional instituiu o parlamentarismo e transferiu boa parte do poder ao primeiro-ministro Tancredo Neves, do PSD. O presidencialismo seria restituído somente após um plebiscito, em 1963.
Durante o governo Jango a polarização foi cada vez maior. Ela refletia o contexto internacional da Guerra Fria entre EUA e URSS. Na América Latina o despropositado medo do comunismo foi reforçado pela Revolução Cubana, de 1º de janeiro de 1959.
Para aglutinar seu campo, Goulart apresentou um programa de reformas de base no famoso Comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964. As reformas iam na contramão do ideário liberal e previam o aumento do poder do Estado para promover a soberania e a justiça social.
O golpe deflagrado
A reação da direita foi imediata, com pedidos de impeachment e acusações por parte da UDN, partidos da direita, do empresariado e da imprensa.
Na véspera do golpe, em 30 de março, Goulart estava na cerimônia de posse da Associação dos Sargentos na sede do Automóvel Clube, Rio de Janeiro, onde voltou a defender as reformas de base. Enquanto isso, a Casa Branca recebia um telegrama do consulado americano em São Paulo, que informava: “Duas fontes ativas do movimento contra Goulart dizem que o golpe contra o governo do Brasil deverá vir nas próximas 48 horas”.
Documentos comprovam que os EUA já haviam preparado o envio de esquadrilha de aviões, navio de transporte de helicópteros, armamentos e todo arsenal bélico em uma operação chamada Brother Sam.
A preparação do golpe, porém, foi atravessada pelo voluntarismo do general Olímpio Mourão Filho, Comandante do IV Exército, que partiu com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro na madrugada de 31 de março de 1964.
Foi uma atitude intempestiva que precipitou a união das tropas em uma grande conspiração que contou com participação decisiva do Congresso Nacional. Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado, declarou vaga a presidência do Brasil, empossando o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, como presidente provisório. Consumava-se o ato que setores da direita e das Forças Armadas tramavam desde os eventos que levaram ao suicídio de Getúlio Vargas.
Entre 2 e 15 de abril o governo provisório de Mazzilli desmantelou toda a política social que João Goulart buscava implementar. No dia 15 assumia o poder o General Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro de uma sequencia de presidentes militares durante 21 anos de ditadura.
A ditadura serviu aos interesses dos EUA
O embate entre uma política de desenvolvimento que inseria os trabalhadores na economia e na sociedade, por um lado, e a implementação do neoliberalismo estadunidense, por outro, se acirrou durante os dez anos que separam o suicídio de Getúlio Vargas e o golpe militar de 1964.
Com a ajuda de empresários e da imprensa, a ditadura implantou, à base da força, da repressão, do aumento da dívida externa e da diminuição do poder de compra dos trabalhadores, o modelo econômico repudiado por Getúlio, por Goulart e desejado pelos EUA.
Ainda que pudessem apoiar alguma política nacionalista, ou que, em algum ponto, se afastassem do liberalismo, os militares, com o uso de muita violência e arbitrariedade, serviram ao projeto americano na Guerra Fria. Projeto que promoveu uma onda de recessão, desemprego e, consequentemente, de desarticulação da classe trabalhadora e dos movimentos sociais.
O atual noticiário econômico não deixa dúvida sobre o triunfo das teses contestadas por Vargas e Jango, de que os salários elevam o custo de vida e os direitos trabalhistas atrapalham a fluidez do mercado. São teses que normalizam a desigualdade, cravadas na história no Brasil desde os oligarcas da República Velha, pelas quais a ditadura militar trabalhou durante seus vinte e um anos de existência.
Na engrenagem de interesses conflitantes que movem a história, entretanto, a CLT getulista permanece como a principal referência para o trabalhador brasileiro. E sua orientação para o desenvolvimento inclusivo ainda é um guia forte para aqueles que lutaram e lutam por um país justo.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
[1] Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, “68 anos do suicídio do ‘Pai dos Pobres’: Getúlio Vargas sempre condenou liberalismo, diz autor”, publicada em 20 de agosto de 2022.
[2] Em Aventuras na História, “Há 67 anos, a morte trágica de Getúlio Vargas parava o Brasil”, publicado em 24/08/2020.
[3] Publicado na Agência Senado, em 06/08/2021.
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Muito bem artigo! Parabéns Carol